Concurso público: conceito e reserva legal
O concurso público é o procedimento pelo qual o Estado afere as aptidões dos interessados em integrar o quadro de servidores públicos e seleciona aqueles com quem firmará vínculo funcional. Não se admitem exigências que não possuam relação com as atividades do cargo ou do emprego público, tendo em vista a sua natureza instrumental. De fato, os requisitos impostos pelo edital devem viabilizar o propósito seletivo que é limitado pelo princípio da isonomia e pelo interesse público primário.
No ordenamento brasileiro, tem-se a imposição do princípio da reserva legal relativa, pelo que, originariamente, qualquer restrição ou prerrogativa precisa estar veiculada em lei. Aplicando-se tal premissa aos concursos públicos, pode-se concluir que a exigência de requisitos aptos a excluir determinados candidatos e manter outros no certame deve estar fixada em norma legal. Isso porque se trata de uma inovação primária que implica imposição de limites na esfera subjetiva individual dos interessados, além de regular a atuação administrativa. Consequentemente, é indispensável que a sua previsão originária seja oriunda da vontade exteriorizada pelo Poder Legislativo, no exercício da sua função típica. A lei deve ser editada conforme a distribuição constitucional de competências legislativas. Os artigos 1º, 18, 25 e 30 da CR evidenciam a autonomia política dos entes federativos, donde resulta a competência preliminar de cada pessoa federativa para editar leis próprias que regerão os respectivos certames seletivos.
O próprio artigo 37, I da Constituição condiciona o acesso aos cargos públicos à satisfação dos requisitos legais. Sendo assim, do ponto de vista formal, tem-se clara a adequação do tratamento normativo dos requisitos a serem satisfeitos pelos candidatos dos concursos públicos em lei oriunda do Parlamento.
Embora seja certo que a previsão originária deva estar veiculada em lei, se um determinado requisito nela está consagrado, tem-se como admissível que o órgão ou autoridade competente exerça poder regulamentar ou regulatório, nos estritos limites da normatização técnica cabível na espécie. Assim tem atuado órgãos como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, quando editam resoluções normatizando os concursos públicos da magistratura e do MP. Também se destacam regulamentos como o veiculado no Decreto Federal nº 6.944, de 21.08.2009, que buscou padronizar o procedimento dos concursos públicos no âmbito federal. Na mesma esteira, tem-se atos regulamentares e regulatórios da Administração Pública tratando dos pormenores técnicos, os quais, em cada caso, serão esmiuçados no próprio edital, instrumento convocatório inicial do certame. A Corte Suprema já admitiu a possibilidade de a lei reservar à norma infra legal o detalhamento de requisitos do cargo.[1]
Atentando para o entendimento da jurisprudência de que não é adequado que toda a normatização dos requisitos do concurso esteja fixada em lei em sentido formal, sob pena de se tornar impossível ao Poder Público reger os seus concursos[2], os órgãos públicos, além do exercício do poder regulatório, no momento da elaboração do edital do concurso, analisam quais previsões legais amoldam-se às peculiaridades da seleção necessária, verificando a pertinência de se promover, ou não, determinadas exigências na espécie.
A proporcionalidade dos requisitos do edital
No exercício dessa tarefa de normatizar os requisitos do concurso, o Estado deve se manter alerta ao fato de que, em todas as esferas, os requisitos legais precisam guardar correspondência com a natureza das atribuições inerentes ao cargo público a que se referem, observadas as peculiaridades daquela realidade administrativa específica em questão. Trata-se da observância do princípio da proporcionalidade, o qual exige critérios seletivos adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito.
Há adequação quando uma determinada medida consiste no meio certo para levar à finalidade almejada. Os meios utilizados pelo Estado devem ser próprios em face do fim público perseguido na espécie. Sendo assim, não se pode exigir uma característica de um candidato quando aquele aspecto não é meio de selecionar o melhor profissional de que a Administração necessita. Se a exigência é casuística, arbitrária e desvirtuada do fim público que se deve alcançar, clara é a inadequação do critério discriminatório imposto pela Administração.
Não se trata de aferir se o requisito é o menos oneroso ou se há equilíbrio entre os custos (exclusão de determinados) e os benefícios (administrativos) que lhe são intrínsecos. Aqui, analisa-se se o meio – critério discriminatório capaz de excluir ou manter candidatos no certame –, ou não, próprio para levar o Estado à finalidade pretendida. Se houver inadequação absoluta, ou seja, se o requisito não conduzir de modo algum ao resultado buscado que é a seleção de um profissional adequado, o critério editalício é desproporcional. Assim ocorre se, por exemplo, em um concurso para bibliotecária de uma escola pública, a Administração exige que os candidatos submetam-se a teste de força e resistência física. Já em situações diversas, se a análise do requisito viabiliza de alguma forma que o fim seja alcançado, tem-se presente a adequação. É o que se tem quando o mesmo teste de aptidão física é exigido para o provimento de cargos policiais, cujas atribuições exigem um mínimo de vigor, força e resistência.
