Diante de uma mesma demanda administrativa, a gestão pode chegar a uma conclusão no ETP diferente daquelas a que chegou anteriormente em contratações prévias? Essa é uma dúvida que órgãos e entidades administrativas têm enfrentado no último ano, na instrução de procedimentos licitatórios sob a incidência exclusiva da Lei Federal nº 14.133/2021 .
A atual LLCA deu especial atenção ao regramento da fase de planejamento da contratação administrativa. Regras como as que normatizam o ETP incorporam o dever de os gestores públicos coletarem elementos que embasem o juízo inicial de abertura do certame licitatório. Nessa etapa, devem ser observados os efeitos de contratos já firmados e executados, além de se atentar às novas circunstâncias da realidade que circundam o procedimento. Como escreve José Anacleto, “O contrato administrativo não surge no mundo dos fatos de maneira aleatória e circunstancial (ao menos não deveria ser assim). Todo e qualquer contrato administrativo deve ser planejado e configurado de maneira eficaz, eficiente e econômica.”[0] Nessa perspectiva, os fatos atualizados, apurados pela esfera administrativa, servem de base e deflagram a análise pelos agentes públicos competentes.
Nesse novo contexto, cabe à gestão evitar simplesmente reproduzir padrões anteriores, adequados à realidade pregressa, ainda que haja manifestações jurídicas e dos órgãos de controle favoráveis, com perfeita adequação ao momento passado. Isso porque, diante de uma nova contratação, é preciso aferir se ocorreu mudança no contexto fático em que o procedimento se insere e, em havendo, analisar o enquadramento da realidade atual ao ordenamento atual, o que consubstancia competência administrativa a ser observada tanto pela assessoria jurídica quanto pelos órgãos de controle.
A Administração Pública detém capacidade institucional adequada e está mais habilitada a produzir melhor decisão em situações dessa natureza. Em se tratando de matérias como as análises fáticas realizadas quando do ETP, os órgãos técnicos e de gestão são melhor equipados para avaliar as questões fáticas e promover o enquadramento necessário. Daí ser necessário observar, nesta seara, a incidência de teorias como a das capacidades institucionais e a da deferência[1], que preservam a competência administrativa, sem admitir invasão por parte de quem atua indicando os parâmetros jurídicos da legalidade. O Ministro Luís Roberto Barroso tem insistido na deferência ao juízo técnico, com respeito à capacidade institucional da Administração Pública, impondo-se a autocontenção pelos órgãos de controle de legalidade, inclusive o Judiciário.[2] Autores como Eduardo Jordão explicitam mudanças no direito comparado, a fim de evitar compreensões equivocadas da preservação do mérito administrativo no direito brasileiro. [3]
É verdade que, em princípio, a regra é fixar a mesma orientação em situações equivalentes às anteriores. Decorrem da segurança jurídica o princípio da coerência e a autolimitação administrativa que servem de fundamento à teoria dos atos próprios e à teoria dos precedentes aplicáveis ao Poder Público. Como escreve Alexandre Santos Aragão, havendo similitude entre circunstâncias que dão lugar a duas ou mais manifestações estatais, a Administração não pode se posicionar e agir de modo diferente, sob pena de não cumprir as finalidades previstas no ordenamento[4]. Ademais, deve observar “o conjunto de reiteradas decisões de uma mesma entidade da Administração Pública em um mesmo sentido que, por dever de coerência, devem ser novamente adotadas em casos posteriores idênticos, exceto se houver a necessidade de superação do precedente”[5].
Isso não significa, contudo, ignorar as possibilidades de prospective overruling, ou seja, mudança de entendimento com evolução da própria ciência jurídica, especialmente no presente caso, em que chegou ao conhecimento do assessoramento jurídico a existência de mercado competitivo capaz de afastar os fundamentos normativos que sustentavam contratações por inexigibilidade; além de eventual peculiaridade de uma situação concreta excluir a incidência da hipótese abstrata anteriormente fixada a título de assessoramento jurídico (distinguish). É preciso especial atenção diante de um novo Estatuto legal (como a recente Lei Federal nº 14.133/21 incidente com exclusividade nas contratações administrativas das pessoas federativas, autárquicas e fundacionais a partir de janeiro de 2024).
