1. Introdução: Moralidade administrativa
O Direito Administrativo foi inicialmente influenciado pela concepção positivista em razão da qual se realizava uma distinção absoluta entre Moral e Direito. Representava-se Direito e Moral por círculos concêntricos, sendo o maior correspondente à moral e o menor ao direito.
Em um segundo momento, figurou como importante referencial histórico-doutrinário a noção de Maurice Hauriou, em cujo Précis de Droit Administratif a moralidade administrativa é definida como o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. A moralidade administrativa, sob este prisma, implica saber distinguir não só o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, mas também o honesto e o desonesto (entendimento de que há uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo e há a moral administrativa, que é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo o discricionário).
É necessário, contudo ampliar a noção de moral estritamente subjetiva para objetiva; sem a definir somente por critérios internos, para a conceituar com base em aspectos externos de conduta.
Não se ignore a dificuldade de estabelecer o conteúdo preliminar, teórico e preciso da moralidade administrativa; certo é que o Direito ampliou o seu círculo para abranger matéria que antes dizia respeito apenas à moral. Abarcou a moral administrativa. E, a despeito de existirem preceitos morais não incorporados pelo Direito, na seara em que ocorreu esta incorporação verifica-se a ciência jurídica ampliou o seu domínio. Qualquer conduta de um agente público desconforme com os padrões éticos de atuação administrativa, que afete o interesse público ou direito de terceiros que se relacionam com o Estado, desatende não apenas uma norma moral, mas o próprio direito vigente.
Também se atente que o princípio da moralidade tem relevância no Direito Administrativo como limite à conduta dos particulares que se relacionam com o Estado. Assim sendo, qualquer desvio ético do terceiro que se relaciona com o Poder Público contraria o dever de honestidade nas relações administrativas. A corrupção na esfera pública é vedada tanto ao agente encarregado de gerir os negócios administrativos quanto ao terceiro que se relaciona com o Estado quando da execução das suas competências. Assim como em relação aos agentes públicos, também é preciso evoluir a compreensão da conduta dos que se relacionam com o Estado para o enquadramento à moral objetiva e externa, não se limitando à sua compreensão sob o prisma limitado do desvio de poder subjetivo e interno.[1]
No lugar de fundamentar o conceito apenas em noções como justiça, boa-fé e ética, invoca-se a necessidade de cada comportamento administrativo embasar-se na conduta aceita como legítima pelos membros da sociedade em determinada época, assegurada a proporcionalidade entre os meios empregados e os benefícios alcançados ao final e excluído o descumprimento da finalidade pública prevista abstratamente na ordem jurídica como objetivo estatal. Em vez de fundá-la em concepções pessoais, de natureza política ou até mesmo religiosa, prescreve-se como indispensável à caracterização da moralidade administrativa a produtividade no exercício da competência pelo agente, a eficiência no emprego dos poderes públicos e a eficácia no alcance dos resultados, ao que se acresce o dever de prestar contas nas diversas vias de controle estatal. Outrossim, entende-se fundamental que se reconheça eficácia positiva e negativa à exigência moral em favor de que se reconhece status de princípio constitucional. É exatamente uma concepção jurídica dessa natureza que serve ao combate de vícios históricos como o do nepotismo e da corrupção. Isso sem mencionar a garantia da legalidade que, no sentido negativo, “é válida para todo o tipo de Administração Pública, resultando desde logo da unidade do poder do Estado e da ordem jurídica: o que é validamente prescrito por órgãos do poder estadual como juridicamente vinculativo obriga ou legitima, como parte integrante da ordem jurídica vinculativa, toda a comunidade jurídica em causa (ver também Sobota, Das Prinzip Rechtsstaat, 1997, p. 104, ss.).”[2]
2. Nepotismo: Histórico e etimologia
Reconhece-se que o uso da estrutura do Estado para satisfazer interesses individuais descoincidentes com os interesses da sociedade é aspecto da cultura do povo brasileiro e acompanha a história do país desde a chegada dos portugueses ao nosso território. Aponta-se como certidão de nascimento da prática nepotista no país a Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, solicitando benesse especial para seu genro: “E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, com em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim bem servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – que d´Ela receberei em muita mercê.” Tem-se claro o pedido realizado em favor de um dos familiares do requerente e a expectativa do exercício do poder do Estado apenas no interesse individual, sem qualquer consciência dos limites que separam a esfera pública da privada.
