1. Introdução
Quando da publicação do Curso de Direito Administrativo, ainda em 2008, ao tratar do tema da segurança jurídica, mencionei o princípio da realidade que obriga o Estado, em todos os seus comportamentos, a ter atenção e vinculação aos dados que, presentes, servem de substrato para sua ação ou omissão. Embora não se tratasse de tema comum na disciplina à época, a sua inserção na obra resultou da compreensão da importância de se evitar que o Poder Público estivesse livre para atuar “inventando uma base fática” completamente divorciada de fatos acontecidos no âmbito do Estado e/ou da sociedade. O Direito Administrativo mantém uma proximidade com o poder que representa um perigo constante da captura das suas bases científicas. Historicamente, muitas vezes serviu a interesses governamentais transitórios, exclusivos do mercado e divorciados de promoção de um melhor bem estar para os cidadãos.
Nesse contexto, quem trabalha nas estruturas públicas percebe manobras de gestão facilmente adotadas diante de cidadãos pouco atentos, com nível reduzido de espírito crítico e inexistente engajamento: altera-se o que é descrito como suporte da ação administrativa para forjar uma legitimidade ausente, tanto do ponto de vista empírico como, em regra, também sob o prisma jurídico. Mudando a descrição da realidade, fundamentam-se comportamentos descabidos e não raras vezes absurdos ou mesmo ilícitos.
Se isso já era uma preocupação em 2008, passados dez anos, acresce-se o aumento das chamadas “fake news”, a propagação tecnológica de relatos divorciados da realidade, o uso de inteligência artificial para ampliar convicções de aprovação quanto a relatos destituídos de base fática verdadeira. Tem-se a demanda por retorno ao óbvio e ao básico: o princípio da realidade, a verdade material como exigência dos atos administrativos e a necessidade de investigação desses aspectos nas diversas condutas do Estado.
2. O princípio da realidade
A segurança jurídica vem servindo de fundamento a princípios outros sequer invocados pela doutrina administrativa no século XXI. É o caso do princípio da realidade, utilizado como fundamento de algumas decisões judiciais relativas à Administração Pública. Por força do referido princípio, não pode qualquer norma administrativa ignorar o mundo dos fatos a que se refere. Sendo assim, se há discordância entre determinada presunção e o que restou comprovado na prática administrativa deve-se atentar para a veracidade das circunstâncias empíricas.
Referido princípio segue a premissa segundo a qual cabe ao Direito sintonizar-se com o caso concreto, uma vez que as normas jurídicas foram criadas exatamente para reger os fatos, deles não podendo se afastar. Máximas sobre a incidência da lei como ‘lex domicilii, lex rei sitae e locus regit actum’ trazem a idéia basilar de que a norma aplicável é a que tem ligação mais próxima com a pessoa, causa ou questão jurídica em tese. No Direito Administrativo, incide, igualmente, a necessidade de se aproximar a norma da realidade sub examine. Daí ser indispensável que prevaleça o que sucedeu no terreno dos fatos, excluída a possibilidade de incidência de norma desvinculada da realidade em questão. O sistema jurídico jamais pode governar com ignorância das circunstâncias concretas a cuja regulação se destina.
O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o Recurso Especial n° 64.124-RJ, relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, deixou assentado: “A norma de sobre-direito magistralmente recomenda ao Juiz, na linha da lógica razoável, que, ‘na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’. Em outras palavras, é de repudiar-se a aplicação meramente formal de normas quando elas não guardam sintonia com a realidade.”
O Supremo Tribunal Federal também já invocou a realidade como princípio capaz de orientar a interpretação de dispositivo do ADCT da CR/88:
“Descabe ter como conflitante com o artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta Magna de 1988 provimento judicial em que se reconhece a estabilidade em hipótese na qual o professor, ao término do ano letivo, era ‘dispensado’ e recontratado tão logo iniciadas as aulas. Os princípios da continuidade, da realidade, da razoabilidade e da boa-fé obstaculizam defesa do Estado em torno das interrupções e, portanto, da ausência de prestação de serviços por cinco anos continuados de modo a impedir a aquisição da estabilidade.”[1]
Também os Tribunais de segundo grau de jurisdição têm atentado para o fato de que “cabe ao Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da administração”.[2]
Na doutrina há que critique o enquadramento da realidade como princípio, informando tratar-se de mera regra jurídica. Nesse sentido, confira-se o magistério de José Vicente Santos de Mendonça:
“Em termos dogmáticos estritos, provavelmente não estamos diante de princípio jurídico na acepção de Alexy: exigir que atos administrativos tenham bases e propósitos reais não é norma de incidência gradual. Ou eles preenchem tais requisitos, ou não. Estamos diante de regra jurídica. Mas, distanciando-nos de preocupações acadêmicas, podemos muito bem chamá-lo de “princípio” da forma, como viemos chamando todas as normas – regras ou princípios ou sejam lá o quê – que nos soem importantes.
