Considerações iniciais
Em primeiro de maio, comemora-se o Dia do Trabalho, tendo em vista que em 1886, em Chicago, ocorreu a primeira manifestação de quinhentos mil trabalhadores buscando melhores condições de trabalho, sendo nesta mesma data realizada uma greve geral nos Estados Unidos. Em 2018, no Brasil, parece cabível que administrativistas pensem em todo o espaço de trabalho disponível para que, enfim, possamos realizar um mínimo do interesse público, colaborando na promoção concreta de conceitos abstratos como “aperfeiçoamento administrativo” voltado para “justiça social”.
É da realização efetiva de ideias dessa natureza que se espera o renascimento de esperança em dias melhores e, se não possível, o resgate das forças necessárias para encarar a continuidade de dias tão difíceis como os atuais.
Logo, como sugestões genéricas, lançam-se ideias sobre temas de repercussão significativa na estrutura pública, principalmente no que tange à estrutura de pessoal, às políticas públicas e à questão orçamentária, vinculados diretamente à data em questão.
Servidores públicos
Em relação aos servidores públicos:
– necessário fiscalizar se funções de confiança são exercidas exclusivamente por servidores efetivos (aprovados em concurso público e vinculados a cargos efetivos criados por lei), nos termos do artigo 37, V da CR: competência a ser exercida pela própria Administração da União, dos Estados e dos Municípios, além dos órgãos de controle como o Judiciário, quando provocado;
– seja editada lei fixando os percentuais mínimos dos cargos em comissão que serão preenchidos por servidores de carreira, como prevê o artigo 37, V da CR: competência a ser exercida pelo Congresso Nacional, pela Assembleia Legislativa e pela Câmara de Vereadores, para cada nível federativo (União, Estados e Municípios);
– necessário fiscalizar se os cargos em comissão são preenchidos com a observância dos percentuais mínimos fixados em lei e somente por quem cumpre os seus requisitos de habilitação, conforme artigo 37, V da CR e legislação federal, estadual e municipal;
– necessário controlar a constitucionalidade das leis que criaram cargos comissionados e funções de confiança, a fim de verificar se as suas atribuições têm caráter de assessoramento, chefia ou direção; em caso negativo, se se tratar de atribuições técnicas p. ex., sejam declaradas inconstitucionais as leis que instituíram os cargos comissionados ou função de confiança em controle concentrado, garantindo maior segurança jurídica: nesse ponto, há previsão constitucional e legal de quem tem legitimidade ativa para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade; isso, contudo, não impede que haja controle social na matéria (qualquer estudante ou profissional de direito consegue, com algum esforço, verificar se o que a lei prevê como competência de um cargo é atribuição técnica ou tarefa de assessoramento, chefia ou direção; a partir daí, vale ir aos órgãos competentes para efetiva pressão social), nem mesmo impede que o próprio ente federativo reconheça a inconstitucionalidade na esfera administrativa;
– necessário aperfeiçoamento/edição das leis que tratam da porta de entrada no quadro de pessoal do Estado, qual seja, o concurso público; é necessário um tratamento procedimental do concurso em lei, com especificação das fases, providências essenciais na etapa interna, previsão de cobrança de taxa ou preço para fins de inscrição (no primeiro caso, indispensável previsão legal), enumeração das provas que podem ser realizadas com as condições essenciais a serem cumpridas em cada caso, previsão do ato de homologação, eventual invalidação ou revogação; é preciso tratar de aspectos objeto de pronunciamento dos Tribunais Superiores recentemente de modo pacífico como é o caso, p. ex., do direito à nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas; necessário buscar solução legislativa a propósito do momento adequado à exigência dos requisitos do cargo público, em face de divergência entre entendimento do STF relativamente ao MP e à magistratura e posição do STJ no tocante às demais carreiras; a ausência de consagração, em lei, da viabilidade de se exigirem exames como psicotécnico, prova física ou oral, com garantias constitucionais mínimas (p. ex., previsão de recurso, normatização prévia dos critérios técnicos a serem analisados pela banca examinadora), comumente implica sucumbência do Estado nas ações ajuizadas pelos candidatos excluídos em tais provas; a reserva legal tem sido alçada à tipicidade por parte da jurisprudência, com frequente recusa à possibilidade de deslegalização.
