1. Considerações preliminares: ampla defesa e contraditório
Princípios como ampla defesa e contraditório, fundados no devido processo legal, saíram do domínio exclusivo do Processo Civil e ganharam espaço definitivo no Direito Administrativo na medida em que a própria Constituição da República passou a se referir ao processo administrativo e a estabelecer certas garantias que, além de incidirem sobre demandas judiciais, também o vinculam. Nesse contexto, surgem novas discussões como a existência, ou não, do duplo grau de jurisdição administrativa.
Atualmente, o Estado, inclusive no exercício da função administrativa, atua por procedimentos dialéticos. A dialética exige não apenas a oitiva, mas o efetivo diálogo entre as partes da relação jurídico-administrativa e isso se admite antes da formação da vontade final do Poder Público e em face de eventual decisão administrativa. A ideia é de que as partes devem personificar a função de colaboradoras da formação da vontade final do Estado. Assim, a sequência de atos deve observar a alternância de pronunciamentos e a amplitude de defesa.
Não há dúvida quanto à acentuada procedimentalização das ações administrativas, o que concretiza o princípio democrático inerente ao Estado de Direito e representa um avanço democrático “pois garante o consenso sobre a solução de conflitos, com a fixação de regras prévias, e implementa um sistema que permite ao cidadão influir nas decisões que podem afetar diretamente sua esfera jurídica. A processualidade é um método democrático de domesticação do exercício do poder da administração, garantindo sua vinculação aos valores constitucionalmente consagrados”.[1]
A Constituição da República estabelece, no artigo 5°, LIV, o princípio do devido processo legal e, no inciso LV, que são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral. É claro, portanto, que o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório vinculam o processo administrativo como garantia constitucional. Estas normas integram a própria noção de juridicidade hodierna.
É sob esse prisma que se renova a discussão a propósito do segundo grau de jurisdição na via administrativa como um direito a ser assegurado pelo Estado, como decorrência da ampla defesa e do contraditório protegidos constitucionalmente.
Em diplomas legais do âmbito federal, estadual, distrital e municipal, há previsão de competências administrativas em último grau de hierarquia da estrutura orgânica e sem previsão de recurso cabível para outra autoridade ou órgão público, o que afasta o duplo grau de jurisdição administrativa. Afinal, se é inviável a interposição de recurso administrativo próprio (presumido na estrutura hierárquica do Estado em favor da autoridade superior) e não há previsão de recurso administrativo impróprio (que autorize revisão fora da linha hierárquica), não há espaço para se falar no duplo grau nessa esfera da Administração Pública. Isso nem mesmo se se cogitar de delegação de competência pela autoridade originariamente competente em favor de outro órgão ou autoridade. É que, a despeito da delegação, a autoridade originária continua responsável pelas referidas funções. Segundo Diogo Freitas do Amaral, nestes casos, “apesar da delegação, mantém-se a posição de supremacia do delegante face ao delegado, já que aquele continua a ser, como responsável pelas funções que lhe estão contidas, o órgão originariamente vocacionado para o exercício da competência cuja delegação a lei permite, ao passo que o delegado só poderá exercer essa competência se for destinatário de um ato de delegação e enquanto essa delegação subsistir.”[2] Sendo assim, não há espaço previsto para o duplo grau de jurisdição administrativa na hipótese de previsão de atribuição para a autoridade hierárquica máxima, ausente previsão de recurso administrativo impróprio. É a constitucionalidade dessa realidade normativa que se analisa no presente artigo.