É legítimo distinguir uma nova realidade fática e jurídica, com diplomas novos, características empíricas diversas de situações anteriores já examinadas, de modo a afastar a incidência de posicionamentos aduzidos previamente, inclusive pelos órgãos de controle. Também se aquiesce com a viabilidade de aperfeiçoar os entendimentos de consultoria e de superar posições anteriores, em face de mais adequada hermenêutica, com evolução inerente à Ciência Jurídica. Daí se dizer que, diante de uma mesma demanda, a Administração Pública pode chegar a uma conclusão diferente no ETP (estudo técnico preliminar).
Também a doutrina contemporânea, após reconhecer que os precedentes administrativos estão inseridos, ainda que implicitamente, no dever de autovinculação previsto na LINDB, trazem à tona ensinamentos segundo os quais “é por meio da superação dos precedentes que oxigenamos a aplicação do direito, permitindo-se o aprimoramento das decisões administrativas e de controle”, por meio da realização de overruling quando “a decisão administrativa que originou o precedente for ilegal” ou “quando o interesse público, devidamente motivado, justificar a alteração do entendimento administrativo”[6].
Nesse contexto, adverte-se para a importância de restarem claras as razões que justificam a superação e/ou a distinção em face da fundada manifestação anterior, de modo a excluir os efeitos da Teoria do Órgão[7], sem qualquer comprometimento da segurança jurídica também positivada no artigo 30 da LINDB[8].
É com base em tais fundamentos que se destaca, neste caso, a superveniência de um novo Estatuto Licitatório (Lei Federal nº 14.133/21), o amadurecimento na compreensão dos institutos da contratação pública, além da evolução inerente à própria ciência administrativa e do Direito.
Segundo o atual diploma veiculador de normas gerais de licitação, o estudo técnico preliminar é documento constitutivo da primeira etapa do planejamento que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução, além de embasar termo de referência (art. 6º, XX da Lei Federal nº 14.133/21). É o ETP que descreve as soluções possíveis, de modo a identificar a melhor alternativa para atender uma necessidade, a partir da definição do objeto, que atenderá a demanda administrativa. Não se pode partir de uma resposta convencionada abstrata e preliminarmente, em outro momento jurídico e fático, para construção de um ETP e/ou para levar adiante uma modelagem contratual, sem atenção às peculiaridades da legislação atual e da realidade em questão. Como se tem esclarecido, o ETP é que identifica a solução adequada em dado momento da atividade administrativa do Estado no exercício das suas competências e é com sua elaboração que se torna possível saber que solução é essa.
Deve-se partir de uma necessidade concreta que, em cada situação, justifica um tipo de contratação futura. Identificar que necessidade deve ser satisfeita, qual contratação é a adequada, com que modelagem e regime jurídico, no momento preciso em que se planeja, é resposta que o ETP veiculará em face dos estudos realizados:
Na etapa inicial do procedimento, o referido estudo demonstra a necessidade da contratação, e deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação.[9]
Sendo assim, ao elaborar o ETP sobre relativo à contratação pública, é preciso atentar para as possibilidades decorrentes do atual Estatuto Geral de Licitações e dos demais diplomas vigentes. Mais do que isso, cabe analisar a prevalência, ou não, da legislação material a partir de que o enquadramento procedimental é feito. Novos elementos que contornem uma mesma demanda podem levar a uma conclusão diferente no ETP elaborado na fase de planejamento da contratação, como já se explicitou.
É de se notar que essa nova conclusão, decorrente de novos contornos fáticos e jurídicos, não afasta a anterior, muito menos exclui a legitimidade de serem protegidos os efeitos jurídicos dos vínculos anteriores e decisões dos órgãos de controle e assessoramento. Isso até mesmo em face da segurança jurídica e, principalmente, do artigo 24 da LINDB:
“Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.” (sem destaque no original)
Se havia interpretação constante do órgão de consultoria, de jurisprudência de órgão de controle e/ou da prática administrativa, sem que se vislumbrasse ilicitude quanto aos atos praticados, cabe garantir a preservação do que se realizou. Afinal, mostra-se descabido que, de súbito, sejam alteradas orientações observadas anteriormente com fulcro em entendimento jurídico até então em vigor, ensejando-se incidência retroativa de nova posição ou de uma recente compreensão da realidade que, malgrado jurídica e/ou faticamente irrepreensível, estabelece bases diversas para comportamentos públicos vindouros (comparando-se com os que eram praticados conforme orientações gerais ou formais vigentes à época).
