“– O pai dele falou que vai ter hotel legal igual em Cancun. Pras pessoas poderem aproveitar de verdade: pescar, andar de barco, mergulhar. Poder fazer isso sem muita complicação.
– E você falou alguma coisa?
– Eu lembrei da nossa conversa. Disse que não é tão fácil assim… Que o Congresso tem que deixar!
– E aí?
– Ele falou que o Presidente quer. E que o Presidente é tipo o super-homem. Pode tudo.
– “Pode tudo” é um pouco forte…
– Eu ri, né? Ninguém pode tudo. Muito menos o Presidente que trabalha pra gente e tem um tanto de regra pra respeitar.”
Não é raro que a pauta jornalística e das redes sociais chegue à vida familiar. Crianças e adolescentes desafiam quem está por perto a explicar temas como a criação de uma unidade de conservação e as formalidades necessárias para sua extinção. Vale a pena dividir com a “moçada” as impressões pessoais e uma meia dúzia de conceitos técnicos.
Já há alguns dias, a notícia da possibilidade do fim da Estação Ecológica de Tamoios aparece na mídia como um projeto de governo. A curiosidade dos pequenos que já conheceram um pedacinho do paraíso fluminense acaba sendo boa oportunidade de explicar um pouco do sistema:
– Lembra que falei que a Constituição é a “Lei Maior” do país? É tipo a “avó que manda em tudo e em todo mundo”. Para uma coisa valer, tem que estar de acordo com ela diz. Pois foi essa Constituição-poderosa que estabeleceu que, na hora de definir áreas ambientais para serem protegidas de uma forma especial, o Estado pode usar instrumentos diferentes: lei (do Congresso), decreto (do Presidente, do Governador ou do Prefeito) ou até outras normas. Tudo por causa do artigo 225, III da Constituição que não exigiu frescura nenhuma na hora de começar a proteger o meio ambiente. Daí ter surgido o Decreto Federal nº 98.864, ainda em 23 de janeiro de 1990, só pela caneta do Presidente da época. Você nem era nascido e a Estação Ecológica de Tamoios já tinha sido criada… Exatamente para tentar proteger aquele lugar e, assim, as pessoas que ainda iam nascer, como você, poderiam ter a chance de conhecer e aproveitar.
– Mas depois que cria esse negócio, tem que existir pra sempre?
– Na verdade, é possível mudar ou até acabar com uma área protegida. Só que, pra alterar ou suprimir uma unidade de conservação, a Constituição fala que é preciso lei. E aí é aquela lei que o Congresso aprova mesmo. A gente chama “lei em sentido formal”.
– É engraçado poder começar de qualquer jeito, até com uma canetada do Presidente sozinho, e na hora de acabar precisar do Congresso, com um tantão de deputado.
– Nesse caso, não vale um negócio que chama “paralelismo” ou “simetria”.
– Ooooiiiii?
– Vou explicar. Em regra, uma coisa que começa de um jeito termina do mesmo jeitinho: começou com lei? termina com lei; começou com decreto? acaba com decreto. Pois a Constituição não quis que fosse assim, “simétrico”, nessa coisa de proteger o meio ambiente. Para começar a proteger é fácil, pode o Presidente agir sozinho. Para mudar a proteção ou para acabar com ela, a coisa é bem diferente. Aí só com a tal “lei em sentido formal aprovada pelo Congresso Nacional”.
– Você já deu aula disso?
– Já até escrevi no livro, acredita? Peraí que vou pegar para você:
“Vige, ainda, no Direito Administrativo, o princípio do paralelismo das formas e das formalidades. Por força deste princípio, se um ato para surgir no mundo jurídico exigiu uma determinada forma e formalidade, para dele ser suprimido deve, em princípio, cumprir a mesma exigência de exteriorização e solenidade especial. Em outras palavras: em regra, a forma e a formalidade necessárias para o surgimento do ato são as mesmas que devem ser cumpridas quando da sua extinção. (…)
À obviedade, poderão existir situações excepcionais em que a simetria não estará presente, em razão de expressa determinação legislativa neste sentido ou em virtude de especificidades da realidade procedimental em tese.
Assim também tem ocorrido quando da criação de Parques Nacionais, levada a efeito por decreto do Chefe do Executivo. Afasta-se o princípio do paralelismo em razão de o inciso III do artigo 225 da CR. Por força do referido dispositivo, após a proteção ambiental de um dado espaço, tem-se ‘a alteração e a supressão permitidas somente através lei, vedada utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”. Destarte, embora instituído por decreto, qualquer mutação ou extinção somente se viabilizará por lei, em cumprimento à exigência constitucional.’
– Credo. Você escreve difícil. E chato pra &%#@!
(gargalhadas)
– É a mesma coisa com outras palavras. Aliás, tem uma lei que meio que repete, com outras palavras, a regra da Constituição. É uma lei também de 1990, mais precisamente de 18 de julho: Lei Federal nº 9.985. Ela disse, no artigo 22, § 7º que “A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica”.
– Desafetação?!
– Desafetar é tirar a finalidade pública de um bem. Pensa comigo: um bem que está submetido a um regime de proteção especial, vinculado à preservação ambiental, está “afetado”. Ou seja, ele tem uma finalidade pública”. Qual? Exatamente a proteção ambiental. Se eu tiro essa proteção, eu o “desafeto”. Ele fica soltinho, livre de qualquer limite. Para desafetar ou diminuir a proteção…
– PRECISA DE LEI! A tal lei do Congresso Nacional.
– Bingo.
– E ainda tem outra coisa. Quando você protege uma área de forma especial, buscando combinar “não destruir árvores, mar, bichos” e ainda “trabalhar e ganhar dinheiro” (com turismo, por exemplo), não pode voltar atrás. Falando difícil: um sistema de desenvolvimento sustentável ambiental, econômico, social e político previsto em normas do ordenamento e já implantado não admite retrocesso.
– Andar para trás nem para pegar impulso, né?
(risadas)
– É isso aí queridão. Até o Supremo Tribunal Federal já decidiu isso. Quer ouvir?
– NÃO! (mais risadas)
– Vou deixar aqui pro caso de você mudar de ideia:
“As medidas provisórias não podem veicular norma que altere espaços territoriais especialmente protegidos, sob pena de ofensa ao art. 225, inc. III, da Constituição da República. As alterações promovidas pela Lei 12.678/2012 importaram diminuição da proteção dos ecossistemas abrangidos pelas unidades de conservação por ela atingidas, acarretando ofensa ao princípio da proibição de retrocesso socioambiental, pois atingiram o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no art. 225 da Constituição da República.” (ADI nº 4.717, rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno do STF, DJe de 15.02.2019)
Aproveito e deixo a prosa já traduzida para você passar os olhos nos conceitos e, quem sabe, animar a conversar sobre o assunto com a meninada. Os comentários seguem abertos e os pitacos seguem bem vindos!