As partes de um contrato a ser firmado pela Administração Pública em regra buscam, ainda na fase das negociações, ultimar regras que possam exaurir as obrigações que decorreram do instrumento. A despeito dos esforços, por vezes não se vislumbra como possível o tratamento de todas as situações que podem ocorrer (e certamente ocorrerão) impactando na execução do objeto avençado. Não se trata de utilizar tal fato, inescapável, como circunstância apta a liberar a gestão de planejar a contratação com o amplo emprego dos recursos disponíveis e mediante a fundamentação indispensável para embasar as escolhas contratuais ultimadas. Ao contrário, é exatamente a impossibilidade de se antever tudo que se relaciona com a realização de algo tão complexo que coloca sob os ombros da área técnica e da gestão a árdua tarefa de buscar o planejamento adequado, tornando realidade a própria ideia de “boa governança” em relação aos procedimentos licitatórios e contratuais.
A ideia de que existem contratos incompletos por natureza, cujas cláusulas iniciais não são capazes de regrar aspectos que surgem somente quando da execução, vem sendo admitida pela doutrina publicista contemporânea. Autores como o professor Marcos Nóbrega referem-se aos contratos em que incompletude contratual é uma realidade e uma série de circunstâncias deverão ser resolvidas ex post, sendo equivocada a “suposição de que os contratos administrativos são completos e podem prever todos [sic] (ou quase todas) as contingências que podem afetá-los”. Citando Willianson, ao se referir a um tipo contratual chamado “contrato relacional”, em que “a antecipação de que o relacionamento entre as partes terá que se ajustar com o tempo, observando a necessidade de renegociação periódica”, pondera que, nestas situações “as partes vulneráveis quando grandes investimentos estão envolvidos porque as regras de renegociação são gerais”, daí por que explicita que “esses contratos somente deverão ser usados quando houver adicional proteção fora do contrato para evitar o oportunismo das partes”[1].
Buscando demonstrar a viabilidade os contratos relacionais, com a característica de indeterminação dos termos das relações contratuais, parte da doutrina assevera que:
“Os contratos relacionais não têm finalidade exclusivamente econômica, e isso justifica a necessidade de um agir comunicativo entre as partes. Nos contratos relacionais, ‘há fortes elementos de comunicação primária e muitas vezes vínculos de solidariedade (…) não previstos expressamente no momento da contratação’ (Macedo Jr., 2004). A solidariedade aqui é entendida como cooperação para benefícios mútuos e associação para a divisão mútua de ônus (…)
A síntese entre o econômico e o jurídico cria um procedimento e uma abertura comunicativa capaz de lidar com a complexidade desses contratos relacionais, revitalizando o vínculo obrigacional clássico e reconstruindo criticamente os princípios do direito privado (boa-fé, autonomia privada, pacta sunt servanda, liberdade contratual, etc.)”[2].
Há dificuldade clara no âmbito do Direito Administrativo em reconhecer que, em dadas circunstâncias, não é sequer razoável conceber que as partes de um contrato poderão projetar detalhadamente tudo a se executar, como se deverá realizar cada etapa, especificando prazos, formas de agir, com ciência absoluta das condições futuras que condicionarão as diversas ações. Na verdade, principalmente em contratos cujo objeto é complexo e exige longo período de vigência, é preciso reconhecer que há longa distância entre planejar todo o possível, utilizando da melhor forma as informações disponíveis, com atenção às exigências de prevenção e precaução necessárias em grandes contratações e a ilusão de que a Administração consegue mapear integralmente e com perfeição o futuro. Há situações em que se trata de contratação em permanente mutação e todo o instrumental aí inserido ou mesmo uma complexidade inerente à monta e especificidade do objeto contratado, cujo surgimento se espraiará no tempo. Nesses contextos, é preciso ter claro que, quando da celebração do vínculo originário, por mais esforços que se façam, tem-se apenas um fragmento da realidade que no futuro condicionará a execução do acordado.
De fato, um contrato de longa duração, com objeto complexo, é manifestamente distinto de contratos firmados usualmente pela Administração Pública como, p. ex., compra de cadeiras ou serviços como pintura de paredes, por serem os últimos acordos com baixa especificidade, frequência ocasional, nos quais até mesmo a identidade das partes é irrelevante e com elevado grau de impessoalidade. Não se pode ignorar a possibilidade de mutações prováveis em razão da constante evolução científica, da alteração de técnicas diversas ou mesmo das mudanças inerentes a dado setor pelo passar do tempo em acordos específicos de setores como o de saúde, produção de medicamentos ou mesmo segurança pública.
