1. O princípio da realidade
Já se advertiu que a segurança jurídica vem servindo de fundamento a princípios outros sequer invocados pela doutrina administrativa no século XXI. É o caso do princípio da realidade, utilizado como fundamento de algumas decisões judiciais relativas à Administração Pública. Por força do referido princípio, não pode qualquer norma ou comportamento administrativo, de natureza executiva ou controladora, ignorar o mundo dos fatos a que se refere. Sendo assim, se há discordância entre determinada presunção e o que restou comprovado na prática administrativa deve-se atentar para a veracidade das circunstâncias empíricas.
Referido princípio segue a premissa segundo a qual cabe ao Direito sintonizar-se com o caso concreto, uma vez que as normas jurídicas foram criadas exatamente para reger os fatos, deles não podendo se afastar. Máximas sobre a incidência da lei como ‘lex domicilii, lex rei sitae e locus regit actum’ trazem a ideia basilar de que a norma aplicável é a que tem ligação mais próxima com a pessoa, causa ou questão jurídica em tese. No Direito Administrativo, incide, igualmente, a necessidade de se aproximar a norma da realidade sub examine. Daí ser indispensável que prevaleça o que sucedeu no terreno dos fatos, excluída a possibilidade de incidência de norma desvinculada da realidade em questão. O sistema jurídico jamais pode governar com ignorância das circunstâncias concretas a cuja regulação se destina.
O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o Recurso Especial n° 64.124-RJ, relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, deixou assentado: “A norma de sobre-direito magistralmente recomenda ao Juiz, na linha da lógica razoável, que, ‘na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’. Em outras palavras, é de repudiar-se a aplicação meramente formal de normas quando elas não guardam sintonia com a realidade.”
O Supremo Tribunal Federal também já invocou a realidade como princípio capaz de orientar a interpretação de dispositivo do ADCT da CR/88: “Descabe ter como conflitante com o artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta Magna de 1988 provimento judicial em que se reconhece a estabilidade em hipótese na qual o professor, ao término do ano letivo, era ‘dispensado’ e recontratado tão logo iniciadas as aulas. Os princípios da continuidade, da realidade, da razoabilidade e da boa-fé obstaculizam defesa do Estado em torno das interrupções e, portanto, da ausência de prestação de serviços por cinco anos continuados de modo a impedir a aquisição da estabilidade.”[1]
Também os Tribunais de segundo grau de jurisdição têm atentado para o fato de que “cabe ao Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da administração”.[2]
Na doutrina há que critique o enquadramento da realidade como princípio, informando tratar-se de mera regra jurídica. Nesse sentido, confira-se o magistério de José Vicente Santos de Mendonça: “Em termos dogmáticos estritos, provavelmente não estamos diante de princípio jurídico na acepção de Alexy: exigir que atos administrativos tenham bases e propósitos reais não é norma de incidência gradual. Ou eles preenchem tais requisitos, ou não. Estamos diante de regra jurídica. Mas, distanciando-nos de preocupações acadêmicas, podemos muito bem chamá-lo de “princípio” da forma, como viemos chamando todas as normas – regras ou princípios ou sejam lá o quê – que nos soem importantes.
Problema não é saber se é ou não princípio. Interessante é saber se é novo. Não é. (…) Seu conteúdo também não é difícil de imaginar. À luz do que se tem escrito e decidido, vamos aqui propor três núcleos conceituais de imposição de deveres prima facie. (i) Pelo princípio da realidade, políticas públicas devem pretender objetivos realistas, isto é, alcançáveis dentro do espaço de tempo em que se proponham a durar. É contrária ao princípio da realidade uma proposta de política pública que se proponha a neutralizar a pirataria de música e de software, no Brasil, em seis meses, ou, mesmo, uma política de erradicação total e absoluta da produção e do consumo de drogas ilícitas. (ii) Também por ele, medidas administrativas devem cogitar apenas de imposições que possam ser razoavelmente cumpridas pelos particulares. É eficácia vedativa que decorre da força normativa dos fatos: o que não pode ser cumprido, não pode se exigir que se cumpra (…) Finalmente, (iii) ficções e presunções jurídicas devem se basear em raciocínios extrapolativos realistas: ficções e presunções são imposições legais de atalho que necessariamente decorrem de conjecturas baseadas na realidade. Elas desobrigam parte do ônus argumentativo em favor de certas conclusões do raciocínio jurídico, mas apenas se for possível demonstrar que suas premissas fáticas de base são frequentes e esperadas.
Mesmo assim, em muitos casos atuais ainda se editam leis e atos administrativos afastados de bases reais e de qualquer exequibilidade. (…) Por caricaturais que sejam, as violações ao princípio da realidade mostram dados típicos do nosso pensamento público: ausência de planejamento, externalização de deveres, e, acima de tudo, a tendência a pretender que o mundo mude graças à edição de atos formais.”[3]
Tratando a realidade como o princípio a fundamentar as decisões públicas, o citado autor faz referência a Diogo Figueiredo Moreira Neto, em sua lição clássica sobre a matéria: “O entendimento do princípio da realidade parte de considerações bem simples: o Direito volta-se à convivência real entre os homens e todos os atos partem do pressuposto de que os fatos que sustentam suas normas e demarcam seus objetivos são verdadeiros.
