1. Da caracterização da improbidade administrativa
O primeiro aspecto que cabe a qualquer gestor ou controlador que se depara com a possibilidade de aplicar as sanções previstas na Lei Federal nº 8.429/92 e medidas cautelares como indisponibilidade de bens é definir se está diante, ou não, de hipótese enquadrável como improbidade administrativa. Para tanto, é preciso definir a própria noção de improbidade, objeto de significativa controvérsia doutrinária e jurisprudencial.
2. A improbidade administrativa à luz da controvérsia doutrinária
A doutrina clássica do direito administrativo já identificou probidade e moralidade, bem como improbidade com qualquer agir imoral. Alvaro Lazzarini lembra que “Desde a sua origem latina, como se verificou, o vocábulo probidade se relaciona com o vocábulo moralidade”, sendo referência doutrinária à “probidade como um princípio da Administração, mas como um dever inerente necessário à legitimidade de seus atos’.”[1] Também Alexandre Moraes escreveu que “O princípio da moralidade está intimamente ligado com a idéia de probidade, de dever inerente do administrador público”, valendo-se de Maurício Ribeiro Lopes, segundo quem “‘o velho e esquecido conceito de probus e do improbus administrador público está presente na Constituição da República, que pune a improbidade na Administração com sanções políticas, administrativas e penais’.
A conduta do administrador público em desrespeito ao princípio da moralidade administrativa enquadra-se nos denominados atos de improbidade, previstos pelo art. 37, § 4º, da Constituição Federal, e sancionados com a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível, permitindo que ao Ministério Público a propositura de ação civil pública por ato de improbidade, com base na Lei nº 8.429/92 para que o Poder Judiciário exerça o controle jurisdicional sobre lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio público.”[2]
Trazendo a ideia de honestidade para a discussão conceitual, Fábio Medina Osório assevera que “a improbidade decorre da quebra do dever de probidade administrativa, que descende, diretamente, do princípio da moralidade administrativa, traduzindo dois deveres fundamentais aos agentes públicos: honestidade e eficiência funcional mínima. Daí decorre a idéia de que improbidade revela violação aos deveres de honestidade lato sensu e eficiência profissional em sentido amplo. Ímprobo é o agente desonesto, tanto que se fala, de modo pouco técnico, em lei anti-corrupção (terminologia impregnada de conteúdo do direito penal), indicando-se que a falta de honestidade é causa de improbidade; mas também ímprobo o agente incompetente, aquele que, por culpa, viola comandos legais, causando lesão ao erário, demonstrando ineficiência intolerável no desempenho de suas funções. (…) O conteúdo da improbidade é indeterminado, porém não indeterminável, donde a necessidade de exame da Lei 8.429, que fornece subsídios ao ato conceitual.
Não se olvide que toda a doutrina do desvio de poder, no direito administrativo, certamente é relevante e fundamental na fixação do conteúdo da improbidade, pelo que necessário também o exame das normas repressoras da improbidade à luz de tais pressupostos teóricos.”[3]
Parte da doutrina, buscando traçar a diferença conceitual entre moralidade administrativa e probidade, busca referências em lições como as veiculadas em estudo pioneiro de Marcelo Figueiredo: “o princípio da moralidade administrativa é de alcance maior e mais genérico conformando a todos os poderes e funções do Estado uma atuação de acordo com o padrão jurídico da moral, da boa-fé, da lealdade, da honestidade, enquanto o princípio da probidade está exclusivamente vinculado ao aspecto da conduta (do ilícito do administrador. Mencionado administrativista leciona que a probidade, desse modo, seria o aspecto ‘pessoal-funcional’ da moralidade administrativa.”[4].
A doutrina pátria passou a vincular a improbidade a atos desonestos ou desleais para com a Administração Pública, “praticados por agentes seus ou terceiros, com os mecanismos sancionatórios inscritos na Lei nº 8.429/92, que exigem aplicação cercada das devidas cautelas para não transpor os limites finalísticos traçados pelo ordenamento”, defendendo “que o constituinte quis coibir a lesividade à moral positivada, em si mesma, inclusive naqueles casos em que não se vislumbram, incontrovertidos, os danos materiais.”[5]
O constitucionalista José Afonso da Silva, por sua vez, definiu a improbidade administrativa como uma imoralidade administrativa qualificada: “A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.” Para ele, “A improbidade é tratada ainda com mais rigor, porque entra no ordenamento constitucional como causa de suspensão dos direitos políticos do ímprobo (…), conforme estatui o art. 37, § 4º (…)”.[6] Assim sendo, a improbidade administrativa, para José Afonso da Silva, não seria propriamente sinônimo de imoralidade administrativa. Esta teria um sentido mais amplo, de sorte que nem toda imoralidade administrativa conduziria, necessariamente à suspensão dos direitos políticos, salvo como pena acessória em condenação criminal. A improbidade, segundo o constitucionalista paulista, diz respeito à prática de atos que gere prejuízo ao erário público em proveito do agente e que corresponda vantagem ao ímprobo. O ímprobo, nessa perspectiva, é o “devasso” da Administração Pública.