Se não é cabível petrificar os entendimentos da Ciência do Direito (e isso seria absurdo), igualmente intolerável é pretender que novas compreensões, decorrentes de longos amadurecimentos jurídicos sobre matérias e situações concretas, incidam retroativamente (o que seria igualmente absurdo). Admitir a evolução da ciência, inclusive a do Direito, sem comprometer a segurança jurídica: esse o objetivo da advocacia pública preventiva, eficiente e responsiva em pleno século XXI que encontra amparo no artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Como bem elucida Rafael Maffini,
“O art. 24 da LINDB confere concretização aos já referidos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, uma vez que interdita a aplicação retroativa de novas interpretações em matéria de aferição da validade das condutas administrativas, o que, de resto, já se encontra também positivado no art. 2º, parágrafo único, XIII, da Lei 9.784/99. Com efeito, a interpretação do Direito é fenômeno progressivo, de modo que não se mostra infrequente que determinada conduta seja considerada juridicamente hígida quando de sua prática, mas sobre tal conduta surjam interpretações supervenientes que possam colocar em dúvida sua validade. O art. 24 da LINDB determina que a compreensão sobre a validade de determinada conduta haverá de ser aquela contemporânea à sua concretização, cristalizando-se o seu status de validade, ainda que supervenientemente ocorram mudanças de interpretação sobre sua higidez, imunizando-a de eventuais mudanças de interpretação sobre a validade de tal conduta.”
“Desta feita, a validade das condutas administrativas, e também dos contratos públicos, deve ser aferida consideradas as ‘orientações gerais da época’, que, como dispõe o art. 24, parágrafo único, da LINDB consistem nas ‘interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público’.
Tal parâmetro temporal de aferição da validade das condutas administrativas mostra-se, pois, especialmente relevante em matéria de contratos públicos, dado o caráter dinâmico que peculiariza as interpretações dadas pelos órgãos de controle, notadamente pelos Tribunais de Contas, em matérias de licitações e contratações celebradas pela Administração Pública. (…)
Demais disso, a aferição da eventual invalidade dos contratos públicos deverá levar em consideração as orientações gerais da época em que celebrados, sendo vedada a sua suspensão ou invalidação por conta de critérios interpretativos superveniente surgidos (art. 24 da LINDB c/c art. 5º da NLLC).”[10]
O STF, ao afirmar a não recepção de regramento infralegal pela CR/88, prescreveu a manutenção da validade dos atos realizados anteriormente (por mais de duas décadas), sendo a modulação de efeitos conforme o princípio da segurança jurídica (RE nº 600.885, rel. Ministra Cármem Lúcia, STF, julgamento em 09.02.2011), tendo o Ministro Gilmar Mendes já decidido que “há possibilidade de se modularem os efeitos da não recepção de norma pela Constituição de 1988, conquanto que juízo de ponderação justifique o uso de tal recurso de hermenêutica constitucional” (AI 631.533, rel. Gilmar Mendes, STF, julgamento em 12.03.2007).
Daí a legitimidade de um ETP concluir em sentido diverso das contratações públicas até então realizadas ao analisar uma determinada necessidade administrativa, sem que isso signifique ilegalidade dos comportamentos prévios. O fato de não haver limite à análise das atuais circunstâncias e normas torna possível que, em dadas circunstâncias, se justifique procedimento e medidas diversas das realizadas nos certames anteriores. O enquadramento superveniente se dará motivadamente, de acordo com o ordenamento vigente e atento às peculiaridades fáticas e científicas devidamente apuradas no caso.
Tem-se, assim, caracterizada a viabilidade de um ETP motivadamente chegar a uma nova conclusão sobre uma solução capaz de satisfazer dada demanda administrativa e isso não significa, em si, ilegalidade dos atos praticados nas licitações e contratações públicas anteriores.