2. Duplo grau de jurisdição administrativa
A ideia do duplo grau de jurisdição assenta-se na adequação de se admitir a devolução do conhecimento de uma dada matéria a outra autoridade, além daquela que exarou uma decisão contrária ao interesse de alguém, o que enseja já abstratamente a possibilidade de um novo olhar sobre aquela realidade, com correção de eventual vício existente na espécie. Uma nova manifestação teria por objetivo evitar os riscos de uma apreciação única sobre um contexto que traz potencial limite a universo jurídico alheio àquele decisório. Existem searas em que referida prerrogativa, à luz da segurança mínima necessária para concreção da ampla defesa e contraditório, prevalece de modo quase uníssono na previsão abstrata das normas jurídicas, como é o caso do Direito Penal. Em outras matérias, como no âmbito do Direito Administrativo, tem-se omissões normativas entendimentos contraditórios com primazia da desnecessidade do duplo grau de jurisdição, até mesmo em face da revisibilidade judicial consagrada no artigo 5º, XXXV da CR.
Com a devida vênia dos entendimentos contrários, entende-se que nenhum vício se vislumbra pela falta de previsão recursal e garantia apenas de pedido de reconsideração em algumas legislações vigentes no país. Na verdade, nem mesmo na prestação da tutela jurisdicional, em ações cíveis e penais, tem-se o duplo grau em todos os processos, tendo o STF já afirmado a inexigibilidade dessa prerrogativa à luz da Constituição da República, ao argumento de que “não consubstancia garantia constitucional”[3]. Não se ignore as competências originárias previstas para a própria Corte Suprema que, na esfera judicial, impedem a primazia do duplo grau obrigatório. Na esfera administrativa, em especial, não se entende indispensável a dupla revisão quanto ao mérito de decisões executivas, mormente em se considerando a viabilidade de controle judicial, a qualquer momento.
Sobre essa matéria, a doutrina observa:
“Em arremate a essa questão, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2011. p. 498) expressam sua posição, ponderando à luz do princípio constitucional da razoável duração do processo, verbis: Em conclusão, é correto afirmar que o legislador infraconstitucional não está obrigado a estabelecer, para toda e qualquer causa, uma dupla revisão em relação ao mérito, principalmente porque a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXVIII, garante a todos o direito à tutela jurisdicional tempestiva, direito este que não pode deixar de ser levado em consideração quando se pensa em ‘garantir’ a segurança da parte através da instituição da ‘dupla revisão’. (…) Enfim, permanece o entendimento de que o princípio do duplo grau de jurisdição não representa garantia de cunho constitucional que imponha a criação de instâncias administrativas revisoras ou grau hierárquico de jurisdição administrativa.”[4]
Até mesmo os doutrinadores que, minoritariamente e independente da jurisprudência prevalecente, defendem o duplo grau de jurisdição administrativa, reconhecem que boa parte da doutrina entende não existir na Constituição Federal o direito ao duplo grau de jurisdição, mencionando autores como André Ramos Tavares segundo o qual é desnecessário que o segundo exame seja feito por órgão de nível ou instância superior.[5]
Não foi em outro sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ao fixar que “Esta Corte, na esteira da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, assentou o entendimento segundo o qual não há, na Constituição de 1988, garantia de duplo grau de jurisdição administrativa.”[6]
Foram mencionados acórdãos anteriores no sentido de que “O duplo grau obrigatório não é inerente ao contencioso administrativo”[7] e de que “Mais a mais, no Supremo Tribunal Federal, predomina o entendimento segundo o qual (…) não se insere, na Constituição Federal, garantia de duplo grau de jurisdição na via Administrativa”[8]. Quanto à posição do STF, destacou-se a não ocorrência de ofensa ao disposto nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Carga Magna, “porquanto não há, em nosso ordenamento jurídico, a garantia ao duplo grau de jurisdição”[9].
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. DEMISSÃO. DECISÃO DO CONSELHO SUPERIOR DE MAGISTRATURA. RECURSO ADMINISTRATIVO PARA O PLENO DO TRIBUNAL. NÃO CONHECIMENTO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL OU REGIMENTAL. ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. INOCORRÊNCIA. ÂMBITO ADMINISTRATIVO. GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. INEXISTÊNCIA. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA ASSEGURADOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO.