Não se afastando dessa lição, Luiz Manoel Gomes Junior e Rogerio Favreto também sublinham que “nem toda ilegalidade deve ser considerada um ato de improbidade administrativa. Mas a recíproca é verdadeira, já que toda vez que se pratica uma improbidade administrativa há violação do Sistema Normaltivo (ilegalidade acentuada. (…) há necessidade de separar a ilegalidade da improbidade administrativa, podendo ser afirmado que a improbidade administrativa é uma ilegalidade com um plus, uma evidente nota de desonestidade.”[7]
No mesmo sentido, Maurício Antônio Ribeiro Lopes escreve: “O dever de probidade decorre diretamente do princípio da moralidade que lhe é anterior e hierarquicamente superior pelo maior grau de transcendência que os princípios têm em relação aos deveres. Pode-se dizer que a probidade é uma das possíveis formas de externação da moralidade. É a via onerosa da moralidade, posto que esse dever tem um cunho patrimonial inafastável.”[8]
Ganhou força o entendimento de que a improbidade é espécie do gênero imoralidade administrativa, qualificada pela desonestidade de conduta do agente público, mediante a qual este enriquece ilicitamente, obtém vantagem indevidamente, para si ou para outrem, ou causa dano ao erário: “Essa qualificadora da imoralidade administrativa aproxima a improbidade administrativa do conceito de crime, não tanto pelo resultado, mas principalmente pela conduta, cuja índole de desonestidade manifesta a devassidão do agente.” Nessa porfia, nem toda ilegalidade caracterizada pelo descumprimento de princípios constitucionais é enquadrável como devassidão ou desonestidade do seu interlocutor, pois nem tudo que é ilegal é desonesto ou nem toda violação de princípios pode ser encarada como ato de improbidade. A conclusão é de que a imoralidade administrativa não é sinônimo de improbidade, existindo vias processuais distintas para o seu devido controle.[9] Defende-se que há desvios normativos que, sem lesar o interesse da “res publica”, não contêm desonestidade (como, p.ex. deslocamento de recursos entre órgãos públicos), pelo que se conclui que simples ilegalidade não caracteriza improbidade, sendo que nem mesmo a existência do dano seria suficiente à improbidade.[10] Segundo essa linha de raciocínio, se probidade significa honradez e honestidade, a improbidade define-se como desonestidade e ausência de honradez:
“O elemento subjetivo é o vínculo psicológico, o nexo subjetivo que une o agente ao resultado. A improbidade pressupõe, sempre, um desvio ético na conduta do agente, a transgressão consciente de um preceito de observância obrigatória.”[11]
A própria jurisprudência vem absorvendo o entendimento de que “A Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé”[12] e de que “Para se enquadrar a conduta omissiva ou comissiva de agente público como ato de improbidade é necessário que o comportamento seja não só ilegal, mas desonesto ou despido de boa-fé, evidenciado o dolo do agente”[13].
Incumbe destacar a doutrina segundo a qual a Lei Federal nº 8.429/92 deu conteúdo mais amplo ao conceito de agente improbo, ao inserir como ato de improbidade administrativa os exemplificados no artigo 11, que atentam contra os princípios da Administração Pública. Nesse sentido, o promotor de Justiça Wallace Paiva Martins Jr.: “O objeto da repressão da improbidade administrativa, conceituada por José Afonso da Silva como imoralidade administrativa qualificada, na legislação atual é bem mais amplo que o âmbito da legislação anterior (Lei Federal 3.502/58) que punia somente o enriquecimento ilícito, condicionado sempre a prática de um ato ou a abstenção de um fato pelo agente público.
Pela Lei Federal 8.429/92 atinge-se igualmente o prejuízo ao erário ao lado do enriquecimento ilícito (e este, ainda, com uma nota diferencial numa das figuras exemplificativas: a aquisição de bens de valor desproporcional à evolução patrimonial do agente e incompatível com a sua renda), como também o atentado aos princípios da administração pública, conceituado por Ruy Alberto Gatto, como norma de encerramento ou de extensão, proporcionando a censura de atos comissivos ou omissivos que não importam prejuízo patrimonial da administração pública ou enriquecimento ilícito do agente público, mas que ofendem os valores morais da administração pública.”[14]
Diante da ausência de uniformidade entre os estudiosos do tema na conceituação da improbidade, é mister definir o conceito a partir dos sujeitos que podem praticar as diferentes modalidades de improbidade administrativa, nos termos em que definido na Lei Federal nº 8.429/92, já declarada constitucional pelos Tribunais Superiores.[15]
Outrossim, é preciso sublinhar que a improbidade, tal como normatizada no sistema jurídico consubstancia uma ilicitude tipificada como grave e que, por isso, atrai penalidades severas que variam da suspensão de direitos políticos à perda da função pública. Em algumas circunstâncias está-se diante de situações em que ocorreu malversação de verba pública, desvios de dotações orçamentárias, pagamento de propinas, ilicitudes gravíssimas danosas ao patrimônio do Estado, com inobservância da correção mínima necessária às atividades desenvolvidas e comprometimento de princípios constitucionais. A ofensa à moralidade, à eficiência ou à boa-fé exigidas de quem integra o quadro de pessoal ou se relaciona com o Estado evidencia a adequação das regras da Lei Federal nº 8.429/92, concretizadoras das determinações constitucionais.