Trata-se do favorecimento familiar presente na própria etimologia da palavra “nepotismo” que, para parte da doutrina, refere-se à prática de nomear sobrinho, neto ou descendente para posições de importância. De fato, trata-se de palavra híbrida (latim e grego), formada pelo radical e também raiz – nepote (do latim népos/nipote/nepõtes, que significa sobrinho, neto, descendentes, posteridade) e pelo sufixo nominal: “ismo” (do grego ismós, que significa “prática de”). Há quem afirme que a divulgação do vocábulo (ao qual foi acrescido o sufixo ismo), no sentido hoje difundido em todo o mundo, em muito se deve aos pontífices da Igreja Católica. “Alguns papas tinham por hábito conceder cargos, dádivas e favores aos seus parentes mais próximos, terminando por lapidar os elementos intrínsecos ao nepotismo, que, nos dias atuais, passou a ser associado à conduta dos agentes públicos que abusivamente fazem tais concessões aos seus familiares.”[3] O surgimento da palavra teria ocorrido, pois, na Itália, no sentido de indicar a excessiva autoridade que os sobrinhos e outros parentes dos Papas exerceram na administração eclesiástica. “Era um tipo de acusação dirigida contra os Papas do Renascimento (de Sisto IV a Paulo III) que nomeavam sobrinhos (nipoti) e outros parentes para posições clericais e administrativas de importância. (autorità eccessiva che i nipoti e gli altri parenti de´papi hanno talvolta esercitato nell´amministrazione degli affari di Roma).” Exatamente em decorrência do sentido italiano atribuído à palavra nepotismo, fontes clássicas indicam que a palavra nepotismo veio do baixo-latim eclesiástico: “nepote, que significaria sobrinho do Papa. Deste modo, conforme atuais fontes clássicas, nepotismo significa a prática adotada pelos Papas dos séculos XV e XVI em favorecer, sistematicamente, suas famílias (sobrinhos e outros parentes) com títulos (cargos de autoridade) e doações (presentes materiais).”[4]
Espraiou-se o entendimento de que há nepotismo quando se está diante do favorecimento de parente ou de familiar, independente das suas aptidões, promovido por uma autoridade que detém poder. Há estudiosos que sustentam que a prática de favorecer parentes, fora registrada no Japão, no período Heian, por volta do ano 669:
“A despeito da pobreza do povo japonês, no começo do séc. IX, o Japão atingiu o apogeu de uma civilização requintada, capaz de contestar o dogma da superioridade intelectual chinesa e de desenvolver a cultura nacional. Foi o governo da família Fujiwara, através da prática atribuída aos Papas, séculos depois, que permitiu esta mudança primordial para o povo japonês. A família Fujiwara foi dividida em quatro ramos, chefiados por quatro irmãos, que passaram a exercer uma considerável influência no governo:
‘Em breve todo o poder passou das mãos dos soberanos às dos Fujiwara, graças a um sistema que consistia em casar uma das filhas do chefe do clã com o imperador e colocar os parentes próximos em postos-chave da administração. Quando o herdeiro chegava à idade de ocupar o trono, o imperador renunciava e Fujiwara era designado regente em nome de seu neto, ainda menor.’ Em 1960, houve semelhante prática, ainda no Japão: ‘Uma vez no poder, Kiyomori adotou a mesma tática dos Fujiwara: nomeou seus parentes para as funções de maior importância, concedeu-lhes títulos de nobreza e reservou para si a posição de maior destaque na corte. Casou suas filhas na família imperial e instalou um de seus netos, com idade de dois anos, no trono japonês.’