– no tocante às infrações cometidas pelos servidores e ao exercício do poder disciplinar pelo Estado, entende-se necessário prever em lei para a sindicância administrativa natureza investigatória, excluída a possibilidade de punição nessa etapa que assim não ensejará contraditório; é pertinente estabelecer em lei que a sindicância meramente investigativa serve apenas à coleta das informações fáticas necessárias ao juízo inicial positivo de abertura de processo disciplinar ou, se ausentes elementos mínimos indicativos da materialidade e da autoria infracional, indicativas da pertinência de arquivar o procedimento; é necessário fixar em todas as esferas (não só na federal, mas também estaduais e municipais) o prazo máximo da sindicância, analisando a pertinência de seguir o entendimento dos Tribunais Superiores no sentido de que a sindicância meramente investigatória não interrompe nem suspende o prazo para punir o servidor.
– Quanto ao processo disciplinar, identificam-se nas legislações ausências graves que vão desde a falta de normatização: a) da suspeição e impedimento da autoridade julgadora; b) dos mecanismos de comunicação dos atos (notificação, citação e intimação); c) das consequências pelo não comparecimento do acusado e das testemunhas; d) dos efeitos da verdade material e do ônus da prova que recai sobre a Administração na identificação da infração e da autoria; e) dos mecanismos probatórios possíveis, desde diligências, prova oral, mecanismos de inquirição, hipóteses de contradita, pertinência de acareação, viabilidade de teleaudiência até o modo de realização do interrogatório; f) do descabimento da prova ilícita e das condições para uso de prova emprestada; g) do incidente de sanidade mental essencial em inúmeros processos disciplinares em que o servidor argui incapacidade mental superveniente à investidura, surgida no exercício do cargo, o que impede sua punição e implica o deferimento de licença saúde ou até mesmo aposentadoria; h) da necessidade de, além de notificar o servidor no início do procedimento para acompanhar a instrução, citá-lo após coletada a prova para que apresente defesa escrita cujas razões deverão ser apreciadas no relatório final (caso haja uma comissão processante que emitirá parecer); i) dos prazos de cada etapa do procedimento, da forma de sua contagem, do prazo máximo do processo disciplinar, da viabilidade de prorrogação se necessária a continuidade da apuração em determinados casos; j) do princípio da segregação das funções em relação à autoridade julgadora, no tocante à composição da comissão processante responsável pela fase instrutória ou à participação na sindicância; l) da conveniência de se adotar, ou não, o princípio da insignificância no julgamento de infrações administrativas leves, sem comprometimento de princípios basilares da atividade administrativa.
– ainda em relação às punições, a legislação federal, estadual e municipal precisa aperfeiçoar viabilizando mínimo de vinculação alcançável mediante interpretação, com previsão de equivalência entre determinadas infrações e punições mínimas (enumeração, p. ex., de infrações de média gravidade como sujeitas a, no mínimo, suspensão de 30 dias), bem como a imposição de critérios objetivos que podem orientar a incidência da proporcionalidade como princípio orientador na individualização da pena; cresce o entendimento doutrinário no sentido de que qualquer competência punitiva do Estado não pode se exercer sob o espaço da discricionariedade, sendo essencial que a lei estabeleça um mínimo de critérios vinculados os quais indiquem a punição adequada em casa situação, sob pena de transformarmos todas as infrações administrativas em “pizzas”, impossíveis de serem punidas, ampliando a convicção de impunidade que agrava a situação de insatisfação generalizada.
– em relação ao Ajustamento de Conduta, instituto que tem claro potencial benéfico na realidade disciplinar administrativa, é preciso que leis e atos regulamentares/ regulatórios (decretos, portarias, resoluções) sejam editados com previsões que evitem sua manipulação indevida e que impeçam que o instituto corrobore indevidamente para impunidade no lugar de viabilizar a recuperação do servidor e da legalidade administrativa, sem que haja uma superposição entre as esferas de controle ou simultaneidade esquizofrênica dos diversos sistemas punitivos existentes.
– é preciso que Estados e Municípios enfrentem as graves omissões na competência de normatizar a Lei de Acesso à Informação Pública; necessário editar leis estaduais e municipais que tipifiquem como infração de condutas que descumpram a obrigatoriedade da Lei Federal nº 12.527/11; é necessário ainda que os Poderes que têm independência para normatizar a matéria (Legislativo e Judiciário) cumpram o que já está disposto na lei em vigor e normatizem mediante atos regulatórios (p. ex., Resolução) a matéria que necessita de pormenorização para se ampliar o alcance do acesso à informação;
– que não se veja o quadro de pessoal do Estado como o responsável pela ineficiência pública e que se reconheça que boa parte dos servidores não consiste em um “bando de preguiçosos que querem somente se escorar sem precisar trabalhar à aposentadoria”, reconhecendo-se o esforço de centenas de milhares de servidores que se comprometem diariamente com a eficiência administrativa; ademais, cabe reconhecer a importância do investimento em formação de pessoal, bem na estruturação de carreiras que mantenham os servidores motivados, sem deixar espaço para desestímulo ou, pior, para projetos cujo objetivo é solapar garantias essenciais a quem exerce tarefas desafiadoras como a gestão, controle e punição públicas, seara em que se destaca a estabilidade prevista constitucionalmente; por fim, que nesse aspecto se persiga a formação de um corpo técnico eficiente, estável e capaz de atender as demandas sociais.