3. Os sujeitos ativos e as modalidades de improbidade administrativa na Lei Federal nº 8.429/92. A jurisprudência do STJ.
A primeira categoria daqueles que podem ser sujeitos ativos de improbidade administrativa é a categoria dos agentes públicos. Segundo o artigo 2º da Lei Federal nº 8.429/92, é agente público “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”. Como o artigo 1º da Lei de Improbidade Administrativa faz referência à administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, tem-se manifesta a amplitude da definição legal. Não é outro o entendimento dos estudiosos do tema:
“Tem-se na expressão agente público o sentido mais alargado emprestado à realidade a que se quer referir, qual seja, aquela que inclui o conjunto dos indivíduos integrantes da pessoa jurídica pública para determinar a sua ação. Agente público é a pessoa física que, vinculando-se juridicamente a uma pessoa pública, dispõe de competência legalmente estabelecida para o desempenho de função estatal em caráter permanente ou transitório.
(…) são agentes públicos os indivíduos que integram a pessoa, os que a compõem em sua inteireza, por meio de uma vinculação jurídica, que desenha a natureza e o conteúdo daquela integração.”[16]
Sendo assim, podem ser sujeitos ativos de improbidade os agentes políticos[17]; os servidores públicos estatutários, celetistas ou contratados temporariamente por excecional interesse público; além dos particulares em colaboração com o Poder Público (concessionários ou permissionários de serviços públicos, titulares de serviços notariais e de registro, leiloeiros, tradutores e intérpretes públicos); isso em qualquer dos níveis federativos.
Ademais, também pode praticar improbidade o terceiro que, não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta, conforme artigo 3º da Lei Federal nº 8.429/92.
Daí porque alguns autores invocam o artigo 70 da CR para afirmar que se sujeita à Lei de Improbidade “qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens ou valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações pecuniárias”.[18]
Estando claro que qualquer agente público ou terceiro que se enquadre na previsão da Lei Federal nº 8.429/92 pode incorrer em uma das espécies de improbidade, cumpre explicitar quais modalidades de improbidade administrativa estão expressas na Lei Federal nº 8.429. Basta uma simples leitura do referido diploma para concluir que são três as espécies consagradas, respectivamente nos artigos 9º a 11:
a) improbidade administrativa decorrente de atos que importam enriquecimento ilícito do agente público;
b) improbidade administrativa por atos lesivos ao erário;
c) improbidade administrativa por atos que atentam contra os princípios da Administração.
Em relação à improbidade por atos que importam enriquecimento ilícito do agente público, tem-se a regra do artigo 9º, “in verbis”:
“Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:
I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;
II – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado;
III – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado;
IV – utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades;
V – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem;
VI – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei;
VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público;
VIII – aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade;
IX – perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza;
X – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado;
XI – incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei;
XII – usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei.
Resulta claro que a lei buscou fixar como pressuposto dessa modalidade de improbidade que um agente público receba vantagem patrimonial indevida em razão do exercício das atividades inerentes ao seu vínculo com o Estado, tendo os incisos I a XII aviado hipóteses exemplificativas em que esse requisito está presente. Para a caracterização desse tipo de improbidade, não importa se foi o agente público quem pediu a vantagem indevida, nem mesmo se o comportamento meritório que adotou ao final foi conforme, ou não, com as regras vinculantes da competência exercida. O que a lei definiu como improbidade foi a simples circunstância dele aceitar pelo exercício das competências do seu cargo, emprego, função ou mandato, uma vantagem que não corresponde somente à remuneração, ao subsídio ou ao pagamento devido automática e regulamente nos termos do regime jurídico aplicável ao vínculo que mantém com o Estado.
O STJ considera que esses atos que importam enriquecimento ilícito “sempre são dolosos e ferem o interesse público, ocupando o mais alto ‘degrau’ da escala de reprovabilidade. Todos são prejudicados, até mesmo os agentes do ato ímprobo, porque, quer queiram ou não, estão inseridos na sociedade que não respeitam.” Em relação à reparação de danos, fixou que “deverá o julgador considerar o dano ao erário público, e não apenas o efetivo ganho ilícito auferido pelo agente do ato ímprobo”, pois o objetivo neste caso é “punir o agente não só pelo proveito econômico obtido ilicitamente, mas pela prática da conduta dolosa, perpetrada em ferimento ao dever de probidade.”[19]
De fato, não se consegue vislumbrar como alguém que aceita um ganho patrimonial indevido por sua atuação poderia fazê-lo culposamente, sendo inviável que um agente público, “sem querer”, por “negligência” ou “imperícia” incorpore em seu universo patrimonial uma vantagem econômica a que não faz jus de acordo com o seu regime jurídico regular. O entendimento, pela própria natureza da regra do artigo 9º, é que o agente público que incorre nesse comportamento de improbidade tem, implícito, o elemento subjetivo doloso da conduta, não se vislumbrando como excluir desonestidade de quem, exercendo atribuições estatais, recebe vantagem patrimonial indevida.