Ressalte-se que, mesmo na Itália Renascentista, a nomeação de parentes para posições militares e políticas, de alta relevância, era comum aos não pertencentes à classe clerical. ‘Mas, a par de chefes espirituais, os papas eram também governantes temporais de uma grande parte da Itália; outros governantes não hesitavam em usar membros de suas próprias famílias como comandantes militares ou conselheiros políticos. Além disso, os papas eram usualmente idosos quando eleitos, rodeados pelos adeptos de seus ex-rivais, a braços com uma pletora de funcionários do Vaticano preocupados em zelar por seus interesses pessoais ou cujos salários eram pagos por nações estrangeiras. Assim, para conduzirem uma vigorosa política pessoal, não era inteiramente descabido que os papas promovessem homens de lealdade menos duvidosa.’”[5]
Há quem entenda que o nepotismo tem origem na própria natureza, uma vez que “Pelo favorecimento pessoal de parentes por autoridades, resulta numa proteção à genética, a prole, a perpetuação da espécie”. Discorreu Adam Bellow que a defesa de um parente, daí remetendo-se a consideração de guarida da genética pelo favorecimento pessoal, representou nada mais, nada menos, do que a própria preservação da raça humana.[6]
Independente de possuir, ou não, fundamento na natureza e à margem da amplitude originária da prática nepotista, se exclusiva ou não do clero, é certo que favores outorgados aos familiares são tradição viciada integrante da história, tendo sido absorvida no Brasil onde a nomeação de familiares para posições de alta importância e mesmo de assessoramento, com base apenas no vínculo parental, ganhou significativa repercussão.
Sérgio Buarque Holanda, já atento aos problemas inerentes a essa realidade social, advertia que o Estado não é uma ampliação do círculo familiar, e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Assim, não há que se falar, entre o círculo familiar e o Estado, em gradação, mas antes é preciso reconhecer que existe uma descontinuidade e até uma oposição entre ambas as esferas: “No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.”[7]
De fato, o saudoso historiador constatou que a escolha dos homens para o exercício funções públicas fazia-se de acordo com a confiança pessoal nos candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Nesse sentido, “Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático”, ao que acresce: “No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundado nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa histórica, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados ‘contatos primários’, dos laços de sangue de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.”[8]
É preciso compreender que esse é o contexto que, herdado, causou inúmeros vícios na Administração Pública Brasileira como o “afilhadismo”, “nepotismo” ou “clientelismo”, além de outros como a corrupção. Ao tratar de comportamentos imorais e da corrupção em especial, Daisy de Asper y Valdés e Gerald E. Caiden invocam a “antítese da moralidade” como idéia capaz de elucidar o seu conceito. Valem-se da lição de Wesberry para indicar a escuridão e invisibilidade como terreno adequado para que prospere conduta com tal tipo de desvio. “É anônima e incomensurável. Origina-se dos vícios humanos de ganância e desejo de poder. Não tem cor, forma, odor. É conivente, secreta, despudorada, furtiva. Nem sempre deixa traços senão os que estão impressos nas mentes humanas, memórias e percepções.” Trata-se, pois, não de uma doença pessoal “mas um mal pessoal”, que renasce em múltiplas roupagens, o que exige vigilância constante e efetivo combate para prevenir contaminações. Não se ignore que “a culpa coletiva encontra expressão na racionalização das violações internas que, na realidade, ninguém tem o propósito de eliminar, senão na ocorrência de uma pressão externa muito forte.” Nesse contexto, é certo que um vício sistêmico e institucionalizado não pode ser confundido nem tratado individualmente, mormente em se considerando que afeta de modo cruel a sociedade, como um todo e aqueles que entram em contato com o sistema, sejam membros internos ou externos à instituição. Com efeito, trata-se de realidade que contribui para a anomia social, pois alimenta a efetivação de condutas impróprias ou escusas, solapando a credibilidade das instituições públicas e contribuindo para a alienação do povo, ao que se acresce seu caráter disfuncional à modernização e eficácia governamental. “Todos os envolvidos nessa luta devem evitar usar sua posição e sua instituição para usufruir vantagens pessoais, devem impor a mesma disciplina a todos e destituir os culpados de seus postos públicos.” É preciso que se tenha profissionalismo nos quadros da Administração; afinal, se amadores são nomeados em governos democráticos, a administração democrática requer, ao contrário, profissionalismo, que adere à ética profissional, e padrões de excelência: “evita causar dano, mantém-se atualizado, cuida de projetar sua imagem e garantir sua reputação pela competência, produtividade, disciplina e constante aperfeiçoamento.”[9]
