1. Um breve enquadramento do tema
Periodicamente, o direito administrativo vive um acirramento em seu movimento pendular. Experimentamos reações radicais às atividades mais comuns que prevaleciam (ou se buscava fazer prevalecer) em fase imediatamente anterior. Recentemente, acentuou-se o discurso contra o potencial sancionador do Estado, sendo que a crítica ganhou cores mais vivas em relação à seara ambiental, cuja proteção vem sendo responsabilizada pela ausência de desenvolvimento econômico nacional.
Se não era rara uma má vontade com o poder de polícia ambiental, ao argumento de que procedimentos administrativos “levam anos para serem concluídos”, agora temos a negação da própria destruição ambiental como fato e a ausência de investimentos em atividades basilares como fiscalização e julgamento tempestivo dos autos de infração. A isso se acresce a defesa cada vez mais aberta da legitimidade de se fazer prevalecer o crescimento econômico , a despeito de quaisquer ônus ambientais, o que consubstancia posição contrária àquela já absorvida inclusive pelos Tribunais.
Antigos questionamentos, considerados já superados doutrinariamente, retornam ao topo das discussões administrativas, como p. ex., se é legítimo lavrar novo auto de infração quando a omissão privada em cumprir determinação de órgão de polícia ambiental se mantém. Essa discussão ganha relevância em se tratando de infrações continuadas, a ensejar procedimentos sucessivos no tempo, com a instauração do procedimento subsequente independentemente da conclusão do anterior. Há quem alegue ocorrer “bis in idem” no caso de se instaurar um segundo procedimento, sem a conclusão do precedente, o que requer entendimento a propósito dos atrasos na atividade estatal e da própria teoria administrativa sobre infrações ambientais.
2. A intolerância com a inércia e intempestividade da atuação estatal
O início do século XXI viu ganhar força na sociedade e na própria estrutura do Poder Público o inconformismo com a inércia e letargia relativas ao exercício das competências estatais. Torna-se evidente que, por vezes, a omissão no cumprimento do dever traz consequências mais desastrosas do que a atuação irregular no tocante às formalidades administrativas. Nesse contexto, o que se espera é uma atuação tempestiva e legítima do Estado, sendo inadmissível a tolerância comum em relação ao silêncio administrativo.
Não há dúvida de que a doutrina colaborou significativamente para construir os fundamentos com base em que se impõe o célere dever de agir do agente público. Embora inicialmente tenha se entendido apenas ser lícito ao administrador agir diante de expressa permissão legal, posteriormente foi desenvolvida entre os estudiosos do direito administrativo a teoria do dever-poder como limitação ao exercício das competências públicas. Segundo a referida teoria, se uma norma autoriza um comportamento, prevendo determinada competência para um agente público, o mesmo não tem a faculdade de escolher agir, ou não. Fixada a competência no ordenamento, cumpre ao agente competente agir dentro dos limites permitidos pela norma, tempestivamente. Mesmo na hipótese de ser autorizada a prática de um ato discricionário, não há que se falar em escolha de cumprimento, ou não, do ordenamento. Haverá, sempre, o dever de observar a norma, mediante o exercício a competência prevista, independentemente do caráter vinculado ou discricionário da mesma. Daí se dizer que a autorização do ordenamento – poder – resulta em obrigação de agir – dever, aspecto condicionante de toda atuação pública.
Trata-se da própria ideia de função tão bem explorada por Celso Antônio Bandeira de Melo. O agente público não é titular do direito que lhe incumbe exercer, mas apenas tem em seu favor estabelecidos poderes instrumentais do dever que lhe é imposto. Assim sendo, desempenha uma função vinculada sempre ao interesse público, independentemente de suas preferências ou vontade pessoais. E, no tocante à necessidade do seu exercício, tem-se a obrigatoriedade da atuação, independentemente de eventual discricionariedade no conteúdo da atividade. Com efeito, a própria noção de função impede que se compreenda a competência administrativa como faculdade, porquanto certa a sua qualificação como dever:
“Tem-se função apenas quando alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente de função deverá suprir.
Segue-se que tais poderes são instrumentais: servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados. Logo, aquele que desempenha função tem, na realidade, deveres-poderes. Não ‘poderes’, simplesmente. (…)
Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetiva-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. É em nome do interesse público – o do corpo social – que tem de agir, fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce ‘função’, instituto – como visto – que se traduz na idéia de indeclinável atrelamento a um fim preestabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro.”[1]
Com base em tais considerações, tem-se que a legalidade deixa de ser a faculdade de exercer – ou não – as atribuições autorizadas pelo ordenamento, para se transformar em exigência de cumprimento tempestivo das ações ou omissões estipuladas, de forma geral e abstrata, nas normas jurídicas. Tendo sido previsto na lei determinado comportamento estatal, este passa a ser obrigatório e vinculante do agente público competente.