Nas hipóteses de enriquecimento ilícito do artigo 9º, não é imprescindível a prova de dano ou o prejuízo ao erário. Como escreve Francisco Octavio de Almeida Prado, nos casos do art. 9º e seus incisos não há necessidade de um nexo de causalidade entre o enriquecimento do agente e o empobrecimento do erário:
“Assim ocorre nos casos definidos pelo art. 9º e seus incisos da Lei de Improbidade Administrativa, em que freqüentes vezes a entidade pública (ou assemelhada) não sofre qualquer empobrecimento ou dano, visto que a vantagem auferida pelo agente público provém de outra fonte, notadamente o patrimônio do corruptor.”[20]
À obviedade, caso não se identifique dano ao erário, não há que se falar em ação de ressarcimento fundada nesta hipótese de improbidade.
Diversa é a situação da improbidade por atos que causam lesão ao erário, com perda de bens ou haveres de entidades da Administração direta ou indireta, federal, estadual, municipal ou distrital, tendo em vista a regra do artigo 10 da Lei Federal nº 8.429/92, “in verbis”:
“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
I – facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei;
II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;
III – doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educativos ou assistências, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie;
IV – permitir ou facilitar a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades referidas no art. 1º desta lei, ou ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado;
V – permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado;
VI – realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea;
VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;
VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente; (redação da Lei Federal nº 13.019/2014)
IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento;
X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público;
XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular;
XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente;
XIII – permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades.
XIV – celebrar contrato ou outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada sem observar as formalidades previstas na lei; (incluído pela Lei Federal nº 11.107/2005)
XV – celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei. (incluído pela Lei Federal nº 11.107/2005)
XVI -facilitar ou concorrer, por qualquer forma, para a incorporação, ao patrimônio particular de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidades privadas mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; (incluído pela Lei Federal nº 13.019/2014)
XVII – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidade privada mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; (incluído pela Lei Federal nº 13.019/2014)
XVIII – celebrar parcerias da administração pública com entidades privadas sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; (incluído pela Lei Federal nº 13.019/2014)
XIX – agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas; (incluído pela Lei Federal nº 13.019/2014)
XX – liberar recursos de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular;
XXI – liberar recursos de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular. (incluído pela Lei Federal nº 13.019/2014)”
As hipóteses enumeradas exemplificativamente nos incisos I a XXI do artigo 10 tratam de comportamentos comissivos ou omissivos, dolosos ou culposos, de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário, que implicam perda patrimonial, desvio, apropriação ou dilapidação do patrimônio do Estado. Neste caso, o prejuízo ao erário ou ao patrimônio público é elemento conceitual indispensável, sendo certo que o preceito legal admite a forma culposa ou dolosa para essa específica modalidade de improbidade.
Sobre essa matéria, em mais de uma oportunidade o STJ já reconheceu que “restou consolidada a orientação de que somente a modalidade dolosa é comum a todos os tipos de improbidade administrativa, especificamente os atos que importem enriquecimento ilícito (art. 9º), causem prejuízo ao erário (art. 10) e atentem contra os princípios da administração pública (art. 11), e que a modalidade culposa somente incide por ato que cause lesão ao erário (art. 10 da LIA).”[21] Destarte, malgrado haja divergência doutrinária[22], entende-se que como irrepreensível a posição do STJ admitindo improbidade por lesão ao erário ou prejuízo ao patrimônio público nas modalidades culposa ou dolosa, ausente qualquer fundamento razoável para excluir a hipótese a culpa da improbidade do artigo 10 da Lei Federal nº 8.429/92:
“Visto o posicionamento jurisprudencial e as correntes doutrinárias sobre a modalidade culposa de improbidade administrativa, prevista no art. 10, da Lei nº. 8.429/92, conclui-se que não merece acolhimento o entendimento de que a conduta culposa não tem gravidade suficiente para propiciar a aplicação de penalidade. Certamente, há comportamentos culposos que, pela repercussão que acarretam, tem maior densidade que algumas condutas dolosas, alinhando-se ao entendimento da primeira corrente doutrinária.
Em que pese as críticas doutrinárias sobre o dispositivo legal debatido, é primordial delinear as balizas para a configuração da modalidade culposa de improbidade administrativa, permitindo a aplicação do caput do art. 10, da Lei nº. 8.429/92 e resguardando os direitos e garantias fundamentais do agente público ou terceiro porventura envolvido.”[23]
A terceira modalidade de improbidade administrativa é que abrange os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, prevista no artigo 11 da Lei Federal nº 8.429:
“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
IV – negar publicidade aos atos oficiais;
V – frustrar a licitude de concurso público;
VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.