- Não havendo, à época do julgamento do processo administrativo, previsão legal ou regimental de interposição de recurso, para o Pleno do TJMS, contra as decisões originárias do Conselho Superior da Magistratura, em matéria administrativa ou disciplinar relativa aos servidores do Poder Judiciário do Estado, inexiste ilegalidade ou abuso de poder no ato que deixa de conhecer do recurso administrativo.
- Esta Corte Superior de Justiça firmou entendimento segundo o qual ‘não há, na Constituição de 1988, garantia de duplo grau de jurisdição administrativa’ (MS 10.269/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/09/2005, DJ 17/10/2005, p. 162).
- Não há se falar em violação dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa quando estas garantias constitucionais foram observadas no processo administrativo disciplinar instaurado contra a recorrente.”[10]
O Supremo Tribunal Federal, na mesma linha de raciocínio, vem reiteradamente fixando: “Inexistência de garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição na seara administrativa. Precedentes. Não há obrigatoriedade de previsão de recurso administrativo para revisão de decisão de autoridade, máxime quando se trata de decisão prolatada no exercício de competência discricionária e exclusiva do agente público.”[11]
De fato, é sólido atualmente o entendimento de que não integra a exigência de contraditório e ampla defesa a indispensabilidade do duplo grau na via administrativa, com a reiterada vênia das posições divergentes.
3. A autotutela administrativa, a colegialidade da decisão administrativa e o artigo 5º, XXXV da CR como alternativas ao duplo grau
Nos casos em que não há previsão de duplo grau, o que a Administração pode exercer, a qualquer momento, é a autotutela, com revisibilidade diante de eventual ilícito constatado por autoridade competente para realizar esse juízo na espécie, tendo em vista a legalidade consagrada como princípio no artigo 37, “caput” da Constituição da República.
De fato, na estrutura administrativa, pode constatar o vício de um comportamento estatal e realizar o controle de legalidade: a) a própria autoridade ou órgão que praticou o ato viciado, quando detém competência para sanar o vício; b) a autoridade ou órgão que, embora não tenham praticado o ato viciado, é quem tem capacidade e competência para suprir a falha administrativa; c) o superior hierárquico àquele que praticou o ato viciado; d) alguém a quem a lei outorgou expressa competência para convalidar ou invalidar o comportamento viciado; e) o órgão ou autoridade que delegou competência a um inferior que terminou por praticar o ato viciado e, assim, tornou necessário o exercício da autotutela pelo delegante.
Sendo assim, mesmo se não há viabilidade de interpor recurso próprio ao superior hierárquico e não há previsão de recurso impróprio, é possível que a própria autoridade da pessoa política ou administrativa ou outra que tenha como corrigir o vício exerça autotutela sobre os comportamentos contrários ao ordenamento.
A ação retificadora sob o prisma da legalidade exercida dentro da pessoa pública consiste no poder de revisão denominado autotutela administrativa cujo objetivo é corrigir atos com vícios sanáveis e invalidar atos com vícios insanáveis. Essa competência vinculada ao controle de juridicidade independe de provocação de qualquer interessado (fundada em garantias como o controverso duplo grau obrigatório) e assegura a observância, pela Administração Pública, das normas de regência. Não há dúvida, portanto, que a autotutela administrativa é atribuição estatal suficiente para superar qualquer problema oriundo de ausência de previsão de recurso na legislação de Direito Administrativo. A ausência de uma via deflagradora da revisão administrativa pelo interessado (seja ele cidadão, servidor, empresa contratada pelo Estado) não afasta, em nada, a obrigação constante do Estado em zelar pela juridicidade de todos os seus comportamentos.