Problema não é saber se é ou não princípio. Interessante é saber se é novo. Não é. (…)
Seu conteúdo também não é difícil de imaginar. À luz do que se tem escrito e decidido, vamos aqui propor três núcleos conceituais de imposição de deveres prima facie. (i) Pelo princípio da realidade, políticas públicas devem pretender objetivos realistas, isto é, alcançáveis dentro do espaço de tempo em que se proponham a durar. É contrária ao princípio da realidade uma proposta de política pública que se proponha a neutralizar a pirataria de música e de software, no Brasil, em seis meses, ou, mesmo, uma política de erradicação total e absoluta da produção e do consumo de drogas ilícitas. (ii) Também por ele, medidas administrativas devem cogitar apenas de imposições que possam ser razoavelmente cumpridas pelos particulares. É eficácia vedativa que decorre da força normativa dos fatos: o que não pode ser cumprido, não pode se exigir que se cumpra (…)
Finalmente, (iii) ficções e presunções jurídicas devem se basear em raciocínios extrapolativos realistas: ficções e presunções são imposições legais de atalho que necessariamente decorrem de conjecturas baseadas na realidade. Elas desobrigam parte do ônus argumentativo em favor de certas conclusões do raciocínio jurídico, mas apenas se for possível demonstrar que suas premissas fáticas de base são frequentes e esperadas.
Mesmo assim, em muitos casos atuais ainda se editam leis e atos administrativos afastados de bases reais e de qualquer exequibilidade. (…)
Por caricaturais que sejam, as violações ao princípio da realidade mostram dados típicos do nosso pensamento público: ausência de planejamento, externalização de deveres, e, acima de tudo, a tendência a pretender que o mundo mude graças à edição de atos formais.”[3]
Tratando a realidade como o princípio a fundamentar as decisões públicas, o citado autor faz referência a Diogo Figueiredo Moreira Neto, em sua lição clássica sobre a matéria:
“O entendimento do princípio da realidade parte de considerações bem simples: o Direito volta-se à convivência real entre os homens e todos os atos partem do pressuposto de que os fatos que sustentam suas normas e demarcam seus objetivos são verdadeiros.
São os fatos que regularmente ocorrem ou podem ocorrer, na natureza física ou convivencial, e só excepcionalmente, e por disposição expressa, a ordem jurídica acolhe ficções ou presunções.
Em outros termos, a vivência do Direito não comporta fantasias; o irreal tanto não pode ser a fundamentação de um ato administrativo quanto não pode ser o seu objetivo.”[4]
À obviedade, a sujeição da Administração aos fatos reais evita a insegurança social, pois é assegurado aos cidadãos que a incidência da norma administrativa não ignorará a realidade em que se inserem. Assim sendo, evidenciar a veracidade das circunstâncias fáticas que envolvem a conduta pública é tarefa essencial do Estado e daqueles que exercem o controle de juridicidade dos seus comportamentos. Qualquer desvio na fidelidade a estas circunstâncias caracteriza violação grave do regime administrativo, merecedora de repulsa radical do ordenamento jurídico.
Assim restou disposto no Parecer nº 14.568 da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais:
“Qualquer entendimento em sentido contrário ignoraria a realidade administrativa a que se destinam as regras (..). E não há dúvida de que não pode qualquer norma administrativa ignorar o mundo dos fatos a que se refere. Sendo assim, deve a interpretação privilegiar o que restou evidenciado na prática administrativa, atentando-se para a veracidade das circunstâncias empíricas.