Necessário absorver esse contexto social com a densidade necessária, para que se enfrente a intolerância com o uso das estruturas públicas em favor de interesses exclusivamente pessoais, crescente na sociedade contemporânea. Foi esse panorama que impôs aos Poderes do Estado o desafio de evitar a prevalência dos interesses privados que sequer se coadunam com as necessidades coletivas, exigindo medidas coibitivas de práticas nepotistas. O Supremo Tribunal Federal, diante de tal realidade, editou a súmula vinculante nº 13, buscando excluir favorecimentos indevidos. O que a Corte Suprema fixou, em um momento inicial, foi uma presunção absoluta de prática nepotista, independente de qualquer contorno fático específico de uma dada realidade, de modo a impedir, nos casos mencionados, sem exceção, nomeações que poderiam comprometer a moralidade administrativa. Posteriormente, ocorreu mutação na jurisprudência do STF, como já explicitado em outro artigo sobre o tema.[10]
3. A imparcialidade na escolha dos servidores comissionados e detentores de função pública
Vivemos em uma época em que os princípios da moralidade, impessoalidade e eficiência seguem sendo invocados, abstratamente, como fundamento para o combate ao nepotismo. A doutrina também pontua decorrer da imparcialidade a necessidade de garantir independência à Administração em face de interesses estranhos ao público:
“Imparcialidade significa independência: independência perante os interesses privados, individuais ou de grupo; independência perante os interesses partidários; independência, por último, perante os concretos interesses políticos do Governo. (…)
E a necessidade de garantir a independência da Administração face aos interesses particulares dos membros sociedade civil, faz-se sentir com especial acuidade numa época em que o Estado desempenha um papel primordial na satisfação das necessidades colectivas e, por essa razão, intervém em quase todos os domínios da vida e da actividade dos cidadãos, como resultado da alteração radical das relações entre o Estado e a sociedade e das profundas alterações sofridas pela Administração com o advento do Estado Social de Direito. (…) maior necessidade de assegurar a independência da Administração face à teia de interesses privados presentes na sociedade civil. E isto tanto para garantia dos direitos e interesses dos particulares, como para defesa do interesse público.”[11]
Medidas como a súmula vinculante nº 13 objetivariam exatamente a criação de estruturas organizativas que, por sua lógica interna, induzem a Administração a agir independente dos interesses particulares. O início seria, exatamente, um mínimo de imparcialidade na escolha dos servidores: os critérios de opção devem ser minimamente técnico-profissionais, objetivos e racionais e não apenas políticos ou potencialmente privados, como aqueles que fundamentam as nomeações no mercado. Desse modo seria possível evitar a formação de clientelismos, ensejando um mínimo de segurança quanto à garantia dos cargos serem providos por pessoas com maiores aptidões, atributos e méritos residentes na capacidade profissional e conhecimentos técnicos, não nos laços pessoais e familiares. Sobre os cuidados na formação de uma burocracia minimamente eficiente, capaz de agir com imparcialidade, tem-se múltiplas orientações doutrinárias.[12]
Considerando que, no caso das nomeações para os cargos comissionados e das designações ao exercício de funções de confiança, não se justifica falar em concurso público (artigo 37, V da Constituição), entendeu-se pertinente excluir do exercício das atribuições de direção, chefia e assessoramento, as pessoas com vínculos familiares com a autoridade nomeante ou com um servidor da mesma pessoa jurídica que já exerça cargo de direção, chefia ou assessoramento. Assim sendo, a discricionariedade para escolha de alguém em favor de que a autoridade nomeante devote confiança encontra limite negativo: em princípio, que o nomeado não seja cônjuge, companheiro, ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 3º grau, inclusive, dele (autoridade nomeante) “ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento”. Referida exigência atinge, por determinação expressa, a Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, vedando-se, cumulativamente designações recíprocas, também chamadas de “nepotismo cruzado”.