Além disso, para alcançar maior segurança com o juízo feito na esfera administrativa, em vez de multiplicidade de graus recursais que podem atrasar o trâmite tempestivo dos expedientes, tem-se postulado a colegialidade das decisões da Administração Pública. Assim, não haveria um juízo único de uma só autoridade, mas a análise por dois ou mais agentes públicos cujas manifestações de vontades formariam um juízo estatal a prevalecer naquele caso, o que traz implícito maior potencial de imparcialidade e correção jurídica. A colegialidade decisória em uma única instância administrativa surge, nesse contexto, como uma forma adequada de compatibilizar a necessidade de dar concreção ao princípio constitucional da razoável duração do processo administrativo e a segurança jurídica quanto à decisão tomada pela Administração Pública, ao que se acresce o atendimento às exigências principiológicas da imparcialidade e do devido processo legal.
O que um interessado prejudicado também pode levar a efeito, em face de uma decisão administrativa ilícita em relação à qual não se exerça a autotutela administrativa e não haja duplo grau de jurisdição administrativa, é recorrer ao Poder Judiciário, valendo-se da garantia consagrada no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República. Destaque-se que sequer seria necessário aguardar o fim do trâmite de inconformismos administrativos, bastando que demonstre a existência de ato jurídico perfeito que constrite o seu universo subjetivo individual.
Observe-se que, no caso de provocação do Poder Judiciário ao argumento da ilicitude da decisão administrativa, tem-se uma segunda esfera, absolutamente distinta da primeira e com independência constitucional, examinando os aspectos fáticos e elementos jurídicos condicionantes da atividade da Administração Pública. Haverá uma nova cognição e um novo pronunciamento por órgão diverso daquele que, na esfera administrativa, decidiu contrariamente ao interesse de algum cidadão, servidor ou empresa que se relaciona com o Estado. Esse outro órgão integra o Poder Judiciário com função de colocar fim ao conflito de interesses, com definitividade, mediante interpretação definitiva do direito vigente.
4. Conclusão
Com base em tais considerações, extrai-se não ser possível falar em duplo grau obrigatório na via administrativa, ausente ofensa aos princípios da ampla defesa e contraditório, ao que se acrescem as alternativas da autotutela, colegialidade decisória e controle judicial como meios de concreção simultânea de segurança jurídica, imparcialidade e devido processo legal.
[1] SILVEIRA, Ana Teresa Ribeiro da. A Reformatio In Pejus e o processo administrativo. Interesse Público, São Paulo, Notadez, a.6, n. 30, p. 62, 2005.
[2] AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. 5ª reimp. ed. 2001. Coimbra: Almedina, 2006. v. 2. p. 458
[3] Ag. Regimental em Agravo de Instrumento nº 209.954-1-SP, rel. Min. Marco Aurélio, 2ª Turma do STF, julgamento em 15.09.1998
[4] RÊGO JÚNIOR, João Batista do. Duplo grau de jurisdição no processo administrativo segundo o STF. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4041. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28943. Acesso em 06.03.2019.
[5] FERRAZ, Sérgio. DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 173.
[6] MS nº 10.269-DF, rel. p/ acórdão Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Seção do STJ, julgamento em 14.09.2005.
Confira-se, também, o Ag. Regimental no AI nº 797.422-RS, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJU de 14.12.2006
[7] Embargos de Divergência em Agravo nº 459.961-RJ, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Seção do STJ, RSTJ, v. 193, p. 63.
[8] MS nº 10.269-DF, rel. p/ acórdão Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Seção do STJ, julgamento em 14.09.2005.
[9] RE nº 356.287-SP, rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma do STF, DJU de 07.02.2003.
[10] RMS nº 22.064-MS, rel. Min. Vasco Della Giustina, 6ª Turma do STJ, DJe de 05.10.2011.
[11] Ag. Regimental no MS nº 34.472-CE, rel. Min. Dias Toffoli, 2ª Turma do STF, DJe de 25.10.2017
Obrigada por mais esse artigo, Raquel! Que privilégio tem a Procuradoria mineira de tê-la em seus quadros! Forte abraço.
Orgulho tenho eu de ter você como colega de advocacia pública e pensadora do mundo, inclusive jurídico. Não só pela competência, mas pela amizade que nunca deixou de apoiar “na alegria e na tristeza”.