Pressupostos da responsabilidade do servidor público. Dever de apuração estatal.
Um servidor público, que integra o quadro de pessoal do Estado, pode causar prejuízos à Administração. Diante de uma ação ou omissão sua que imponha danos ao erário, é preciso definir as consequências jurídicas. Está em questão o que o Direito denomina “responsabilidade extracontratual ou aquiliana”; ela incide quando determinada pessoa infringe um dever legal, não importa se a obrigação decorre do regime jurídico de direito público ou privado.
Se um servidor impõe dano ao Poder Público, portanto, cabe ao Estado, em cada caso, aferir se o comportamento funcional foi doloso ou culposo. Se houver dolo ou culpa imputável ao servidor no exercício das suas competências, a Administração deve promover as medidas necessárias para que o erário seja ressarcido dos prejuízos sofridos.
Não seria razoável que o Estado sofresse prejuízos decorrentes de atos dos servidores quando os mesmos agem dolosa ou culposamente, até porque não cabe à sociedade suportar despesas oriundas de condutas irresponsáveis dos respectivos agentes públicos. É preciso, assim, tomar medidas assecuratórias da permanência do patrimônio público, em atendimento aos princípios da continuidade do serviço público, da moralidade e da legalidade administrativa.
A partir do momento em que alguém causa dano ao patrimônio do Estado, surge para o Poder Público o interesse em apurar administrativamente se há um agente responsável pelo dano e se esse agente atuou com dolo ou culpa. Cabe, pois, à Administração Pública investigar a existência dos pressupostos ressarcitórios e buscar a atuação de seu direito de ser indenizada. Dessa competência específica (de coletar os dados fáticos pertinentes ao contexto em tese) não pode o Estado abrir mão, por se tratar de dever irrenunciável e competência indisponível.
Assim, a Administração deve verificar se o agente público agiu com dolo ou culpa, bem como a presença dos requisitos da natureza subjetiva da responsabilidade. Para tanto, tem-se como admissível instaurar procedimento para buscar os dados necessários à elucidação do quadro de responsabilidade. Considerando a crise enfrentada pelo Judiciário inclusive pelo grande número de processos em trâmite, bem como o dever de a Administração somente tomar providências materiais ou judiciais se evidentes os pressupostos do direito pretendido pelo Estado, tem-se o incremento da seara administrativa como preliminar a qualquer medida executiva ressarcitória. O Poder Público não pode ensejar aventuras jurídicas, não pode restringir indevidamente universos subjetivos individuais, sendo igualmente inadmissível omissão apuratória, ou fazer proliferar ações que terminem com significativo índice de sucumbência e alto sacrifício da tranquilidade de agentes públicos. E se é certo que o Estado não pode se omitir em coletar elementos que demonstrem se agentes públicos deverão, ou não, em última instância, arcar com os ônus do ressarcimento, também é induvidoso que a forma mais eficaz e legítima de atuação deve ser perseguida na realidade administrativa.
Procedimentalização na apuração do dolo ou culpa do servidor
A aferição, de modo objetivo, se há elementos evidenciadores da culpa ou dolo dos agentes públicos exigirá procedimentalização que é um dos traços mais marcantes da evolução do Direito Público nas últimas décadas.[1]
Atentando para a necessidade de procedimentalização do juízo sobre a existência, ou não, de dolo ou culpa dos agentes públicos cujos comportamentos prejudicaram o Estado, explicita-se que o sequenciamento formal de atos implica segurança jurídica para a Administração e para o servidor. Viabiliza-se que, além da manifestação de vontade dos órgãos e entidades administrativas, tenha-se previamente também a declaração de vontade do agente público, a coleta de elementos que formem a convicção técnica sobre a existência de culpa ou dolo, o que, além de concretizar a co-participação e o aspecto dialógico das competências estatais, reduz a possibilidade de equívocos na decisão final do órgão competente. A democraticidade de uma relação mais ampla entre Administração e agente público que poderá ser responsabilizado em sede de direito de regresso maximiza a correção e a eficiência da atuação do Estado.
É com fundamento em tais argumentos, que se entende essencial conferir transparência e objetividade à atuação da Administração Pública na apuração do dever do terceiro, que tenha causado prejuízo ao Estado, ressarcir, ou não, o erário. Para tanto, entende-se razoável que tramite processo administrativo no bojo do qual o órgão competente possa colacionar elementos suficientes para decisão que concretize as normas do ordenamento de regência. Em sede de procedimento administrativo, torna-se viável coletar dados relativos à sua atuação, a fim de que o órgão de representação, com base nesses dados concretos levantados, exerça a competência que lhe cabe, qual seja, verificar a pertinência das medidas previstas no ordenamento destinadas ao efetivo ressarcimento do patrimônio público.