Tais proibições foram impostas, num primeiro momento, com a adoção de uma definição objetiva: entendeu-se suficiente a presença do vínculo familiar entre quem nomeia e o nomeado para se afirmar caracterizada a prática nepotista. Excluiu-se, assim, a ideia de que, além do vínculo pessoal, seria necessária prova do favoritismo na origem da nomeação para o cargo comissionado ou designação para função de confiança. A despeito de críticas doutrinárias[13], o Supremo Tribunal Federal afirmou haver nepotismo com a existência de um dos vínculos, conforme indicado na citada súmula. O fato de historicamente ter se presenciado a concretização dos riscos ao bem comum, nos casos de haver vínculos pessoais entendeu-se que a salvaguarda para a proteção dos princípios constitucionais apenas seria possível com a exclusão das nomeações e designações tal como hoje fixado pela Corte Suprema. Malgrado os princípios da impessoalidade e moralidade constassem do texto constitucional desde 1988, constataram-se flagrantes casos de favorecimentos de parentes de autoridades públicas ocorridos nas duas décadas subsequentes à CR.
A própria doutrina reconheceu, diante dessa realidade, que, se o elemento objetivo – relação de parentesco – é de fácil comprovação, o mesmo não se diz do elemento subjetivo que consiste no propósito deliberado de atender a interesses pessoais com a nomeação do familiar. Considerando que o Estado Democrático de Direito não pode conviver com a personalização do poder, sendo necessário impedir que competências administrativas continuassem exercidas direcionadas à satisfação de interesses privados, optou o STF, inicialmente, por um tratamento normativo rigoroso ao proibir as condutas nepotistas.
Além da mutação jurisprudencial já analisada em outro artigo[14], não se ignoram as ponderações doutrinárias no sentido de que seria necessária a presença de ambos os elementos. “Daí a exigência de observância de dois aspectos para a caracterização do nepotismo: o vínculo de parentesco entre o nomeante e o nomeado (aspecto objetivo) e o propósito de privilegiar tal vínculo (aspecto subjetivo).”[15] Nessa linha de raciocínio, o simples fato de existirem dois ocupantes de cargos em comissão com vínculo de parentesco em um mesmo órgão, não caracterizaria prática de nepotismo, mormente se providos em cargos efetivos anteriormente. Isso porque “Não raras vezes nos deparamos com parentes de autoridades com vasta experiência profissional, e se não satisfazer, com, também, elogiável currículo acadêmico. (…) A proposta, portanto, dispõe que nepotismo enquanto violação de princípios, somente estaria caracterizado, especialmente, com a conclusão positiva do aspecto objetivo e, posteriormente, subjetivo.”[16] Ademais, há quem defenda não razoável proibir que pai e filho ocupassem cargos comissionados simultaneamente em um mesmo órgão, se ambos são servidores públicos efetivos, concursados.[17]
Nesse contexto, não se tem doutrinariamente, nem mais jurisprudencialmente, uma presunção absoluta de nepotismo resultado de escolha legislativa ou de decisão vinculante do STF. A despeito da clara insegurança jurídica na definição da matéria, entende-se indispensável que, no mínimo, verifique-se a presença de favorecimentos decorrentes de parentesco ou de vínculos pessoais que tenham desviado dos fins públicos objetivos a eleição daqueles que realizariam competências nos órgãos públicos. À obviedade, não se pode excluir, aprioristicamente, a caracterização do nepotismo em que servidores possuam vínculos pessoais, de amizade e familiares com servidores comissionados. Ademais, sempre que se demonstrar o comprometimento da boa-fé e da correção moral necessárias em toda atividade administrativa, ter-se-á demonstrada prática nepotista pela influência oriunda dos quadros de cargos comissionados do Estado e beneficiadora dos servidores realizadores das tarefas em questão. Diante de conluio, favorecimento indevido ou privilégios injustificados, tem-se como inafastável o reconhecimento da inconstitucionalidade na formação do quadro de pessoal da estrutura administrativa.