Trata-se do princípio da realidade segundo o qual cabe ao Direito sintonizar-se com o caso concreto, uma vez que as normas jurídicas foram criadas exatamente para reger os fatos, deles não podendo se afastar. Máximas sobre a incidência da lei como ‘lex domicilii, lex rei sitae e locus regit actum’ trazem a idéia basilar de que a norma aplicável é a que tem ligação mais próxima com a pessoa, causa ou questão jurídica em tese. No Direito Administrativo, incide, igualmente, a necessidade de se aproximar a norma da realidade ‘sub examine’. Daí ser indispensável que prevaleça o que sucedeu no terreno dos fatos, excluída a possibilidade de incidência de norma desvinculada da realidade em questão. O sistema jurídico jamais pode governar com ignorância das circunstâncias concretas a cuja regulação se destina.”[5]
3. Verdade Material
A teoria geral dos atos administrativos implica discussão quanto aos aspectos que servem de base fática e jurídica para atividade pública, bem como coloca sob discussão a prova que viabilize analisar os referidos fundamentos.
Não se pode confundir o meio de exteriorização do ato (a forma que, em regra, é escrita) com os instrumentos de prová-lo. De fato, a prova é somente o mecanismo através de que se evidencia que o ato administrativo foi realizado. Assim sendo, um ato escrito pode ser comprovado oralmente, por meio de provas testemunhais ou mesmo através de depoimento pessoal de uma das partes interessadas. Isto se dá porque vige, no Direito Administrativo, o princípio da verdade material. Este princípio impõe ao agente público competente, o dever de perseguir a comprovação dos fatos ensejadores de um determinado pronunciamento estatal.
Ora, se é dever da Administração reconstruir os fatos que autorizaram a sua ação, os quais não podem ser ignorados também em virtude do princípio da realidade, tem-se como cabível o uso dos mais amplos meios probatórios que possam tornar seguro e jurídico o juízo a propósito do ato administrativo em tese. Por isto a doutrina vem afirmando que, quanto à prova do ato administrativo, vige o princípio do informalismo, o qual atribui ao agente público a função de viabilizar ampla produção probatória. Assim, viabiliza-se uma percepção adequada a propósito da realidade administrativa, sob o prisma jurídico e fático.
Na mesma linha de raciocínio, confira-se:
“De acordo com o princípio da verdade material (ou real), a instrução probatória do processo administrativo deve ser feita de forma que os autos traduzam a realidade dos fatos com a maior fidelidade possível. Tal tarefa caberá ao administrador, que tem o dever de adotar postura ativa na instrução do feito, seguindo modelo inquisitorial de produção de provas. Logo, o arcabouço regulamentar a que se submete o agente público deve permitir a ampla produção de provas, em prol não apenas dos interesses do administrado, mas como garantia de que a lei será bem aplicada.”[6]
“A autoridade administrativa, na busca da verdade material, não está sujeita a formalismos rígidos ou a obediência a formas sacramentais. Diante da atuação da autoridade administrativa, não vigora o princípio da verdade formal, em que as formas dos atos, prazos, distribuição de ônus de prova e a sistematização dos procedimentos são rigorosamente previstos e obedecidos. Em busca da verdade dos fatos, afasta-se os formalismos em prol da busca da verdade material e correta aplicação do princípio da legalidade.”[7]
Restrições indevidas à amplitude probatória que se exige quanto ao meio de exteriorização do ato administrativo têm sido entendidas como violação de garantias constitucionais: “Ofende o devido processo legal substancial (Carta Magna, art. 5°, LV), por excesso de formalismo e ausência de razoabilidade, a não-concessão de prazo para que a parte autentique a documentação apresentada no processo administrativo.”[8]
A prova da vontade pública exteriorizada deve ser, pois, a mais ampla possível. O princípio do informalismo rege a prova do ato administrativo.