Não há dúvida que a indenização busca incorporar ao erário o valor subtraído do Estado por determinado comportamento de servidor que tenha causado dano à Administração, configurando-se como sanção de natureza patrimonial; tal sanção patrimonial independe de qualquer sanção disciplinar, penal ou de improbidade administrativa. Não se admite a omissão dos órgãos responsáveis para fazer levantamento isento dos fatos que ensejaram prejuízo ao Poder Público.
Doutrinadores contemporâneos têm analisado as providências cabíveis quando concluído o procedimento administrativo: “Se ao final do processo ficou provada a responsabilidade civil do agente – quer dizer, que sua conduta foi ilícita, culposa e danosa -, a Administração pode exigir-lhe diretamente o ressarcimento. Se este não efetuar espontaneamente o pagamento, há duas possibilidades: (1) se o agente possuir patrimônio suficiente para saldar seu débito e este não for de diminuta quantia, deve a Administração proceder à inscrição na dívida ativa e ajuizar execução fiscal; (2) se o agente não possuir patrimônio suficiente ou se o débito for de pequena monta, deve a Administração proceder ao desconto da quantia na remuneração paga a ele; nesse caso o desconto deve limitar-se a uma percentagem que possibilite o adequado sustento do agente.”[2]
Mecanismos de indenização ao Estado no caso de dolo ou culpa do servidor
Uma vez instruídos e findos os procedimentos administrativos, tendo o Estado concluído pela responsabilidade do agente público em razão da sua atuação dolosa ou culposa, é possível que o servidor concorde com a pretensão regressiva e indenize o Estado pela via administrativa, o que consubstanciará o acordo entre as partes, com adesão do agente ao juízo público definitivo. Se assim não acontecer, entra em questão a viabilidade de o Poder Público adotar medidas autoexecutórias, o que requer amparo em preceitos legais e regulamentares, para quem admite a autoexecutoriedade neste caso. Não é uniforme o entendimento quanto à legitimidade de medidas previstas no ordenamento permitindo que sejam tomadas na esfera administrativa (como, p. ex., descontos em contra-cheque), de modo que se obtenha direta e materialmente o ressarcimento necessário. Independente das divergências sobre esse aspecto, é certo que a própria indisponibilidade do interesse público, aliada à existência de mecanismos efetivos que possam ensejar a indenização do erário na esfera administrativa, excluem a possibilidade de flexibilização, pelo administrador, quanto ao acionamento eficaz do terceiro responsável pelo dano ao Estado. Isso pode se dar na via administrativa, se admitida a autoexecutoriedade, ou na via judicial, quando inadmissível a cobrança forçada administrativa.
Em alguns Estados, como acontece em Minas Gerais (Decreto Estadual nº 46.757, de 13.05.2015), foi normatizado o uso de meios alternativos de cobrança de créditos do Estado. No lugar de ajuizamento de ações que demandam anos de trâmite perante o Judiciário, muitas vezes com gastos significativos dos recursos desse aparato desproporcionalmente com um ínfimo potencial de recomposição patrimonial administrativo, estruturou-se mecanismos que viabilizam o encaminhamento para protesto de Certidões de Dívida Ativa (CDAs) também dos créditos de natureza não-tributária do Estado. Destaque-se que a adoção do protesto extrajudicial como forma alternativa da cobrança dos créditos de menor valor revelou-se exitosa determinados períodos, considerando-se o retorno financeiro alcançado. O percentual de resgate para os cofres públicos, em algumas realidades, chegou a ser superior àquele verificado nas execuções fiscais. Considerando a possibilidade de se ter, num caso de prejuízo causado ao erário por agente público, crédito de natureza não tributária definitivo, adverte-se pela possibilidade de cobrança alternativa do valor. Não só cabe analisar a legitimidade de medidas que o ordenamento admite que sejam tomadas na esfera administrativa, de modo que se obtenha direta e materialmente o ressarcimento necessário, como é cabível analisar a normatização em vigor na esfera federativa a fim de identificar eventuais procedimentos de cobrança de créditos, alternativos às ações judiciais.
Dever de o Estado buscar ressarcimento: entre a perseguição indevida do servidor e a superação da inércia administrativa. O desafio do equilíbrio e da efetividade.
Fixada a responsabilidade do servidor público, identificadas vias de ressarcimento aptas a harmonizar os custos e benefícios buscados, cabe à autoridade competente diligenciar a materialização do ressarcimento em face do causador do prejuízo, com o menor dispêndio de recursos estatais, sendo necessário respeito às garantias individuais e máxima efetividade administrativa.