4. Os desafios para garantir a efetividade dos princípios constitucionais
Mesmo considerando os termos da súmula vinculante 13 do STF, ainda estamos longe de uma definição jurídica segura a propósito da presença, ou não, do nepotismo. Referido contexto de clara insegurança requer que os operadores do Direito permaneçam vinculados aos princípios constitucionais, inclusive o da eficiência, “haja vista a inapetência daqueles para o trabalho e seu completo despreparo para o exercício das funções que alegadamente exercem”. Essa a lição de Cármem Lúcia Antunes Rocha segundo quem a Constituição, ao instituir a moralidade como princípio constitucional expresso, viabilizou que, com base em tal norma fundamental específica, direta e expressa, fossem inclusive acionados judicialmente servidores que incorressem na prática de atos contrários à moralidade e à eficiência no exercício dos seus cargos. Neste contexto normativo, é preciso compreender que a moralidade administrativa, a eficiência e a impessoalidade passam a se consubstanciar em dever para o administrador e direito subjetivo de cada administrado. O STF ressalvou que os princípios constitucionais não configuram meras recomendações de caráter moral ou ético, mas consubstanciam regras jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e positivamente vinculantes, sendo sempre dotados de eficácia, cuja materialização, se necessário, pode ser cobrada por via judicial:
“Assim, tendo em conta a expressiva densidade axiológica e a elevada carga normativa que encerram os princípios contidos no caput do art. 37 da CR, concluiu-se que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que obste formalmente essa conduta. Ressalvou-se, ademais, que admitir que apenas ao Legislativo ou ao Executivo fosse dado exaurir, mediante ato formal, todo o conteúdo dos princípios constitucionais em questão, implicaria mitigar os efeitos dos postulados da supremacia, unidade e harmonização da Carta Magna, subvertendo-se a hierarquia entre esta e a ordem jurídica em geral.”[18]
Armando Mercadante lembra que os princípios constitucionais consubstanciam regras jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e positivamente vinculantes, sendo sempre dotados de eficácia, cuja materialização, se necessário, pode ser cobrada por via judicial: “Frisou-se, portanto, que as restrições impostas à atuação do administrador público pelo princípio da moralidade e demais postulados do art. 37 da CF são auto-aplicáveis, por trazerem em si carga de normatividade apta a produzir efeitos jurídicos, permitindo, em conseqüência, ao Judiciário exercer o controle dos atos que transgridam os valores fundantes do texto constitucional.”[19]
De fato, a simples legalidade estrita da atuação estatal passou a se considerar insuficiente a título de legitimação do direito. Neste sentido, o sistema não seria legítimo se apenas cumpridas pelo Estado as regras legais que lhe integram, sendo necessária a ampliação da legalidade para a noção de juridicidade, em cujo bojo inserem-se valores como eficiência, moralidade, segurança jurídica e proporcionalidade. A regra legal torna-se apenas um dos elementos definidores da noção de juridicidade que, além de abranger a conformidade dos atos com tais regras, exige que sua produção (a destes atos) observe — não contrarie — os princípios gerais de Direito previstos explícita ou implicitamente na Constituição. Destarte, atualmente quando se fala que, segundo o princípio da juridicidade, o administrador público somente pode agir se a lei expressamente o autoriza, entenda-se lei como toda norma jurídica, princípios constitucionais explícitos ou implícitos, princípios gerais de direito, regras constitucionais, regras legais, normas administrativas (decretos, portarias, instruções normativas, etc.). É por isso que parte da doutrina esclarece que, hoje em dia, a legalidade deve ser entendida como juridicidade, princípio que abrange todo o sistema normativo, desde os princípios gerais do direito e a Constituição, até os tratados internacionais, a lei formal, os regulamentos e, eventualmente, certos contratos administrativos, como ensina Julio R. Comadira. [20]
Ao tratar da ampliação da legalidade, autores tratam da “constitucionalização do Direito Administrativo”. Sobre esse ponto, o professor Fabrício Motta indica que a origem do fenômeno advém da submissão da Administração à Constituição, sendo que, no caso brasileiro, foi feita com intensidade antes inimaginável, a ponto de transformar a Constituição na maior fonte do Direito Administrativo pátrio. Tal vinculação da Administração à força normativa da Constituição ocorre inspirada pela dogmática constitucional atual e pelas características do Estado contemporâneo em que, segundo Canotilho, é preciso inventar regras (rulemaking) e de solucionar litígios (adjudication) dentro de contextos jurídicos políticos colocados nas mesmas redes e apertados pelas mesmas malhas. Dentre as conseqüências da constitucionalização do direito administrativo estabelece “imposição, à Administração, de deveres de atuação, notadamente voltados à realização dos direitos fundamentais e dos objetivos da República, determinando e orientando a realização de políticas públicas, assim como a prestação de serviços públicos;” bem como o “fornecimento de fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta da Constituição, independentemente da intermediação do legislador ordinário”, ao que acresce “fornecimento de parâmetro para o controle de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário e ainda, com características peculiares, possibilitando o controle no âmbito da Administração Pública”.[21]
Essas premissas devem servir de fundamento para a análise das normas, decisões judiciais e práticas administrativas relacionadas ao provimento de cargos comissionados ou funções de confiança, devendo-se buscar a constitucionalidade pela presença da moralidade, impessoalidade e eficiência administrativas.