VIII – descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas. (redação dada pela Lei Federal nº 13.019/2014)
IX – deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação. (incluído pela Lei Federal nº 13.146/2015)”
Parte da doutrina impugnou a previsão como improbidade administrativa de “mera” ofensa a princípios da Administração Pública. Segundo esse entendimento, apenas seria lícito falar em modalidade dolosa em qualquer das hipóteses do artigo 11 da Lei Federal nº 8.429/92, o que evitaria equiparar a “simples ilegalidade” à improbidade administrativa.[24] Se no Superior Tribunal de Justiça inicialmente houve divergência de entendimentos[25], atualmente a posição majoritária é no sentido de que a improbidade administrativa por ofensa a princípios exige “dolo genérico”, sendo insuficiente para a condenação a atuação culposa ou a mera presunção de dolo do agente público.[26] Confira-se:
“2. A partir do julgamento do REsp 951.389/SC, (acórdão publicado em 4/5/2011), da relatoria do Sr. Ministro Herman Benjamin, a Primeira Seção sedimentou o entendimento de ser necessário, para caracterização de ato ímprobo previsto no art. 11 da Lei 8.429/1.992, a caracterização do dolo lato sensu ou genérico, dispensando-se a verificação de lesão ao erário. Outros precedentes: AgRg no AREsp 535.720/ES, Relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 6/4/2016; AgRg no REsp 1.523.435/SP, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 29/2/2016; e AgRg no AREsp 112.873/PR, Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 17/2/2016.”[27]
“3. Os atos de improbidade administrativa descritos no artigo 11 da Lei nº 8429/92 dependem da presença do dolo genérico, mas dispensam a demonstração da ocorrência de dano para a Administração Pública ou enriquecimento ilícito do agente.
- Cumpre destacar, ainda, que o dolo que se exige para a configuração de improbidade administrativa é a simples vontade consciente de aderir à conduta, produzindo os resultados vedados pela norma jurídica – ou, ainda, a simples anuência aos resultados contrários ao Direito quando o agente público ou privado deveria saber que a conduta praticada a eles levaria -, sendo despiciendo perquirir acerca de finalidades específicas.”[28]
Nesse sentido, é preciso avaliar a conduta de quem infringiu os princípios da Administração Pública, vinculantes dos próprios agentes públicos e dos terceiros que se relacionam com o Estado, e identificar se ali está presente a vontade de realizar a conduta ofensiva ao conteúdo da norma principiológica ou se há evidência de que anuiu com os resultados contrários ao previsto no ordenamento, quando devia saber que o comportamento em questão implicaria negativa de vigência princípios vigentes.
Segundo José César Naves de Lima Júnior, o dolo genérico na improbidade “certamente comporta traços de má-fé, pois seria inconcebível supor que um gestor público contando com toda a indumentária estatal, ao praticar ato que ofenda princípios que regem a administração pública assim o fizesse sem nenhum lastro de dolus malus”, donde conclui que “o elemento subjetivo (dolo) está compaginado ao conhecimento e a vontade do agente, sendo que esta última varia em intensidade conforme o grau de amplitude ou extensão da primeira”.[29] Na verdade, aqui não se exige a ideia de má-fé deliberada como elemento subjetivo constitutivo do dolo (embora a presença da má-fé implique necessário reconhecimento do comportamento doloso). Bem escreveu o promotor Eduardo Nepomuceno de Souza que “a ação dolosa não significa, necessariamente, má-fé (ausência de boa-fé objetiva), mas, sim, conforme já delineado, intenção livre e consciente de praticar uma conduta e obter um determinado resultado”. Em outras palavras, “O dolo exigido não significa ausência de boa-fé objetiva, mas sim, vontade e consciência de praticar determinada conduta, visando à produção de um resultado.”[30] Também o Superior Tribunal de Justiça vem fixando: “Cumpre destacar, ainda que o dolo que se exige para a configuração de improbidade administrativa é a simples vontade consciente de aderir à conduta, produzindo os resultados vedados pela norma jurídica – ou, ainda, a simples anuência aos resultados contrários ao Direito quando o agente público ou privado deveria saber que a conduta praticada a eles levaria -, sendo despiciendo perquirir acerca de finalidades específicas.”[31]
Identifica-se na jurisprudência exigência dolo para caracterização das modalidades de improbidade consagradas nos artigos 9º e 11 (sendo suficiente aqui o dolo genérico), além de requerer no mínimo culpa no caso do artigo 10 da Lei Federal nº 8.429/92: “O entendimento do STJ é de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10.”[32] Em recente acórdão, o Superior Tribunal de Justiça pacificou:
“PRESENÇA DO ELEMENTO SUBJETIVO 10. O posicionamento do STJ é de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. É pacífico no STJ que o ato de improbidade administrativa descrita no art. 11 da Lei 8.429/1992 exige a demonstração de dolo, o qual, contudo, não precisa ser específico, sendo suficiente o dolo genérico (REsp 951.389/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 4/5/2011). Assim, para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é imprescindível, além da subsunção do fato à norma, estar caracterizada a presença do elemento subjetivo. A razão para tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé. (…) O Tribunal a quo assim apreciou a presença do elemento subjetivo do agente político em relação aos fatos apurados: “Exsurge dos autos que o apelado, agindo de maneira livre e consciente, portanto, com vontade, deliberou pela nomeação de seus parentes, cônscio de que os interesses a serem atingidos seriam os seus, e não os coletivos. Assim, o agente político atuou de forma dolosa, empregando os meios necessários a alcançar seu propósito, sua conveniência, seu desiderato”.”[33]
À obviedade, malgrado a relevância de todos esses aspectos para a caracterização da improbidade com base no artigo 11 da Lei Federal nº 8.429, se houver prejuízo ao erário, estar-se-á diante de uma das hipóteses do artigo 10 e não do artigo 11 que se limita a casos de ofensa a princípios, sem lesão ao patrimônio público e, portanto, sem dever de ressarcir o erário de quaisquer prejuízos.