Pode-se resumir os princípios que regem a forma, a formalidade e a prova dos atos administrativos, nos seguintes termos:
Aspecto | Principio | Significado |
Forma (meio de exteriorização do ato) | Solenidade | Em regra, o ato se exterioriza por escrito |
Formalidade (solenização ou trâmite especial do ato) | Informalismo | Somente se exige formalidade especial se a lei assim determinar, expressamente |
Prova (meios de demonstrar o ato) | Informalismo | Os meios de prova do ato administrativo devem ser os mais amplos possíveis |
4. Motivo (pressuposto fático)
Celso Antônio Bandeira de Mello[9] entende que elementos são partes de um todo, partes estas que o integram. São partes de um ato administrativo o seu conteúdo e a forma de que se reveste.[10] Já os pressupostos são requisitos exteriores, que lhe precedem como condições para que possa ser editado, a saber: o sujeito, o motivo e a finalidade. Assim sendo, os atos administrativos apresentam pressuposto subjetivo (sujeito), fático (motivo) e finalístico ou teleológico (finalidade). Todos estes são aspectos que devem anteceder a edição do ato administrativo com determinadas características: o sujeito deve ser capaz e competente, o motivo deve ser verídico, a finalidade deve atender o interesse público primário.
O motivo, nesse panorama, define-se como evento do mundo empírico que permite ou exige a prática do ato administrativo. Trata-se do fato que serve de base concreta viabilizadora da conduta pública. O motivo da desapropriação para fins de reforma agrária é, p. ex., a improdutividade de um determinado latifúndio que evidencia o descumprimento da função social da propriedade por aquele imóvel rural. O motivo da demissão de um servidor público que se apropriou indevidamente de dotação orçamentária é exatamente o fato de o agente ter se apropriado de verba pertencente ao erário.
Em todos os casos, tem-se uma circunstância fática concreta, externa ao agente público competente, que serve como causa da sua ação, por assim ter sido prevista na ordem jurídica. Como define Vladimir da Rocha França: “O motivo representa o evento demarcado – no fato jurídico administrativo (antecedente do ato) – pela autoridade administrativa como relevante para o interesse público, seja diante da hipótese da norma legal, seja perante critérios de conveniência ou oportunidade do próprio agente.”[11]
Pode haver vinculação ou discricionariedade no motivo de uma ação administrativa. Se o ordenamento descreve um fato com conceitos precisos evidenciando que aquela realidade específica é a que conduz à ação administrativa, tem-se o motivo vinculado. Já na hipótese de a circunstância fática descrita como pressuposto do ato não restar delineada objetivamente como a única e específica que enseja o comportamento público, há espaço para a discricionariedade no motivo do ato administrativo. Assim, o motivo do ato pode ser discricionário se a ordem jurídica, ao descrever o fato que oportuniza a ação pública, deixa-o à escolha administrativa, seja por enumerar duas ou mais opções claramente reconhecidas ao agente público, seja pela liberdade remanescente do emprego de conceitos jurídicos indeterminados na descrição realizada, seja pela omissão em indicar pontualmente o fato que levará à conduta pública, reservado amplo espaço para o juízo de conveniência e oportunidade administrativas.
Quando a ordem jurídica estipula uma realidade como aquela que deve acontecer para que a ação pública esteja autorizada, a ocorrência daquele fato no mundo empírico é condicionante indispensável do ato administrativo. Assim, se a Constituição da República prevê aposentadoria compulsória ao servidor que completar 70 anos (art. 40, § 1°, II, da CR), fazer setenta anos é o único fato que necessariamente deve sobrevir para que o ato de aposentadoria compulsória se torne possível. Somente diante do motivo vinculado (servidor com 70 anos de idade completos), tornar-se-á lícita a mencionada ação administrativa (outorga de inatividade remunerada).
Já nos casos em que o ordenamento deixa inúmeros fatos à escolha do administrador como fundamentos possíveis de um dado comportamento público, tem-se clara a liberdade que foi outorgada ao agente. Assim, se a lei determina que um servidor receberá gratificação de 10% do seu vencimento básico se atingida uma de duas situações – a) superação do índice de produtividade fixado para o período de seis meses; ou b) pontualidade e assiduidade pelo período de um ano –, tem-se clara a discricionariedade no motivo. Seja a superação do índice de produtividade, seja a pontualidade e assiduidade, qualquer dos dois fatos legitima, livremente, a ação administrativa em tese (deferimento de vantagem remuneratória). Há, assim, liberdade quanto ao motivo em face de que a conduta pública realizar-se-á.