O fato de um requisito ser adequado não é bastante. Além de conduzir minimamente para o fim (juízo de adequação), o Estado busca assegurar que se faça a exigência mais suave possível, satisfeito o mínimo de que a Administração necessita. Destarte, é preciso que o Poder Público, ao optar pelo critério discriminatório, imponha a menor restrição capaz de levar à seleção do profissional que exerça adequadamente as atribuições públicas. O ponto a ser identificado refere-se à determinação de qual é o mínimo capaz de atender a demanda estatal. Qual é a menor restrição decorrente de um requisito editalício que satisfaz a necessidade seletiva do Estado? É esse meio mais suave que se mostra como critério discriminatório necessário. Além desse limite, tem-se ofensa à proporcionalidade. Com base nesse raciocínio, entendeu-se, por exemplo, que exigir experiência jurídica mínima de 03 (três) anos para o candidato interessado em disputar o cargo de magistrado ou do ministério público é a forma mais suave de se assegurar um mínimo de maturidade e competência na carreira. Não se restringiu excessiva ou desnecessariamente o direito à participação dos candidatos, mas, ao contrário, foram observados limites proporcionais à consecução da finalidade pública pretendida.
Por fim, é preciso que se determine a relação custo-benefício do requisito exigido em face do conjunto de interesses em jogo, de modo a ponderá-la mediante o exame dos eventuais danos e dos resultados benéficos viáveis na espécie. O que se investiga, portanto, é se o resultado da exigência editalícia é proporcional à restrição imposta aos interessados no cargo ou emprego público. Em outras palavras, analisa-se os meios empregados pelo Estado à luz do fim público que justifica a sua intervenção. Em relação às exigências adequadas e necessárias, tem-se como improvável que um requisito constranja desproporcionalmente a esfera de um determinado candidato, em se considerando a necessidade pública primária de formar um quadro minimamente eficiente. Nesse contexto, se a Administração constrange de modo proporcional a esfera jurídica de um candidato em face do bem comum que assim justifica, não há qualquer vício sob este aspecto.
A proporcionalidade em sentido estrito, portanto, traduz a ponderação que deve haver entre o gravame imposto (exclusão dos candidatos que não satisfaçam os requisitos exigidos) e o benefício trazido (formação de um quadro de pessoal capaz de bem exercer as competências estatais). O que se tem em vista, aqui, é aferir o equilíbrio entre os eventuais danos causados aos interessados nos cargos ou empregos públicos e as vantagens decorrentes do atingimento da finalidade pública (seleção adequada dos agentes). Como já se esclareceu, em princípio, afigura-se razoável a carga coativa que exclui candidatos que não satisfazem as necessidades públicas e o benefício social presente quando se viabiliza a formação de um competente quadro de agentes públicos. Não há dúvida que o grau de importância da promoção do fim (agentes públicos competentes) justifica a restrição causada por critérios discriminatórios adequados e necessários (com a exclusão daí decorrente de alguns candidatos).[3] A supremacia do interesse social justifica a constrição imposta a eventuais interessados em disputar o concurso. Basta, para tanto, um exame global e contextualizado do comportamento administrativo, de modo a evidenciar que se trata do meio comprovadamente menos danoso e mais equilibrado na espécie.
Nesse contexto, cabe ao Estado atuar ciente que a proporcionalidade, nos concursos públicos, sustenta a exigibilidade de requisitos adequados, necessários e que se justificam à luz das necessidades administrativas. Ao iniciar os diversos concursos públicos, deve excluir exigências formais inócuas, as quais não significam resguardo do interesse público, mesmo que previstas abstratamente em lei. O Poder Público deve estar ciente de que a interpretação do instrumento convocatório dos certames seletivos não pode levar a exigências anódinas e que não consubstanciam proteção do bem comum.