E uma das razões basilares de o Estado buscar ressarcimento dos danos que lhe foram causados por um dos seus agentes é não impor à sociedade, cujos recursos formam o erário, o resultado de prejuízos decorrentes do comportamento culposo ou doloso do servidor público. Havendo mecanismos que viabilizam a indenização estatal, com equilíbrio entre os custos e benefícios a serem alcançados, não há motivo juridicamente válido para sacrificar o interesse público primário, devendo-se privilegiar a legalidade, eficiência, moralidade e indisponibilidade do patrimônio público. A interpretação do regime jurídico administrativo deve ocorrer de modo a viabilizar, simultaneamente, o exercício do dever de o Estado buscar o ressarcimento e a proteção das garantias individuais e dos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República. Não se admite sejam feitas escolhas discricionárias se uma interpretação sistêmica protege o núcleo dos direitos envolvidos, com equilíbrio entre a proteção da coisa pública, a indisponibilidade dos interesses sociais e as garantias constitucionais em favor daqueles que se relacionam com o Estado.
Nesse contexto, quando se fala em indisponibilidade do interesse público, não se está diante de uma decisão arbitrária que, sem mensurar o equilíbrio entre custos e benefícios, determina medidas desarrazoadas na persecução de um crédito de pequeno valor. Ao contrário, busca-se uma hermenêutica adequada que, reconstruindo o significado possível de Estado Democrático de Direito, assegura contraditório e ampla defesa a quem causou dano ao Poder Público, identifica mecanismo legal de busca do ressarcimento e não abdica do dever das autoridades e órgãos competentes diligenciarem no ressarcimento necessário. É direito da sociedade que servidores não sejam perseguidos com atuação arbitrária e, ao mesmo tempo, que autoridades e órgãos públicos não se omitam na proteção do patrimônio que é de todos. É manifesto que o direito à indenização do Estado não é passível de renúncia, estando os agentes competentes obrigados a tomar as medidas cabíveis e necessárias à sua efetivação.
Para enfrentar esse desafio, cumpre reconhecer que, na segunda década do século XXI, estamos diante de situações que requerem a modernização do Estado, a escolha de quais searas atraem o dever de agir do Poder Público exclusiva ou prioritariamente, inclusive do ponto de vista arrecadatório, bem como do desafio de interpretar os mecanismos de atuação disponíveis para proteger os administrados e alcançar a eficiência administrativa. Sendo assim, não se pode coadunar com entendimentos que, ignorando o equilíbrio possível, optam por caminhos que eternizam vício grave da seara pública: a omissão total ou parcial na busca do efetivo ressarcimento pelos danos impingidos ao Estado.
O Estado não pode se furtar a, pelas autoridades e órgãos competentes, nos estritos termos em que permitido pelo ordenamento, promover a recomposição do seu patrimônio. Isso principalmente em se considerando que se requer do Poder Público que a conclusão a propósito do dano não seja abrupta, nem construída unilateralmente sem que se admita a participação do interessado, com a produção das provas necessárias, oportunidade de apresentação de defesa e decisão motivada após a sucessão de atos instrutórios cabíveis. Num contexto dessa natureza e diante de um Novo CPC editado para reforçar a responsabilidade das partes, inclusive da Administração Pública, na solução dos conflitos e efetivação das medidas necessárias, seria teratológico subtrair do órgão público competente a prerrogativa que a lei expressamente lhe outorgou, observada a proporcionalidade no tratamento da medida executiva.
[1] PINTO E NETTO, Luísa Cristina. Participação administrativa procedimental: natureza jurídica, garantias, riscos e disciplina adequada. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 51 e FERRAZ, Sérgio & DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 24-25
[2] MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 605
Bom dia Drª Raquel, excelente artigo “Servidor causou prejuízo ao Estado: tem que indenizar?”, estou com uma importante duvida justamente sobre esse tema. No caso concreto, em resumo, em uma investigação preliminar sobre um Ex-servidor que como condutor de um veículo oficial, cometeu uma infração de trânsito, só que a multa no valor de 315,00 reais, chegou após encerrado seu vinculo com o estado. Pode-se alegar um arquivamento justificado no principio da economicidade, já que o ônus do processo é maior do que o regresso do valor para o estado? Quais as bases legais teria para justificar esse linha? Desde já agradeço pela disponibilidade do seu tempo para contribuir com uma duvida de um admirador.
Excelente.
Só queria saber o nome que se dá ao ato de uma DECISAO Errada que cause DANO ao erário público (não se trata de roubo ou peculato, mas algo que se aproxima da irresponsabilidade )
Uma expressão. me parece pouco conhecida, pois é pouco praticado no Brasil