Ampla liberdade para escolha do motivo terá o agente público competente se o ordenamento sequer enumera fatos os quais ensejam a conduta administrativa, mas se limita a reconhecer tratar-se de matéria que deve ser objeto de juízo de conveniência e oportunidade do administrador. Assim sendo, a exoneração de um servidor provido em cargo comissionado, p. ex., é um ato que apresenta discricionariedade clara quanto ao motivo. A Constituição da República e os diplomas infra-constitucionais não enumeram, especificamente, quais os fatos que autorizarão ou exigirão a prática do ato de exoneração do servidor comissionado. Trata-se de contexto fático a ser ponderado meritoriamente pelo agente público competente, segundo a conveniência e a oportunidade que lhe foram reservadas, inclusive pelo inciso II do artigo 37 da CR. Consequentemente, ter-se-á, aqui, discricionariedade no motivo.
Pode acontecer de a ordem jurídica, ao descrever o motivo que enseja a conduta estatal, utilizar-se de conceitos jurídicos indeterminados os quais, diante de dada realidade, ainda deixarão remanescer margem de escolha pelo administrador segundo juízo de conveniência e oportunidade. Seria o caso de, p. ex., a lei municipal que prevê a autorização de uso de um bem dominical do Município em favor de um particular estabelecer como hipótese de extinção a incompatibilidade com o interesse público. Em determinadas realidades, a aferição desta incompatibilidade poderá implicar liberdade de escolha do administrador em colocar, ou não, fim à transferência do uso privativo em favor de um terceiro, conforme juízo do que é conveniente ao Poder Público.
Independente da discricionariedade ou vinculação no motivo do ato administrativo, é preciso, sempre, que os fatos invocados como base da atividade estatal sejam verdadeiros e passíveis de comprovação. Daí a importância de se exigir a motivação mesmo que o ato em questão seja discricionário. Afinal, o fato de haver liberdade para escolher alguns dentre os fatos que podem amparar uma política pública, outro ato de governo ou um ato administrativo em sentido estrito (discricionariedade política ou administrativa) não significa que se pode falsear/criar/inventar a realidade e, com base em dados inverídicos, atuar divorciado dos limites públicos e sociais.
5. Conclusão
Vivemos um tempo que nos exige lucidez e firmeza em relação aos pressupostos básicos do Direito e das atividades administrativas. Frisar, assim, que é preciso obediência à realidade (como princípio), à verdade material (como dever de perseguição e parâmetro da ampla produção probatória na seara do direito administrativo) e ao motivo verdadeiro (como pressuposto fático do ato administrativo) é imperativo de quem lida cotidianamente com a matéria.
Há, também, uma grande lição ao Direito Constitucional com que o Direito Administrativo constantemente se imbrica. Se da Constituição a estrutura da Administração Pública extrai as bases das suas ações, nas compreensões mais fundamentais do Direito Administrativo o Direito Constitucional pode buscar referências para os recentes e complexos conflitos. Já aconteceu antes: a teoria do desvio de poder, que surgiu há séculos a partir das decisões do Conselho de Estado Francês, chegou ao direito constitucional viabilizando a discussão sobre, p.ex., inconstitucionalidade de medidas provisórias editadas com base em atos de corrupção cujo objetivo era atender interesses do mercado. O desvio de finalidade de atos legislativos e atos de governo consubstancia uma investigação imprescindível para que se tenha segurança jurídica quanto à juridicidade da ação estatal, ausente qualquer discussão séria sobre essa possibilidade contemporaneamente.
No presente momento, o Direito Administrativo ainda tem a oferecer ao Direito Constitucional, outras lições igualmente básicas. Qualquer comportamento do Estado (e não só da Administração Pública) deve obediência estrita ao princípio da realidade, à veracidade dos fatos com base em que o Poder Público atua e à ampla possibilidade probatória decorrente da verdade material. O básico. O óbvio. Não nos afastemos.
[1] RE n° 158.448-MG, rel. Min. Marco Aurélio, 2a Turma do STF, DJU de 25.09.1998, p. 20.
[2] Apelação no MS 97.02.01335-6, rel. Des. Fed. Rogério V. de Carvalho, TRF 2a Região, DJU de 08.06.1999, p. 362.