Nenhuma praxe administrativa que não encontra fundamento em exigência razoável pode levar a um excesso incompatível com o caráter competitivo do certame e com a necessidade de eficácia na atuação estatal, sendo nesse sentido a doutrina e a jurisprudência pátrias.[4]
Daí porque o Estado, antes de lançar cada edital, deve aferir se requisitos previstos em lei amoldam-se às peculiaridades administrativas que limitam a própria incidência do ordenamento na espécie. Essa tarefa exerce-se em relação aos requisitos objetivos e subjetivos do concurso público. A doutrina define os requisitos objetivos como aqueles que guardam pertinência com as funções do cargo ou emprego (como é o caso da exigência de títulos e provas de conhecimento) e os requisitos subjetivos como aqueles que dizem respeito à pessoa do candidato (escolaridade, aptidão psicológica, idade e boa conduta).[5]
Requisitos subjetivos e limite de idade
Dentre os requisitos subjetivos, é certo que ainda não se encontra posição uníssona e abstrata que possa ser observada indistintamente nos concursos no que tange a exigências como altura, sexo, idade e peso. Primeiramente, cumpre reiterar que qualquer desses critérios é exigido pelo Estado quando a natureza das atribuições do cargo ou emprego assim justifica. É exatamente a análise das situações em que se justifica, ou não, uma exigência dessa natureza que enseja controvérsia em cada hipótese específica. Afinal, nem sempre é clara, objetiva e absoluta a compreensão a propósito da adequação, necessidade e razoabilidade de um critério discriminatório. A própria análise sobre a natureza das atribuições do cargo ou do emprego pode estar inserida em um espaço de discricionariedade que implica liberdade de a Administração eleger uma dada característica como essencial, ou não, para um cargo ou emprego público. O Estado, ao conduzir seus certames seletivos, deve permanecer adstrito ao espaço discricionário que lhe foi reservado, limitando-se a estabelecer no edital requisito como condição para o exercício da função pública em questão se assim for razoável na espécie.
Especificamente quanto à imposição de limite de idade, um dos parâmetros mais relevante sobre a matéria é a Súmula 683 do Supremo Tribunal Federal: “O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.” O referido enunciado supera o entendimento segundo o qual não seria admissível restringir, em razão da idade, inscrição em concurso para cargo público. O próprio STF havia estipulado tal inadmissibilidade em sede de ato administrativo na antiga súmula 14. Atualmente, não remanesce qualquer dúvida quanto à legitimidade de se exigir que candidatos se enquadrem em determinada faixa etária quando essa discriminação é razoável em face das atribuições do cargo ou do emprego público. Tal juízo positivo no tocante à legitimidade de imposição de limites mínimo e máximo já ocorreu no tocante a cargos do Ministério Público, ao quadro de oficiais do Corpo de Bombeiros Militar, bem como a cargos das carreiras militares e das Forças Armadas[6]. Em contrapartida, se não há fundamento nas atribuições do cargo para se estabelecer restrições quanto à idade do candidato, os Tribunais têm proclamado a inconstitucionalidade de exigência editalícia nesse sentido. [7]
Daí se infere ser necessário, em cada situação, analisar as atribuições específicas do cargo ou emprego público em tese, concluindo sobre a compatibilidade das suas atribuições e a exigência de um limite mínimo e/ou máximo de idade, o que exigirá análise técnica e motivação suficiente das conclusões administrativas. Essa a conclusão que decorre do próprio teor da Súmula 683 do STF: “O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.” Cabe, portanto, a cuidadosa aferição da congruência entre atribuições do cargo e o limite de idade indicado, fundamentadamente, em cada situação.
[1] RMS nº 25.294-DF, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma do STF, DJe de 18.12.2008.
[2] Agravo de Instrumento nº 2007.03.00.082141-3, rel. Juiz Convocado Silva Neto, 2ª Turma do TRF 3ª Região, DJF3 de 17.12.2009, p. 240.
[3] REsp nº 1.109.505-RJ, rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma do STJ, DJe de 29.06.2009.
[4] ZANCANER, Weida. O Concurso Público e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade in Concurso público e constituição. Fabrício Motta (Coordenador). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 167. Apelação Cível e Reexame Necessário nº 20010110811059, Acórdão nº 172.555, relator Desembargador Wellington Medeiros, 3ª Turma Cível do TJDF, julgamento em 10.03.2003, DJ de 21.05.2003 p. 98 e Apelação Cível nº 2008.71.003196-0, rel. Des. Valdemar Capeletti, 4ª Turma da 4ª Região, DE de 24.08.2009
[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11ª ed., Rio de Janeiro: Lumen., p. 525.
[6] RE nº 184.635-MT, rel. Min. Carlos Velloso, 2 ª Turma do STF, DJU de 04.05.01, p. 35; Agravo Regimental no RE nº 425.760-DF, rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma do STF, DJe de 20.02.2014; RE nº 176.081-RJ, rel. Min. Octávio Gallotti, 1ª Turma do STF, DJU de 18.08.2000, p. 93; RMS nº 18.759-SC, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma do STJ, DJe de 01.07.2009 e Ag. Regimental no REsp nº 980.644-RS, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma do STJ, DJe de 14.12.2009.
[7] RE nº 212.066-RS, rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma do STF, DJU de 12.03.99; RE nº 141.357-RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma do STF, DJU de 08.10.2004, p. 9; RE nº 217.226-RS, rel. Min. Marco Aurélio, 2ª Turma do STF, DJU de 27.11.98, p. 23; RE nº 177.570-BA, rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma do STF, DJU de 28.02.97, p. 4074 e REsp nº 642.008-RS, rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma do STJ, julgamento em 10.8.2004, Informativo 217 do STJ.