Política Pública e Orçamento
Em relação à política pública e ao orçamento:
– é preciso rever dois pilares atuais relativos ao orçamento: a) a discricionariedade absoluta da execução orçamentária e b) o caráter 100% autorizativo do orçamento. De fato, é impossível antever normativamente todas as hipóteses de revisão do orçamento, sendo necessário suplementar rubricas, deixar de realizar determinadas despesas, dentre outras situações. Daí a liberdade que se dá, inclusive por lei, ao executor encarregado de finalidade de promoção legítima dos gastos públicos. Contudo, é necessário que sejam construídos e, em seguida, impostos limites ao desvirtuamento do planejamento orçamentário; isso para evitar que o orçamento discutido e aprovado termine, na prática, sendo minimamente executado, realidade comum.
– é necessário normatizar mecanismos mínimos de controle dos processos de aprovação e execução do orçamento que ainda são obscuros, desarmônicos entre si e com as necessidades sociais, acusados de serem objeto de negociação política afastada das exigências mínimas de moralidade; é preciso ampliar o conhecimento técnico sobre aspectos básicos como a metodologia de cálculo das receitas e despesas obrigatórias.
– é preciso fiscalização administrativa e dos demais órgãos de controle da razão pela qual os entes federativos, não raro, empenham menos de 50% do orçamento anual no próprio exercício financeiro, sendo inferior a 10% os valores liquidados e pagos nesse exercício; trata-se de competência que implica controle da inexecução parcial advinda tanto de falhas no planejamento quanto dos atos administrativos de execução do gasto (erros na solicitação da compra, serviço ou obra; licitação; contrato ou convênio; empenho; liquidação e pagamento); em outros casos, tem-se contingenciamento preventivo indevido de despesas;
– é preciso reprimir, ainda a prática de subestimativa de receitas nos projetos de leis orçamentárias anuais da União, Estados e Municípios; é certo que, se há excesso de arrecadação (arrecada-se além do previsto no orçamento inicialmente), não há destino previsto em lei para esses valores; tais receitas podem ser aplicadas e usadas como margem de manobra política adicional, nem sempre comprometida com as necessidades sociais;
– é indispensável que haja controle das prioridades eleitas para emprego de recursos públicos no orçamento; durante a elaboração das leis orçamentárias é preciso controlar aspectos já dispostos na Constituição e demais leis (ex: o mínimo que deve ser aplicado em saúde e educação), bem como a razoabilidade de outras escolhas feitas (ex: qual a razoabilidade de construir uma quadra de esporte em um lugar onde o esgoto sanitário corre a céu aberto?); é preciso que se faça o chamado controle da discricionariedade alocativa, questionando-se se há fundamento constitucional e legal para determinada previsão de emprego de receita, se um dado contingenciamento é cabível ou não, se eventual redução de gasto é possível diante da realidade e das normas vigentes, dentre vários outros aspectos;
– que o combate à corrupção não se reduza a uma reação fictícia em face de desvios absurdos e comportamentos fraudulentos que corrompem o espaço público, nem em mero instrumento de banalização do discurso ético no trato dos interesses da sociedade, mas, ao contrário, que os órgãos de controle, os servidores públicos e os cidadãos comprometam-se com a efetividade da correção no trato de tudo que diga respeito à coletividade e à proteção dos direitos fundamentais, absorvendo sua parcela de responsabilidade em cada etapa do processo necessário à restauração de um mínimo de moralidade estatal e social;
Considerações finais
Por fim, cumpre que o Poder Público se convença da importância: a) da publicidade como instrumento indispensável à transparência essencial em um Estado Democrático de Direito; b) da motivação como elemento capaz de justificar as atribuições de cada agente público e de viabilizar o adequado exercício do controle da juridicidade administrativa. As duas ideias combinadas – publicidade e motivação – implicam que a Administração Pública se dedique a realizar uma comunicação ágil, profícua, de baixo custo operacional, e racional em face da população, real detentora do poder. Nesse contexto, é tarefa diária elevar o debate, afastar decisões teratológicas e enfrentar culturas internas organizacionais corporativistas. Em cada etapa da ação do Estado, pede-se equilíbrio, racionalidade e ponderação, buscando-se articulação interna e externa entre as diversas instituições, ao que se acresce a interdisciplinariedade a que devem se render todos os atores envolvidos. Os diversos profissionais precisam se convencer de que é indispensável atuar de modo coordenado, com mudança na cultura de trabalho de forma que não se tenha um grupo de especialistas isolados à frente, mas sim uma equipe estruturada, com capilaridade interna, capaz de resistir às pressões econômicas externas e tentações diversas de captura, sujeitando-se à monitorização do processo que abranja um controle periódico, passe por comparação de resultados e, enfim, mediante avaliação de resultados finais, enseje conclusões sólidas. O objetivo é não só penalizar ilícitos, mas evitar sua ocorrência, através de um mapeamento de ações, com visão superior dos problemas que permita melhoria no planejamento e execução, alcançando o aperfeiçoamento progressivo.