5. Conclusão
Não há dúvida alguma que a sociedade brasileira, em pleno século XXI, não tolera que sejam “loteados” cargos comissionados e funções de confianças entre pessoas que, por possuírem vínculos familiares com as autoridades nomeantes, transformam a estrutura do Estado em verdadeiros feudos.
Na perseguição dessa finalidade e buscando afastar os excessos e arroubos, reconhece-se como intoleráveis: a) os comprometimentos da moralidade e de outros princípios constitucionais, como aqueles decorrentes da prática de nepotismo; b) a omissão legislativa em tratar de matérias indispensáveis ao equilíbrio social e à efetividade administrativa; c) os excessos do Judiciário que culminem na usurpação de função pertinente a outro Poder. Toda deslealdade imoral é condenável (inclusive aquela que se dá quando da designação viciada para o exercício de função pública). Toda inércia ilícita é perniciosa (incluindo-se a absurda omissão do Parlamento em exercer a função legislativa, essencial ao equilíbrio institucional). Toda ditadura é perigosa (inclusive a do Judiciário, cujos membros, ao exercer a magistratura, sequer se sujeitam ao controle político democrático de eleições posteriores, em razão da vitaliciedade assegurada pela Constituição).
Não se trata de considerar perdoável arraigadas condutas nepotistas. Não se trata de ser condescendente com as omissões públicas, admitindo saídas alternativas conflituosas. Não se trata de atar as mãos do controlador e manter a sociedade refém de inconstitucionalidades reiteradas e manifestas. O que se impõe é o desafio de uma reflexão madura sobre a necessidade de se dar concretude às exigências constitucionais da moralidade e da impessoalidade, sem comprometer outros princípios igualmente essenciais ao equilíbrio do Estado como a independência e harmonia entre os poderes. E o mais relevante é conseguir que essa tarefa se realize sem o comprometimento da segurança jurídica. Daí o imenso desafio para quem exerce a atividade de controle e, principalmente, para aqueles que atuam na gestão e prática da atividade administrativa cotidiana.
Pontua-se, ao fim, que tão ruim como a insuficiência do controle judicial são os riscos de eventuais excessos no exercício de tal atividade. Tão ruim quanto a possibilidade de se deparar com alguns excessos judiciais é ampliar os problemas decorrentes da realidade em questão mediante instauração da insegurança social. Se atualmente não há qualquer dúvida quanto à repugnância relativa às absurdas ilegalidades da Administração e à falta de efetividade no controle jurisdicional, igual repulsa cabe quanto aos possíveis exageros até mesmo nas mutações no controle judicial dos comportamentos públicos, bem como às recusas de efetividade subsequentes, mediante interpretações casuísticas e isoladas que deixam os cidadãos em sobressalto e indignado, sem um mínimo de certeza jurídica quanto à correção dos seus comportamentos e quanto ao mínimo de moralidade do atuar público. O dever de todo jurista que trabalha e pensa o cotidiano estatal é definir a exata medida da legalidade administrativa e do controle indispensável à efetividade do sistema jurídico-administrativo, fixando a respeitabilidade ao ordenamento de modo a garantir o atingimento dos interesses sociais, sem instituir a volubilidade como mais um problema a se enfrentar.