Tal entendimento do princípio da legalidade traz inúmeras repercussões práticas em situações como a ora em exame, em especial no tocante ao dever de agir do agente responsável pela instrução e decisão do procedimento administrativo, porquanto afastada a possibilidade de se relevar as consequências do silêncio ilícito estatal. Sob este novo prisma, se um agente não cumpre a obrigação de atuar que lhe é imposta, deverá arcar com os efeitos sancionatórios daí resultantes, situação que não pode ser ignorada pela pessoa jurídica à qual está o mesmo vinculado.
Não se ignora a difícil situação a que se sujeita o quadro de pessoal do Estado, com o excesso de demandas, principalmente relativas à proteção do meio ambiente, e insuficiência de servidores aptos ao atendimento de todas as necessidades sociais, ao que se acrescem as clássicas e não solucionadas dificuldades remuneratórias das carreiras estaduais. Contudo, referido contexto não traz consigo autorização implícita para a condescendência generalizada relativa aos efeitos danosos do não cumprimento das competências públicas. Impõe-se sejam tomadas providências imediatas na tentativa de sanar as causas da demora no término dos processos administrativos, tornando desnecessária qualquer consideração sobre a incidência de penalidades sucessivas, sem a conclusão de procedimentos anteriores.
No presente momento, ausente tal contexto em boa parte das realidades institucionais, impõe-se analisar a viabilidade, ou não, de se aplicar penalidade administrativa na hipótese de a empresa ou a pessoa física manter transgressão ambiental, sem que ainda tenha sido concluído o procedimento iniciado com base em auto de infração lavrado anteriormente. Em outras palavras: o atraso do Estado é suficiente para impedir a atuação da polícia administrativa ambiental? Qual atividade dos órgãos de fiscalização e sancionamento é cabível diante de uma infração continuada? Há “bis in idem” se se instaurar mais de um procedimento neste caso?
3. Infrações ambientais continuadas: conceito e aspectos controversos
Nos termos do artigo 70 da Lei Federal nº 9.605/98, caracteriza infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. Uma vez comprovada a existência da infração, é cabível, em cada esfera da federação aplicar uma das sanções previstas no referido diploma legal: I – advertência; II – multa simples; III – multa diária; IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; V – destruição ou inutilização do produto; VI – suspensão de venda e fabricação do produto; VII – embargo de obra ou atividade; VIII – demolição de obra; IX – suspensão parcial ou total de atividades; XI – restritiva de direitos (artigo 72 da Lei nº 9.605/98).
Autores como Régis Fernandes de Oliveira, ao tartar da matéria, classificam as infrações quanto à sua duração em três categorias: são “instantâneas, se se esgotam num só instante, ou então, permanentes, quando sua duração se protrai no tempo. Pode existir, também, a infração continuada, quando as lesões são instantâneas, mas diversas, operadas em fluência do tempo”.[2]
Quando se trata de infração comissiva, a desobediência ao dever legal tem, em regra, consumação instantânea. Diante da proibição de caça, p. ex., o abate de um animal protegido caracteriza infração manifesta e pontual. Não há dúvida de que a conduta ativa antijurídica implica, em sua própria essência, consumação imediata, atraindo a repreensão civil, administrativa e penal adequada à espécie. Há quem separe as infrações de efeitos instantâneos daquelas instantâneas de efeitos permanentes: as primeiras consumam-se em um resultado que ocorre em um só momento; as segundas consumam-se em um único instante, mas os seus efeitos seguem produzindo-se, independentemente da vontade do infrator. Situação diversa é a das infrações continuadas que se dão em razão de mais de um comportamento ilícito do infrator; esse mesmo comportamento segue-se de modo contínuo no tempo, o que requer cautela na caracterização e modo a evitar “bis in idem”.
No caso da forma omissiva, é mister definir, em primeiro plano, a partir de qual momento tem-se evidenciada a inobservância do dever presente na espécie. Ultrapassado este período, a infração se define e a conduta omissiva torna-se relevante para fins de penalização administrativa. Enquanto permanecer a omissão, persiste a conduta caracterizadora da infração administrativa. Em outras palavras, a inação, enquanto subsistir, consubstancia conduta ilícita que não se esgota em um dado momento, mas, ao contrário, persevera até que a ordem estatal seja cumprida.