[3] MENDONÇA, José Vicente Santos de. O princípio da realidade como limite ao exercício da discricionariedade administrativa: um novo nome para algumas velhas formas de se argumentar?. Disponível em https://www.editorajc.com.br/o-principio-da-realidade-como-limite-ao-exercicio-da-discricionariedade-administrativa-um-novo-nome-para-algumas-velhas-formas-de-se-argumentar/ Acesso em 23.07.2019
[4] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 2002
Valendo-se das lições do saudoso professor carioca, tem-se: “O irreal, ou inexistente, não pode servir como fundamentação de um ato administrativo, tampouco servir como objeto de um ato do poder público.” Disponível em http://www2.tjam.jus.br/esmam/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=6&Itemid=90. Acesso em 23.07.2019.
No mesmo sentido, Francisco Pedro Jucá: “Doutra banda, não é excesso lembrar que a fixação dos parâmetros, tanto das limitações quanto dos condicionamentos, hão de curvar-se ao chamado princípio da realidade ou da veracidade, o que significa romper com as românticas visões abstratas e a aceitação dos dados da realidade objetiva e prática. Assim, a escassez dos recursos impõe a reavaliação “realista” do sistema, por exemplo, das despesas de pessoal hão de ser compatibilizadas com as demandas de serviço público com a qualidade mínima razoável, portanto à absorção de mão de obra suficientemente qualificada e profissionalizada, que implica em retribuições compatíveis, na racionalização administrativa e financeira da estrutura estatal, e tudo isso dosado com o princípio da reserva do possível. Portanto, a necessária distinção entre o desejável e o possível precisa a um só tempo perpassar e orientar todo o processo.” (JUCÁ, Francisco Pedro. O direito financeiro do século XXI. Revista Brasileira de Direito Tributário, n. 42, jan./fev 2014)
[5] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Parecer nº 14.568, de 19.10.2005. Consultoria Jurídica da AGEMG. Disponível em http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/advogado/pareceres2005/Parecer_14568.pdf. Acesso em 21.07.2019.
[6] LEAL, Ruy de Ávila Caetano. Princípio da oficialidade e verdade material no processo administrativo previdenciário: comprovação do exercício de atividade rural. Disponível em https://www.agu.gov.br/page/download/index/id/7306308. Acesso em 22.07.2019.
[7] FRAGA, Henrique Rocha. Os princípios da legalidade, da verdade material e do inquisitório perante a atividade administrativa de lançamento tributário. Disponível em http://rochaefraga.com.br/wp-content/uploads/2017/08/os_principios_da_legalidade_da_verdade_material.pdf. Acesso em 19.07.2019.
[8] AMS n° 1999.01.00.102190-7/DF, rel. Juiz Federal Leão Aparecido Alves, 3a Turma Suplementar do TRF da 1a Região, DJU de 18.09.2003, p. 89.
[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de.Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 362-365.
Registra-se que na 25a edição da sua clássica obra, Celso Antônio Bandeira de Mello reestruturou parte do raciocínio relativo aos elementos e pressupostos do ato administrativo. Mantendo a idéia de que são elementos do ato administrativo o conteúdo e a forma, o ilustre professor observa: “São pressupostos de existência o objeto e a pertinência do ato ao exercício da função administrativa. Os pressupostos de validade são: 1) pressuposto subjetivo (sujeito); 2) pressupostos objetivos (motivo e requisitos procedimentais); 3) pressuposto teleológico (finalidade); 4) pressuposto lógico (causa); e 5) pressupostos formalísticos (formalização).” Segundo o citado autor, sem elementos não há ato algum (inexiste o próprio ato); sem os pressupostos de existência faltará o indispensável para a produção jurídica daquele objeto constituído pelos elementos (para o surgimetno de um ato jurídico ou para sua qualificação como ato administrativo); sem os pressupostos de validade não haverá ato administrativo válido. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo, Malheiros, 2008, p.383-386).
[10] Segundo Diogo Freitas do Amaral “’Elementos’ são as realidades que integram o próprio acto, em si mesmo considerado, e que uma análise lógica permite decompor.” (AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. 5. reimp.ed. 2001. Coimbra: Almedina, 2006. v. 2. p. 249).
[11] FRANÇA, Vladimir da Rocha. Classificação dos atos administrativos inválidos no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, v.226, p. 67, out./dez. 2001.
Muito obrigado! Seu artigo me ajudou muito! Eu estava “penando” para entender o significado desse princípio da realidade.
Que bom, Raphael! Parte importante do objetivo das publicações é realmente traduzir conceitos, tornando -os passíveis de compreensão e, assim, de aplicabilidade.