Analisando especificamente a situação do artigo 11 da Lei Federal nº 8.429, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves analisaram a decisão do STJ no REsp 480.387-SP segundo o qual “é necessária cautela na exegese das regras nele inseridas, porquanto sua amplitude constitui risco para o intérprete, induzindo-o a acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público e preservada a moralidade administrativa”, tendo concluído que “a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. (…) A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade”. Ao comentar as advertências do STJ, os autores pontuam:
“Não se nega, é evidente, a necessidade de cautela no manuseio do art. 11 da Lei de Improbidade, pois, como dissemos anteriormente as noções de improbidade formal e de improbidade material não ocupam, necessariamente, o mesmo plano existencial, sendo plenamente factível a presença da primeira desacompanhada da segunda (v.g.: a inobservância de aspectos formais previstos em lei, sem qualquer comprometimento do objetivo visado). Por outro lado, como a probidade encontra-se centrada na ideia de juridicidade, que absorve o princípio da moralidade, não nos parece que o conceito de boa-fé, quer subjetiva, quer objetiva, possa ser invocado como condicionante à própria identificação da improbidade formal. (…) Por essas razões, cremos que a má-fé do agente deva ser valorada quando da identificação da improbidade material, operação que utiliza a noção de proporcionalidade e que necessariamente levará em conta as circunstâncias fáticas e jurídicas subjacentes ao ato, como é o caso da insignificância das normas violadas ou do dano causado, da satisfação do interesse público, da ausência de mácula a direitos individuais e da boa-fé do agente.”[34]
Ao desenvolver o raciocínio, Emerson Garcia e Rogerio Pacheco buscam distinguir o dolo da má-fé, explicitando que “o primeiro indica a vontade deliberada na prática do ato; a segunda, os objetivos almejados pelo agente. É possível que um ato ilegal seja dolosamente praticados, mas seus objetivos sejam nobres, atuando o agente com boa-fé. No extremo oposto, é factível a possibilidade de um ato formalmente legal encobrir objetivos dissonantes daqueles que justificaram a própria existência da regra de competência, possibilidade há muito estudada pela teoria do abuso de direito.”[35]
Ao tratar da matéria, Luiz Manoel Gomes Junior e Rogerio Favreto asseveram que “A exigência do dolo, como regra geral, desconsidera a título de exemplo, a própria literalidade do art. 10, da Lei de Improbidade. Contudo, há necessidade de um elemento volitivo, uma vontade ou omissão, sob pena de ser adotada uma responsabilidade objetiva sem fundamento legal. No mínimo mostra-se necessária a culpa grave, que para esta finalidade se equipara ao dolo. O que é relevante destacar é que o dolo não é indispensável para a caracterização da improbidade administrativa podendo, em alguns casos, ser suficiente apenas a culpa.”[36]
Denota-se claramente ainda depender de maior solidez teórica a definição da improbidade a partir da noção de “boa-fé” (objetiva e subjetiva) e da própria figura do “dolo”, a que normalmente se recorre observando os parâmetros conceituais do Direito Penal. Outrossim, carece estabelecer a repercussão de ambas noções para a caracterização da improbidade administrativa.
4. A noção de dolo no Direito Administrativo: um desafio. Advertência final.
Vislumbra-se, com preocupação, a ausência de discussão significativa, na doutrina e nas decisões judiciais recentes, sobre o conceito de “dolo” aplicável no direito administrativo para fins de caracterização de improbidade administrativa ou mesmo da responsabilidade nos termos do artigo 28 da LINDB. Em encontro realizado pelo IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) entre professores da disciplina, na cidade de Tiradentes (Minas Gerais), no ano de 2019, em meio a acalorados debates com o professor Joel Menezes Niebuhr, restou incorporada a observação do professor de Santa Catarina sobre importância de administrativistas, sempre tão preocupados com a inserção de erro grosseiro no artigo 28 da LINDB, estudarmos técnica e especificamente o conceito de dolo. O fato de incorporarmos com certa superficialidade o que se pensa ser o conceito de dolo do Direito Penal, sem sequer distinguir as diferenças quanto ao conceito de acordo com a teoria da ação adotada, tem trazido problemas significativos ao Direito Administrativo, nem sempre percebidos em searas relevantes como a da improbidade administrativa.
Reconhece-se que os Tribunais Superiores já acenam com a diferenciação basilar entre as distintas searas, como no seguinte acórdão do STJ que não fez repercutir na esfera administrativa o reconhecimento judicial da ausência de dolo para fins penais: “Na situação em apreço, o juízo criminal apenas afastou o dolo da conduta no que tange à tipificação penal, o que é irrelevante para o enquadramento da conduta do agente como ato de improbidade administrativa”.[37]
Partilha-se, assim, o desafio com quem estuda a disciplina e trabalha com improbidade administrativa: não automatizar a transposição de conceitos do Direito Penal ao Direito Administrativo sem atentar para as especificidades de cada sistema, malgrado a uniformidade do caráter sancionador de ambos; apreender como a Ciência Penal trabalha o conceito de dolo, explicitando as distinções se se adota a teoria da imputação objetiva ou não; buscar maior segurança jurídica quanto à caracterização do dolo e da própria improbidade na esfera das relações jurídico administrativas.
