– Tia Quel, como foi a palestra de ontem?
– Bem boa. Estava cansada e dormi a viagem quase toda.
– Mas assim… a palestra mesmo, sabe? Como foi?
– Ah! Foi ótima! Falei que nem falo com você. De um jeito bem simples.
– “Pra todo mundo entender”, né?
– É.
– Então me explica?
– O que?
– A palestra ué.
– Foi meio longa…
– Explica a parte que der.
– Tá.
Eu já expliquei mais ou menos o que é o Estado. Pois teve uma época que o Estado mandava e nós – pessoas, cidadãos-, só tínhamos que obedecer o que ele determinava. A gente era passivo mesmo. A autoridade mandava e todo mundo obedecia. Aí começaram a ver que também era preciso reconhecer que as pessoas têm liberdades. Tiveram umas Declarações bem antigas, muito importantes: a americana, de 1776 e a francesa de 1789 que recebeu o nome de “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Já tinham colocados umas coisas importantes sobre liberdade em outros documentos históricos mais antigos ainda: um chamado “Carta do João Sem Terra” ou “Magna Carta de 1215” e outro, com nome em inglês, que é o “Bill of Rights”, de 1688.
A coisa mais importante de a gente reconhecer que um homem tem liberdades, é que o Estado não pode sair por aí passando por cima de tudo. As autoridades do Estado têm que respeitar as liberdades das pessoas, as chamadas “liberdades individuais”. É por isso que, se você tem o direito de perguntar a professora durante a aula, nenhum colega seu pode mandar calar a boca de uma hora para outra. Seria um tipo de censura indevida. E isso vale para o colega, para a própria professora e até para diretora da escola. Liberdade sua. Uma “indivídua”. Que tem como “direito fundamental” a “liberdade de se expressar”, perguntando o que não entende durante as aulas.
Só que reconhecer que as pessoas têm liberdades não é suficiente. E não foi. Em algum momento, o mundo percebeu que a gente vive junto, em coletividade. Sacar isso foi rápido em épocas de grandes crises, quando o dinheiro faltou, tipo depois da Primeira Guerra ou mesmo antes, quando os trabalhadores tinham péssimas condições nas indústrias e nas empresas, percebendo que estavam todos no mesmo barco que, aliás, fedia bastante. Foi muita reivindicação, muita luta. Em alguns documentos começaram a aparecer uns direitos chamados “coletivos”, como aconteceu com a Constituição do México de 1919 e da Alemanha de 1919 (tem um nome legal: “Constituição de Weimar”). Nesse balaio, colocaram direitos que a gente chama de “sociais, econômicos e culturais”. Para você entender a importância, estou falando de educação (sua escola está nesse pedaço), saúde (prevenir doenças e tratar as que aparecerem), moradia (a gente precisa de casa) e um bocado de coisa importante como segurança, lazer, assistência a quem não tem amparo, trabalho e coisa e tal.
Nesse ponto, deu para concluir que não bastava que o Estado “respeitasse” direitos e liberdades das pessoas. É preciso mais! É necessário que o Estado realize o necessário para esses “direitos” coletivos virarem realidade. Se o Estado tem que realizar, as pessoas podem exigir dele as prestações para concretizar esse tanto de coisa. No Direito, a gente fala em uma “segunda dimensão”: a dimensão dos direitos coletivos e, nela, os cidadãos podem exigir do Estado as prestações possíveis para tornar esses direitos fundamentais realidade. Aqui, cada um de nós não está só “subordinado” ao Estado, nem com expectativa que ele “respeite” nossas liberdades. A nossa postura é positiva: queremos atuação do Estado para assegurar as prestações que as Constituições e as leis passaram a consagrar como um dever dele, o Poder Público.
E o mundo seguiu mudando muito… E apareceram novas demandas, novas preocupações, como p. ex. a proteção ao meio ambiente. Isso para a gente ter um planeta para deixar para vocês. Começamos a pensar em solidariedade, inclusive entre gerações. Então é mais do que, p. ex., proteger os consumidores que compram coisas hoje em dia; é assegurar o desenvolvimento, para o mundo melhorar para vocês, é buscar a paz para que haja humanidade amanhã, é evitar que as coisas históricas importantes do mundo não sejam destruídas para seguirmos aprendendo com esse patrimônio comum. E tem mais! Chegamos num ponto em que os avanços de tecnologia, de tudo estar muito pertinho (um dia falo de globalização para você), colocou para pensar em coisas difíceis como democracia, direito à informação, pluralismo, evolução tecnológica e suas consequências. É preciso aprender a respeitar quem pensa diferente, perguntar até onde vamos com a criação de computadores, celulares, inteligência artificial, assegurar que todo mundo possa participar do Estado, de verdade, e muito mais. Vou insistir que é importante participar disso tudo. Como cidadãos, precisamos de uma postura ativa, ajudando a formar a vontade do coletivo, a ser institucionalizada, permanentemente transformada e sempre perseguida sua realização.
Ontem, contudo, não gastei tanto tempo falando dessas coisas do futuro que andei estudando nos últimos tempos. Preferi falar do início. Das liberdades individuais. Estamos num momento em que as pessoas estão esquecendo que as outras são livres. Livres para pensar, para se expressar, para viver de acordo com o que escolhem, ainda mais considerando que escolhem sem colocar em risco a vida do outro. Estão esquecendo até que o próprio Estado precisa respeitar cada liberdade nossa.
Talvez você precise lembrar seu colega que ele pode pintar o sol de laranja e você de amarelo. E um outro colega pode até usar azul ou preto ou verde porque o sol do desenho dele pode ser outro e representar algo que os outros não imaginam. Você pode até detestar o sol verde de um amigo. E dizer isso pra ele (com educação e sem gritar, por favor). Mas ele segue tendo direito ao próprio sol, aguentando que você odeie o sol verde, mas pintando lá com o lápis dele, feliz de se realizar com o que cria. É a liberdade individual que ele tem e, aliás, não mata ninguém ao fazer isso. Ele tem direito a que as outras pessoas respeitem. E, inclusive, que o Estado, a escola ou a família não o impeça. Ao contrário, as instituições devem proteger essa liberdade dele. Devem ter regras e procedimentos para garantir essa proteção.
Aprendi muito disso quando era mais nova que você. Mas tem família que está esquecendo de ensinar o básico. Pior: tem até gente querendo que o Estado ignore esse mínimo. Talvez você possa ajudar umas pessoas a entenderem isso. Parece difícil, eu sei. Mas…
“Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada.”
Que talento precisa para dizer algo tão fundamental, nessa hora sombria, de uma maneira tão delicada!
OLá. Fiquei muito interessado pelo seu post.Vou acompanhar ! Seu blog é TOP. Este tipo de conteúdo tem me agregado muito conhecimento.Grato !