No Direito Penal, a infração omissiva que se protai no tempo caracteriza-se como permanente:
“A teoria do crime permanente tem sido exposta de diferente maneira pelos vários autores que a tem abordado com maior desenvoltura. Todavia, há um denominador comum entre todos eles, como bem salienta Marcello Gallo: é o de que no delito permanente, o sujeito ativo do crime produz com a própria conduta um estado de antijuridicidade que perdura segundo os ditames de sua vontade. Ferri, por exemplo, fala que são ‘crimes permanentes aqueles que com a sua consumação produzem uma condição antijurídica, que se protai até quando queira o delinqüente. Maggiore, após dizer que se conceitua, como permanente, o crime em que o estado antijurídico perdura no tempo, acrescenta, em seguida, que se encontra no poder do agente fazer cessar ou continuar a situação antijurídica. E em Antolisei o que se lê é o seguinte: ‘Chamam-se permanentes os crimes em que, segundo a figura abstrata delineada em lei, o fato correspondente dá origem a um estado de dano ou perigo que se protai no tempo e pode cessar por vontade do agente.
Biagio Petrocelli, que apanhou com muita agudeza os aspectos básicos do crime permanente, ensina que existe tal infração penal quando em um dado momento, o crime se completa e se realiza em todos os seus elementos constitutivos, mas sem exaurir-se, pois a conduta do agente continua, ininterruptamente, em todos os instantes sucessivos, a realizar a lesão do interesse que a norma tutela, até que sobrevenha ou ação contrária do réu, ou qualquer outra força que ponha fim ao delito.”[3]
Por conseguinte, na seara penal, tem-se que, em se tratando de crime permanente, a lesão do bem objeto de tutela consiste num fato que perdura, apenas cessando a consumação quando finda a ação ou omissão ilícita. Afirma-se, assim, que no crime permanente existe um ilícito de duração, uma vez que a duração do comportamento antijurídico se protai no tempo, sem interrupção.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu: “O delito, além da conduta, evidencia o resultado (instante de dano, ou perigo ao bem tutelado, consoante a estrutura do tipo. Aqui, convém relembrar a classificação – crime instantâneo e crime permanente. O primeiro evidencia consumação quando a conduta (ação ou omissão) atinge o resultado. O autor atinge órgão vital da vítima; incontinente, o objeto jurídico é sacrificado. No crime permanente, a realidade é outra. O agente precisa insistir, repetir os atos típicos da conduta. Só com a reiteração se alcança o resultado juridicamente relevante. (…) No crime permanente, a conduta se protai no tempo; enquanto o agente a mantiver a consumação se prolonga; cessa apenas quando concluída a ação.”[4]
Cumpre explicitar não ser aplicável, integralmente, ao Direito Administrativo Sancionador do Meio Ambiente, a teoria do Direito Penal retro mencionada, inclusive com as consequências relativas à penalização do infrator.
Pode-se dizer que, para fins de punição administrativa, uma infração cuja eficácia se estende ao longo de um determinado espaço de tempo caracteriza-se como permanente. A manutenção do estado antijurídico decorrente da abstenção depende da vontade do infrator, sendo certo que o fato omissivo se renova continuadamente. É lícito afirmar que, ultrapassada a fase em que se revelou o comportamento ilegal, tem-se a manutenção desse evento, sem que se ponha termo à situação lesiva criada. Não há dúvida de que, neste caso, há continuidade, sem interrupção, da situação ilegal de ofensa ao bem jurídico afetado, independentemente de se determinar a existência concreta de uma fonte normativa de um dever de fazer cessar a omissão ilícita. Não se trata, contudo, de infração instantânea de efeito permanente, mas de infração permanente que justifica reiteradas penalidades administrativas. Basta a omissão do administrado, quando deve e pode agir, para tipificar a infração administrativa que, prolongada no tempo, enseja renovada repreensão estatal.
Não se está diante de uma única conduta omissiva, mas de comportamento repetido exteriorizado em ofensa insistente a dado bem jurídico. Destarte, não se compreende que a infração decorrente da inobservância de decisão de um órgão ambiental, em sua manifestação omissiva, como delito de consumação pontual, capaz de atrair uma só penalidade. Se, após o primeiro momento de resistência ao cumprimento da decisão estatal anterior, tem-se a continuidade da omissão ilícita, atraem-se as consequências jurídico-administrativas cabíveis enquanto permanecer a inação. A falta no cumprimento do dever perdura no tempo, renovando-se a ofensa enquanto se mantiver em execução a atividade lesiva.