São os fatos que regularmente ocorrem ou podem ocorrer, na natureza física ou convivencial, e só excepcionalmente, e por disposição expressa, a ordem jurídica acolhe ficções ou presunções.
Em outros termos, a vivência do Direito não comporta fantasias; o irreal tanto não pode ser a fundamentação de um ato administrativo quanto não pode ser o seu objetivo.[4]
À obviedade, a sujeição da Administração controladora, como a que executa competências técnicas, aos fatos reais evita a insegurança generalizada, pois é assegurado às pessoas que a incidência da norma administrativa não ignorará a realidade em que se inserem. Assim sendo, evidenciar a veracidade das circunstâncias fáticas que envolvem a conduta pública é tarefa essencial do Estado, inclusive daqueles que exercem o controle de juridicidade dos seus comportamentos. Qualquer desvio na fidelidade a estas circunstâncias caracteriza violação grave do regime administrativo, merecedora de repulsa radical do ordenamento jurídico.
Assim restou disposto no Parecer nº 14.568 da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais:
Qualquer entendimento em sentido contrário ignoraria a realidade administrativa a que se destinam as regras (..). E não há dúvida de que não pode qualquer norma administrativa ignorar o mundo dos fatos a que se refere. Sendo assim, deve a interpretação privilegiar o que restou evidenciado na prática administrativa, atentando-se para a veracidade das circunstâncias empíricas.
Trata-se do princípio da realidade segundo o qual cabe ao Direito sintonizar-se com o caso concreto, uma vez que as normas jurídicas foram criadas exatamente para reger os fatos, deles não podendo se afastar. Máximas sobre a incidência da lei como ‘lex domicilii, lex rei sitae e locus regit actum’ trazem a idéia basilar de que a norma aplicável é a que tem ligação mais próxima com a pessoa, causa ou questão jurídica em tese. No Direito Administrativo, incide, igualmente, a necessidade de se aproximar a norma da realidade ‘sub examine’. Daí ser indispensável que prevaleça o que sucedeu no terreno dos fatos, excluída a possibilidade de incidência de norma desvinculada da realidade em questão. O sistema jurídico jamais pode governar com ignorância das circunstâncias concretas a cuja regulação se destina.[5]
É certo que, em qualquer situação de controle interno, os fatos apurados devem ser suficientemente evidenciados para embasar as conclusões a que chegou o órgão controlador, sob pena de flagrante ilicitude.
2. Verdade Material e Ampla defesa
A teoria geral dos atos administrativos implica discussão quanto aos aspectos que servem de base fática e jurídica para atividade pública, bem como coloca sob discussão a prova que viabilize analisar os referidos fundamentos. É preciso assegurar a incidência de tais postulados quando se trata da atividade de controle, sujeita integralmente aos parâmetros do regime jurídico de direito público.
Não se pode confundir o meio de exteriorização do ato (a forma que, em regra, é escrita) com os instrumentos de prová-lo. De fato, a prova é somente o mecanismo através de que se evidencia que o ato administrativo foi realizado. Assim sendo, um ato escrito pode ser comprovado oralmente, por meio de provas testemunhais ou mesmo através de depoimento pessoal de uma das partes interessadas. Isto se dá porque vige, no Direito Administrativo, o princípio da verdade material. Este princípio impõe ao agente público competente, o dever de perseguir a comprovação dos fatos ensejadores de um determinado pronunciamento estatal.
Ora, se também é dever da Administração controladora reconstruir os fatos que autorizam a sua ação fiscalizatória e eventualmente punitiva, os quais não podem ser ignorados em virtude do princípio da realidade, tem-se como cabível o uso dos mais amplos meios probatórios que possam tornar seguro e jurídico o juízo a propósito dos comportamentos públicos em tese. Por isto a doutrina vem afirmando que, quanto à prova do ato administrativo, inclusive o praticado no exercício da função de controle, vige o princípio do informalismo, o qual atribui ao agente público a função de viabilizar ampla produção probatória. Assim, viabiliza-se uma percepção adequada a propósito da realidade administrativa, sob o prisma jurídico e fático.
Na mesma linha de raciocínio, confira-se: “De acordo com o princípio da verdade material (ou real), a instrução probatória do processo administrativo deve ser feita de forma que os autos traduzam a realidade dos fatos com a maior fidelidade possível. Tal tarefa caberá ao administrador, que tem o dever de adotar postura ativa na instrução do feito, seguindo modelo inquisitorial de produção de provas. Logo, o arcabouço regulamentar a que se submete o agente público deve permitir a ampla produção de provas, em prol não apenas dos interesses do administrado, mas como garantia de que a lei será bem aplicada.”[6]
“A autoridade administrativa, na busca da verdade material, não está sujeita a formalismos rígidos ou a obediência a formas sacramentais. Diante da atuação da autoridade administrativa, não vigora o princípio da verdade formal, em que as formas dos atos, prazos, distribuição de ônus de prova e a sistematização dos procedimentos são rigorosamente previstos e obedecidos. Em busca da verdade dos fatos, afasta-se os formalismos em prol da