Além disso, cumpre insistir que cabe à Administração Pública e aos controladores, quando se depararem com qualquer expediente que possa ensejar sujeição aos ditames da Lei Federal nº 8.429/92, perquirir se se está mesmo diante de uma das hipóteses de improbidade administrativa consagrada em modalidade prevista no referido diploma. O mesmo cuidado é indispensável em situações nas quais se afigura cabível tomar providências cautelares gravemente restritivas como eventual indisponibilidade de bens. O comprometimento com o rigor técnico é aspecto indissociável de garantias constitucionais basilares que impedem a transformação do Estado brasileiro em uma máquina violenta e casuísta de uso da força. É preciso renovar, sempre, o compromisso com o Estado Democrático de Direito capaz de nos afastar da barbárie que, ainda que aparentemente jurídica, está a comprometer a viabilidade de relações sociais e públicas minimamente saudáveis.
[1] LAZZARINI, Alvaro. Improbidade Administrativa. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo: NDJ, out/1997, p. 664.
[2] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 302-303.
[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa: Observações sobre a Lei 8.429/92. 2ª ed.. Porto Alegre: Síntese, p. 62-63.
[4] MATTOS NETO, Antonio José. Responsabilidade civil por improbidade administrativa. Revista dos Tribunais, v. 752, p. 32-33.
[5] FREITAS Juarez. Do princípio da probidade administrativa e de sua máxima efetivação. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo: NDJ, junho de 1996, p. 437.
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 563-564.
[7] GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. Lei 8.429, de 02 de junho de 1992. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 147.
[8] LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Ética e Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 58.
[9] MATTOS, Mauro Roberto Gomes. O Limite da Improbidade Administrativa. 2ª ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 393-395.
[10] TRÊS, Celso Antônio. A atuação do Ministério Público contra a improbidade administrativa Probidade no combate à improbidade in Improbidade Administrativa. 10 anos da Lei n. 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 76.
[11] PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade Administrativa, São Paulo, Malheiros, 2001, p. 37.
[12] Agravo Regimental no Agravo no REsp nº 778.907-MT, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe de 25.05.2016.
[13] Apelação Cível nº 1.0713.14.001418-2/001, rel. Des. Ângela de Lourdes Rodrigues, 8ª Câmara Cível do TJMG, DJMG de 16.03.2016.
[14] MARTINS JÚNIOR. Wallace Paiva. Alguns meios de investigação da improbidade administrativa. Revista dos Tribunais, v. 727, p. 326.
[15] “A constitucionalidade da Lei de Improbidade Administrativa foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADI 2182/DF.” (MS nº 18.761-DF, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção do STJ, DJe de 01.07.2019)
[16] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 59-60.
[17] “II – É pacífico o entendimento no Superior Tribunal de Justiça segundo o qual o conceito de agente público estabelecido no art. 2º da Lei n. 8.429/92 abrange os agentes políticos, como prefeitos e vereadores, não havendo bis in idem nem incompatibilidade entre a responsabilização política e criminal estabelecida no Decreto-Lei n. 201/67, com a responsabilização pela prática de ato de improbidade administrativa e respectivas sanções civis (art. 12, da LIA).” (Agravo Interno no REsp nº 175.930-CE, rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma do STJ, DJe de 27.06.2019)
[18] MATTOS NETO, Antonio José de. Responsabilidade civil por improbidade administrativa. Revista dos Tribunais, v. 752, p. 34.
[19] REsp nº 678.599-MG, rel. Min. João Otávio Noronha, 2ª Turma do STJ, DJU de 15.05.2007.
[20] PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade Administrativa, op. cit., p. 73-74.
[21] Agravo Regimental no REsp nº 1.459.417-SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma do STJ, DJe de 06.05.2015.
[22] Confira-se, a esse propósito, Gina Copola (BDA, fevereiro de 2007, p. 150-154) e a análise levada a efeito por José dos Santos Carvalho Filho em seu excelente Manual de Direito Administrativo (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.1024).
[23] MOYSES, Natália Hallit. Improbidade administrativa culposa. Revista Jus Navigandi. Teresina, a. 17, n. 3431, nov. 2012. Disponível em https://jus.com.br/artigos/23072. Acesso em 02.08.2016
[24] LAZZARINI, Alvaro. “Improbidade Administrativa”. Boletim de Direito Administrativo, op. cit., p. 669-670.