Impõe-se reconhecer, entretanto, não se mostrar razoável aplicação de penalidades sucessivas com pequenos intervalos temporais. Com efeito, não faria sentido algum que lavrado auto de infração pelo descumprimento de uma decisão em um determinado dia, retornasse o fiscal em uma semana e lavrasse outro auto de infração, ensejando simultâneos procedimentos administrativos. Cumpre observar a proporcionalidade, princípio vinculante também da realidade fiscalizatória e sancionatória da esfera ambiental.
3.1. A proporcionalidade como limite
Decorre da proporcionalidade – princípio cuja observância se requer em qualquer Estado Democrático de Direito – a exigência do exercício moderado da competência administrativa. Não pode o Poder Público atuar arbitrária e irracionalmente, estando proibidos o excesso e a insuficiência da ação administrativa. Se não é admissível que o Estado, lavrado um auto de infração em face de um ilícito ambiental, mantenha-se inerte diante da eternização da omissão privada em cumprir a obrigação lhe imposta pela polícia administrativa, igualmente não é legítimo reconhecer-lhe a prerrogativa de fazer incidir sucessivas penalidades, em diminutos períodos de tempo. Em razão da proporcionalidade, impõe-se a conduta adequada, necessária e suficiente na espécie, bem como o dever de perseguir, de modo refletido, o equilíbrio entre a proteção da liberdade individual e dos direitos da coletividade, vale dizer, entre o interesse privado e o interesse público.
Resulta do referido princípio a necessidade de sopesamento dos valores juridicizados no ordenamento em face das circunstâncias concretas, caracterizando violação a este dever quaisquer exageros ou omissões estatais injustificadas. Ao praticar determinada conduta, como penalização de infração ambiental, deve o agente público tornar concreto o máximo da proteção ao interesse da sociedade no tocante à preservação dos recursos naturais, evitando simultaneamente o sacrifício desnecessário das garantias asseguradas às pessoas físicas e jurídicas pelo ordenamento vigente.
Na tentativa de delimitar o conceito, Alexy, ao tratar da proporcionalidade, distingue a adequação (se uma dada medida é o meio para levar à finalidade almejada), a necessidade (postulado do meio mais benigno/menos gravoso) e a proporcionalidade no sentido estrito (postulado de ponderação entre meios e fins). Segundo a professora Daniela Mello Coelho:
“A adequação significa que o estado gerado pelo poder público por meio do ato administrativo ou da lei e o estado no qual o fim almejado pode ser tido como realizado situam-se num contexto mediado pela realidade à luz de hipóteses comprovadas. A necessidade, por sua vez, significa que não existe outro estado que seja menos oneroso para o particular e que possa ser alcançado pelo poder público com o mesmo esforço ou, pelo menos, sem um esforço significativamente maior. Também aqui o legislador e a administração devem basear-se em hipóteses plausíveis e/ou comprovadas, que devem estar presentes para que, no âmbito de sua maior ou menor liberdade de arbítrio, estejam autorizados a tomar as medidas que julgarem necessárias.”[5]
Em sentido estrito, é necessário determinar a relação custo-benefício da medida em face do conjunto de interesses em jogo, de modo a ponderá-la mediante o exame dos eventuais danos e dos resultados benéficos viáveis na espécie. Nesse mister, o operador do direito “deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”.[6]
Aplicando-se tais premissas à hipótese em comento, denota-se que é medida própria para se chegar à proteção ambiental fazer incidir as penalidades cabíveis, se mantida por longo prazo a omissão privada em cumprir a obrigação lhe imposta pelo órgão de polícia competente. A necessidade de se utilizar o meio mais benigno afasta a legitimidade de se aplicar após pequeno intervalo de tempo nova penalidade, sem excluir a possibilidade de lavratura de outro auto de infração após razoável prazo, como, v.g., decurso de um ano sem atendimento à decisão administrativa anterior. Tal medida, na relação de custo benefício, deixa evidente a ponderação entre o gravame imposto (penalidades administrativas) e o benefício trazido (repressão às infrações ambientais, com a finalidade pedagógica de desincentivar o eterno descumprimento das decisões administrativas dos órgãos e entidade de polícia ambiental).