[0] SANTOS, José Anacleto Abduch. Licitação e contratação pública: de acordo com a Lei nº 14.133/21. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 85
[1] RIBEIRO, Leonardo Coelho. Presunções do ato administrativo, capacidades institucionais e deferência judicial a priori: um mesmo rosto, atrás de um novo véu? Revista de Direito Administrativo Contemporâneo. V. 22, ano 4, p. 85-115, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-fev. 2010
SILVEIRA, Andre Bueno da. Doutrina Chevron no Brasil: uma alternativa à insegurança jurídica. Revista de Direito Administrativo, v. 275, p. 109-146, maio/ago. 2017
[2] Confira-se voto do Ministro Luis Roberto Barroso na: a) ADPF nº 292-DF, rel. Min Luiz Fux, e ADC nº 17-DF, rel. Min. Edson Fachin, Pleno do STJ, julgamento em 25.05.2018, Informativo 903 do STF; b) ACO nº 444-SC, rel. Min. Roberto Barroso, Pleno do STF, julgamento em 27 e 28.06.2018, Informativo 908 do STF
Não foi outro o entendimento do Ministro Alexandre Moraes na ADC nº 17-DF, rel. Min. Edson Fachin, Pleno do STJ, julgamento em 27.09.2017, Informativo 897 do STF
[3] JORDÃO, Eduardo. A sobrevida da deferência pós-Chevron. Disponível em https://youtu.be/UdxPmi9rNb8?si=8UHZ-ZxLc24LCY99. Acesso em 10.01.2025.
[4] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das autolimitações administrativas: atos próprios, confiança legítima e contradição entre órgãos administrativos. Revista de Direito do Estado, ano 1, n. 4, out./dez. de 2006, p. 234.
Confira-se, ainda: MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa MODESTO, Paulo (Coord.). Nova Organização Administrativa Brasileira. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 115-174
[5] Ticiano Alves e Silva. Liege Cunha Araujo. Teoria dos Precedentes administrativos: uma apresentação. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo, editora Revista dos Tribunais, v. 20, ano 3, p. 125, set/out 2015
[6] LOUREIRO, Carlos Henrique Benedito Nitão; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Precedentes administrativos: um caminho para segurança jurídica nas relações entre a Administração Pública e os cidadãos. Revista de Direito Administrativo, Infraestrutura, Regulação e Compliance. n. 17. ano 5. p. 23-41. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, abr./jun. 2021
[7] Sobre a matéria, tem-se a excelente obra de Gustavo Marinho para quem, no âmbito administrativo, a Teoria do órgão (atuação dos agentes é imputada à Administração) corrobora o dever de respostas harmônicas, independentemente das preferências pessoais do agente. “Em tais hipóteses, função relevante caberá ao julgador ou parecerista seguinte, que não poderá exercer uma escolha discricionária, como se qualquer das alternativas estivesse a sua livre disposição. Deverá confrontar os entendimentos conflitantes, de modo a escolher, de maneira fundamentada, qual deles melhor atende à integridade com outras disposições do sistema e à coerência com outras normas e disposições.” (CARVALHO, Gustavo Marinho de. Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2015, p. 156)
[8] Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas
[9] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Nova lei de licitações e contratos administrativos comparada e comentada. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 121
[10] MAFFINI, Rafael. LINDB e a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/21): Em Torno do Regime Jurídico das Nulidades in A Nova Lei de Licitações. São Paulo: Almedina: 2021, p. 386-387; 390
Confira-se, sobre o tema, o artigo 5º, § 1º do Decreto Federal nº 9.830, de 10.06.2019 (“É vedado declarar inválida situação plenamente constituída devido à mudança posterior de orientação geral”); o magistério de Jacintho Arruda Camara in Revista de Direito Administrativo, novembro de 2018, p. 113-134, bem como a decisão do TJDFT: Acórdão 1190814, Processo 07181880420188070000, Relator Des. Waldir Leôncio Lopes Júnior, Conselho Especial do TJDFT, em 06.08.2019, DJE de 15.08.2019.