É indispensável que não ocorra a captura dos órgãos de controle pelo mercado, nem pelos governantes que transitoriamente exercem o poder e se limitam a buscar proteção dos seus próprios interesses, divorciados das necessidades sociais. Que entre o controle formal e excessivo, mero exercício “autista” de poder de instituições diversas, e a omissão criminosa na fiscalização dos comportamentos públicos, que deixa o cidadão refém e desprotegido diante da inércia ou das ilegalidades cometidas, seja possível encontrar o equilíbrio em uma das atividades mais relevantes do Estado contemporaneamente: o controle. Tem-se como responsabilidade de cada envolvido nessa seara a resistência aos extremos “o controle é sempre diabólico” e “o controle é sempre positivo”, buscando, tecnicamente, mecanismos que viabilizem o devido acompanhamento, fiscalização, avaliação e tomada das medidas necessárias à restauração da juridicidade com o atendimento das necessidades sociais, fim último das competências do Estado. Além de dessacralizar o controle, de evitar seus excessos e insuficiências, é preciso gestão estratégica no seu planejamento, mediante realização de estudos, identificação de teses, fixação de um padrão de fiscalização, até para que não haja disparidade casuística entre órgãos que realizem mesma função ou atribuições equivalentes. A modernização do controle, que exige uma reflexão sobre a qualidade da ação do Estado também nesse setor, afasta a ilusão de que atuações pulverizadas não estratégicas protegem o interesse público, sendo as diversas experiências brasileiras suficientes para demonstrar que a imposição de sucessivos e/ou simultâneos sistemas de controle, de natureza punitiva e/ou repressiva, são incapazes de isoladamente trazer resultados contínuos positivos que se revertam em favor da sociedade. É inevitável admitir a repercussão da inteligência artificial nesse setor, já segunda década do século XXI, o que traz ao topo da agenda de discussão pública os limites na programação dos algoritmos que conduzirão o atuar do Estado daí em diante e como desse espaço extrair os melhores resultados, sem comprometimento do texto constitucional.
Não se esqueça que o aperfeiçoamento do procedimento ao final de que se realizam gastos públicos com a realização de obras, prestação de serviços e fornecimento de bens requer que a licitação se torne um meio eficiente de contratação pelo Estado, sem que se tenha uma legislação desordenada, incapaz de viabilizar celeridade, moralidade e eficiência administrativa. Em um contexto de reforma, é pertinente ter cautela, ainda, para um novo diploma não surgir como espaço de prevalência de interesses privados e de demandas econômicas do mercado, apenas mascarado por institutos que buscam dar aparência de legalidade e eficiência pública.
Quanto ao cidadão, a quem falta tanto em um país como o Brasil, cabe resistir à sedução de se manter como vítima diante de um Estado ainda compreendido, ainda que inconscientemente, como mau e eterno devedor. A cada um de nós deve ser reapresentada a ideia de coletividade, desenvolvido o sentimento de pertencimento e estimulada a co-responsabilidade na reconstrução de novos parâmetros de existência coletiva. A demanda é por um Estado realmente Solidário e Fraterno, sem que tais expressões pareçam parte de um discurso político vazio, com significado algum na realidade social. O desafio é superar o pensamento de que “não me diz respeito” e também ir além da ideia de “ou você está comigo ou você está contra mim”. Se somos educados, desde cedo, para tomar partido na luta do “bem contra o mal”, numa ilusão fantasiosa de que dominamos a inteira compreensão da realidade e estamos certos quanto às nossas escolhas como equivalentes integralmente ao “bem possível”, é imperioso abandonar a compreensão rasa presente em tal raciocínio.
O maior trabalho, talvez, esteja no fato de que Estado e sociedade precisam alcançar uma maturidade que ainda parece longínqua. Estar disposto a caminhar em direção a ela é condição para que a dignidade da pessoa humana, buscada desde 1886 em Chicago, esteja um pouco mais próxima da nossa realidade. E que isso, especialmente hoje, nos sirva de incentivo para o próximo passo.