Não se ignore o contexto social e político em que se insere a incidência das penas em exame. Afinal, tem-se clara nocividade social das infrações ambientais, merecedoras de todos os rigores da legislação em face do elevado grau de antijuridicidade danosa do comportamento omissivo lesivo aos recursos da natureza. A carga coativa imposta ao infrator é proporcional ao nível de repulsa que a comunidade demonstra, atualmente, quanto à destruição do meio ambiente. Nesse sentido, a lavratura de novo auto de infração, diante da insistência privada em desobedecer a ordem administrativa protetiva do interesse público, tem intensidade proporcional à necessária para a proteção do bem jurídico perseguido pela Administração. Se se adotará a via da consensualização, mediante compromissos de ajuste de conduta, ou se será necessário levar a termo o procedimento com aplicação das sanções previstas no ordenamento, somente em cada caso se mostrará possível ponderar, diante das especificidades fáticas e jurídicas da normatização incidente na espécie.
4. Enquadramento da infração como continuada e a ação estatal cabível
Ultrapassado o prazo em que seria razoável o atendimento da ordem administrativa de proteção ambiental (o que se aferirá em cada caso concreto) e ausente qualquer medida do interessado na remoção dos vícios e irregularidades, há continuidade indefinida do comportamento omissivo antijurídico. A infração somente exaure-se quando cessar o comportamento ilegal. Enquanto isto não ocorrer, sujeita-se o administrado às sanções previstas no ordenamento jurídico, admitida a lavratura de novo auto de infração, independentemente da conclusão do procedimento administrativo anterior, mormente se já decorrido prazo razoável em relação ao auto precedente.
A continuidade infracional, máxime diante do distanciamento temporal entre as fiscalizações suficiente para interrupção da ilicitude, evidencia o acerto da incidência de nova sanção. Afinal, não se trata de ilícito único, o que tornaria possível somente reprimenda una. Ao contrário, há uma acumulação material de ilícitos omissivos, o que enseja penalidades igualmente cumuladas.
Entende-se, assim, que a permanência infracional subsiste à lavratura do auto e posterior processo administrativo. Por meio desse juízo de ponderação, procura-se conciliar os interesses privados com o interesse da comunidade, já que, como vem decidindo o TJMG, “A proteção ao meio ambiente, por se tratar de um direito fundamental para preservação do planeta, pertencente à humanidade e às gerações futuras, constitui matéria imprescritível. O art. 225, da CF, impõe ao poder público o dever de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Na ementa do citado “decisum”, advertiu-se para a necessidade de tomar medidas como a ora em comento “de forma a assegurar um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e, principalmente, para as futuras gerações. Afinal, como bem adverte Dalai Lama, ‘podemos perdoar a destruição do passado causada pela ignorância. Hoje, no entanto, somos responsáveis por preservar o meio ambiente para as gerações futuras.’”[7]
Destarte, trata-se de um dever-poder de agir, o que impõe ao Estado, diante da apuração de fato regulado como infração administrativa, o dever de tomar as medidas cabíveis, tais como lavratura do auto de infração e o subsequente processamento célere e capaz de assegurar a efetividade da polícia ambiental. Se não concluído o procedimento anterior e mantido por significativo período de tempo o ilícito ambiental, não se pode admitir o enfraquecimento da resistência do Estado à omissão privada, que leva à eternização da falta no cumprimento do dever legal pela pessoa física ou jurídica. Mostra-se legítimo lavrar novo auto de infração fundado na continuidade da omissão antijurídica, claramente ofensiva ao interesse público primário, sem qualquer possibilidade de se falar em “bis in idem” na espécie.
5. Conclusão
Com fulcro em tais ponderações, entende-se legítimo lavrar novo auto de infração se mantida a omissão privada em cumprir determinação de órgão de polícia ambiental, independentemente da conclusão de procedimento administrativo anterior, mormente se evidenciado distanciamento temporal entre as fiscalizações suficiente para interrupção da ilicitude em questão. Observados os princípios da proporcionalidade, da legalidade e da supremacia do interesse público, tal como acima explicitado, não há que se falar em arquivamento do novo procedimento administrativo, com a devida vênia dos posicionamentos contrários.
[1] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 88-89.
[2] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 71.
[3] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, v. II, Campinas, Bookseller, p. 361-362.
[4] REsp nº 171.156-SP, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6ª Turma do STJ, Revista dos Tribunais, v. 766, p. 674.
[5] COELHO, Daniela Mello. Administração Pública Gerencial e Direito Administrativo”. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 96
[6] Revista de Direito Administrativo, v. 227, p. 331
[7] Processo nº 1.0035.04.032284-0/001, rel. Des. Maria Elza, TJMG, julgado em 15.09.05, DJMG de 21.10.05