BITENCOURT NETO, Eurico. Improbidade Administrativa e Violação de Princípios. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 116-117
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Moralidade e Impessoalidade administrativa, Revista dos Tribunais, v. 766, p. 113-115
[25] REsp nº 826.678-GO, rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma do STJ, DJU de 23.10.06, p. 290 (dispensou dolo para caracterização da improbidade com base no artigo 11 da Lei Federal nº 8.429) X REsp nº 534.575-PR, rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma do STJ, julgado em 09.12.03, DJU de 29.03.04, p. 205 (entendeu ser o dolo elemento indispensável à caracterização de improbidade em hipótese do artigo 11 da Lei Federal nº 8.429).
[26] Agravo Regimental no Agravo em REsp nº 4687.934-SP, rel. Min. Diva Malerbi, 2ª Turma do STJ, DJe de 10.03.2016.
No mesmo sentido Agravo Regimental no REsp nº 1.306.752-ES, rel. Min. Olindo Menezes, 1ª Turma do STJ, DJe de 03.03.2016.
Confira-se do TJMG: Apelação Cível nº 1.0395.09.026573-1/002, 7ª Câmara Cível do TJMG, DJMG de 12.07.2016.
[27] REsp nº 1.225.495-PR, rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma do STJ, DJe de 20.06.2016.
No mesmo sentido Agravo Regimental no Agravo em REsp nº 778.907-MT, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe de 25.05.2016.
[28] Agravo Regimental no REsp nº 1.539.929-MG, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma do STJ, DJe de 02.08.2016.
[29] LIMA JUNIOR, José César Naves de. O gradualismo eficacial do dolus malus na improbidade administrativa. Carta forense. Edição nº 110, julho 2012.
[30] SOUSA, Eduardo Nepomuceno de. Elemento subjetivo nas ações de improbidade administrativa. Revista de doutrina do TRF da 4ª Região. Porto Alegre: nº 50, outubro de 2012. Disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Eduardo_Sousa.html, Acesso em 08.08.2016
[31] Agravo Regimental no REsp nº 1.539.929-MG, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma do STJ, DJe de 02.08.2016.
[32] Agravo Regimental no REsp nº 1.431.212-RN, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe de 24.05.2016. No mesmo sentido Agravo Regimental no Agravo em REsp nº 112.873-PR, rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma do STJ, DJe de 17.02.2016.
Confira-se do TJMG: Remessa Necessária nº 1.0105.10.005291-6/001, rel. Des. Claret de Moraes, 6ª Câmara Cível do TJMG, DJMG de 01.06.2016.
Quanto ao artigo 11 da Lei Federal nº 8.429, o STJ assentou, a partir do REsp nº 951.389-SC que é necessário o dolo genérico para sua caracterização, dispensando-se a verificação de lesão ao erário. (REsp nº 1.225.495-PR, rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma do STJ, DJe de 20.06.2016.
[33] Agravo Interno no REsp nº 1.777.597-PB, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe de 10.09.2019.
Confira-se, ainda: “VII – No caso dos autos, é clara a presença do elemento subjetivo dolo, já que o réu-recorrido, ocupando o mais alto cargo da administração pública local, tinha o dever de conhecer a exigência básica segundo a qual não pode o administrador deixar de cumprir, sem justa causa reportada e comprovada nos respectivos autos, ordens emanadas de processos judiciais.
VIII – Cumpre recordar que “o dolo que se exige para a configuração de improbidade administrativa é a simples vontade consciente de aderir à conduta, produzindo os resultados vedados pela norma jurídica – ou, ainda, a simples anuência aos resultados contrários ao Direito quando o agente público ou privado deveria saber que a conduta praticada a eles levaria -, sendo despiciendo perquirir acerca de finalidades específicas” (STJ, AgRg no REsp n. 1.539.929/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 2/8/2016.)
IX – Além disso, acentue-se que a atuação, em desconformidade com os referidos dispositivos legais, caracteriza conduta ímproba, nos termos do art. 11 da Lei n. 8.429/92, independentemente da ocorrência de prejuízo efetivo ao patrimônio público. O prejuízo efetivo ao patrimônio público é dispensado. Nesse sentido: REsp n. 1.164.881/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 14/9/2010, DJe 6/10/2010.
X – Por consequência, resulta configurada a prática de improbidade administrativa violadora de princípios da administração pública, nos termos do art. 11, caput, da Lei n. 8.429/92.” (Agravo Interno no Agravo em REsp nº 1.397.770-MG, rel. Min. Francisco Falcão, 2ª Turma do STJ, DJe de 21.05.2019)
Quanto ao artigo 11 da Lei Federal nº 8.429, o STJ assentara, como já se demonstrou, a partir do REsp nº 951.389-SC que é necessário o dolo genérico para sua caracterização, dispensando-se a verificação de lesão ao erário. (REsp nº 1.225.495-PR, rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma do STJ, DJe de 20.06.2016).
No TJMG: Remessa Necessária nº 1.0105.10.005291-6/001, rel. Des. Claret de Moraes, 6ª Câmara Cível do TJMG, DJMG de 01.06.2016.
[34] GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 424.
[35] GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa, op. cit., p. 424.
[36] GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, op. cit., p. 147-148.
[37] Embargos Declaratórios no Ag. Interno no Ag. de Instrumento em REsp nº 620.062-RN, rel. Min. OG Fernandes, 2ª Turma do STJ, DJe de 20.09.2019.