[1] “A Segunda Turma, por maioria, concedeu a ordem em mandados de segurança para cassar ato do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, nos autos de processo de controle administrativo, determinou a anulação de concurso público para admissão nas serventias extrajudiciais no Estado do Rio de Janeiro. (…) Também não é possível afirmar a existência de irregularidade ou favorecimento a ensejar a medida extrema adotada pelo CNJ, uma vez que o conselho entendeu haver “fortes indicações de parcialidade”, sem, contudo, demonstrar as “evidências de favorecimento” que justificaram anulação de todo o concurso.” (MS nº 28.775-DF, 28.777-DF e 28.797-DF, rel. p/ acórdão Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma do STF, julgamento de 17.10.2017, Informativo 882 do STF)
[2] WOLFF, Hans. J.; BACHOF, Otto e STOBER, Rolf. Direito Administrativo. v. I. Trad. António F. de Sousa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 104
[3] GARCIA, Emerson. O nepotismo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 72, 13 set. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4281>. Acesso em: 05.12 2019
[4] MUSETTI, Rodrigo Andreotti. O nepotismo legal e moral nos cargos em comissão da Administração Pública. Disponível em http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/?action=doutrina&iddoutrina=786. Acesso em 20.10.2019
[5] MUSETTI, Rodrigo Andreotti. O nepotismo legal e moral nos cargos em comissão da Administração Pública. Disponível em http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/?action=doutrina&iddoutrina=786. Acesso em 01.11.2019
[6] MARTINEZ, Bruno. Nepotismo como improbidade administrativa. Disponível em http://www.webartigos.com/articles/5882/1/Nepotismo-Como-Improbidade-Administrativa/pagina1.html#ixzz0uu8wwA8y. Acesso em 10.11.2019
[7] HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. 27ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 141; 145
[8] HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. op. cit., p. 146
[9] VALDÉS, Daisy de Asper y; CAIDEN, Gerald E. Corrupção: o excesso de peso nas costas do cidadão. Boletim Científico: Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília: Ministério Público da União. Ano 5. nºs 20/21, julho/dezembro de 2006, p. 259; 262-263; 267-269; 272-273
[10] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Súmula vinculante 13: entre a segurança e o casuísmo no combate ao nepotismo. Disponível em http://raquelcarvalho.com.br/2018/03/30/sumula-vinculante-13-entre-a-seguranca-e-o-casuismo-no-combate-ao-nepotismo/. Acesso em 05.12.2019
[11] RIBEIRO, Maria Teresa de Melo. O princípio da imparcialidade da administração pública. Coimbra: Almedina, 1996, p. 170-171
[12] RIBEIRO, Maria Teresa de Melo. O princípio da imparcialidade da administração pública, op. cit., p. 300; 312-313
[13] MUSETTI, Rodrigo Andreotti. O nepotismo legal e moral nos cargos em comissão da Administração Pública. Disponível em http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/?action=doutrina&iddoutrina=786. Acesso em 01.11.2019
[14] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Súmula vinculante 13: entre a segurança e o casuísmo no combate ao nepotismo. Disponível em http://raquelcarvalho.com.br/2018/03/30/sumula-vinculante-13-entre-a-seguranca-e-o-casuismo-no-combate-ao-nepotismo/. Acesso em 05.12.2019
[15] TOURINHO, Rita. O combate ao nepotismo e a súmula vinculante nº 13: avanço ou retrocesso? Disponível em http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/6/docs/o_combate_ao_nepotismo_e_a_sumula_vinculante_no_13_avanco_ou_retrocesso.pdf. Acesso em 01.12.2019
[16] MARTINEZ, Bruno. Nepotismo como improbidade administrativa. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/5882/1/Nepotismo-Como-Improbidade-Administrativa/pagina1.html#ixzz0uu8wwA8y. Acesso em 10.11.2019
[17] CELSO NETO, João. O nepotismo e a Súmula Vinculante nº 13. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1945, 28 out. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11876>. Acesso em: 01.11.2019
[18] RE nº 579.951-RN, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno do STF, julgamento em 20.08.2008, Informativo 516 do STF
[19] MERCADANTE, Armando. Direito Administrativo. Comentários à jurisprudência do STF e do STJ noticiadas nos informativos jurisprudenciais. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 105-107.
[20] COMADIRA, Julio Rodolfo. Derecho administrativo: acto administrativo, procedimento administrativo, otros estudios. 2.ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, Abeledo-Perrot, 2003. p. 132-133.
[21] COMADIRA, Julio Rodolfo. Derecho administrativo: acto administrativo, procedimento administrativo, otros estudios. 2.ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, Abeledo-Perrot, 2003. p. 132-133.