Embora não se possa negar o caráter incomum de se trabalhar com a noção de “contratos intrinsecamente incompletos” firmados pela Administração Pública, é certa a adequação de algumas bases conceituais do “contrato relacional” à realidade estatal, sendo que a especialização flexível entre os envolvidos fornece “1) redução do trabalho envolvido; 2) redução do tempo de produção do bem; 3) redução do trabalho direto; 4) produção de produto final de alta qualidade”, o que exige um especial “modo de governança a ser utilizado, considerando a especificidade do ativo e o grau de risco e incerteza associados”.[3]
Alguns estudos mais específicos sobre os chamados contratos relacionais encontram-se no direito privado, com revisão bibliográfica doutrinária e até mesmo jurisprudencial sobre a matéria:
“Ruy Rosado classifica os contratos relacionais como o ‘negócio jurídico perfeito e incompleto, no qual a determinação do seu conteúdo ou de alguns dos seus elementos essenciais se realiza mediante a remissão a elementos estranhos ao mesmo’.
Seriam, portanto, contratos que necessariamente devem deixar indeterminadas muitas das suas cláusulas, a serem definidas no curso da execução, com grande espaço para a atuação dos princípios da boa-fé, equidade e fim social do contrato.
(…)
Antônio de Azevedo é outro autor a discutir a ideia de contrato relacional, sustentando que são contratos de duração e que exigem forte colaboração. Em suas palavras:
‘Procurando adaptar essas ideias ao nosso mundo conceptual, o que se percebe é que há, no contrato relacional, um contrato de duração e que exige fortemente colaboração. São relacionais todos os contratos que, sendo de duração, têm por objeto colaboração (sociedade, parcerias etc.) e, ainda, os que mesmo não tendo por objeto a colaboração, exigem-na intensa para poder atingir os seus fins, como os de distribuição e da franquia, já referidos. (…)
Claudia Marques em sua obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor também aborda a teoria do contrato relacional (..) Por outro lado, Claudia Marques sustenta que esse modelo contratual foi criado em função das dificuldades específicas da common law com as relações de longa duração, de modo que essas dificuldades de englobar na relação contratual as promessas e informações não formais ou não escritas e de preencher as lacunas contratuais são menores em um sistema contratual não solene como o sistema brasileiro. Esses problemas, no direito brasileiro, podem ser solucionados pelos princípios da confiança, da boa-fé, da acessoriedade das relações de consumo ou pela teoria da aparência. (…) Nas palavras da referida autora:
‘Sendo assim, a mais importante contribuição destes estudos à nova teoria contratual brasileira é a criação de um modelo teórico contínuo que engloba as constantes renegociações e as novas promessas, bem destacando que a situação externa e interna de catividade e interdependência dos contratantes faz com que as revisões, novações ou renegociações contratuais naturalmente continuem ou perenizem a relação de consumo, não podendo estas, porém, autorizar abusos da posição contratual dominante ou validar prejuízos sem causa ao contratante mais fraco ou superar deveres de cooperação, solidariedade e lealdade que integram a relação em toda a sua duração.’
Dessa forma, percebe-se – a partir dos acórdãos analisados de forma mais detida e do rol de acórdãos mencionados – que a abordagem da teoria do contrato relacional em nossos tribunais, em especial no STJ, parte de uma visão classificatória. Ou seja, determinado contrato será ou não um contrato relacional de acordo com suas características e, portanto, de acordo com esse possível enquadramento, deverão ou não ser aplicadas as premissas dos contratos relacionais, tais quais, valorização da boa-fé objetiva, cooperação, manutenção da relação contratual e outras.”[4]
No âmbito do direito administrativo, é mais sólida a compreensão da regulação por agências que atuem no setor do objeto contratual como ocorre, p. ex., com o exercício do poder de polícia por agências reguladoras em matérias diversas. Já as discussões sobre os contratos relacionais afiguram-se mais raras, malgrado sejam claras as dificuldades enfrentadas pela União, por Estados-membros e grandes municípios em contratos de longa duração e complexos, os quais exigem grande investimento e estrutura de administração do vínculo, principalmente durante a fase de execução contratual.
Daí se pontuar sobre a necessidade de se discutir os termos da celebração inicial desse tipo de acordo em que é difícil “presentificar o futuro”, exigem uma “capacidade de aprendizado dos contratos”, com segurança advinda da plasticidade e dinamicidade decorrentes de novas contingências[5]. Uma realidade dessa natureza exige maior grau de amadurecimento institucional das entidades envolvidas, com juízos técnicos seguros quando da contratação, além de convicção sobre a necessária adoção de procedimentos que ensejem segurança jurídica quando da execução, provavelmente afetada por mutações sequer cogitadas no momento inicial. Isso se acentua em se tratando de vínculos nos quais a própria complexidade das mútuas obrigações, com relacionamento intrincado e constante, pode ensejar conflitos aptos a comprometer a execução das atividades indispensáveis à obtenção do resultado pactuado.
É certo que, segundo a formação jurídica tradicional, o surgimento de conflitos em contratos dessa natureza remete ao controle judicial ou, na melhor das hipóteses, à adoção da arbitragem ou da mediação. Se é certa a constatação, nas últimas décadas, de quem nem sempre acessar o Judiciário garante solução adequada para as partes, ainda estamos nos primórdios da normatização e implementação de mecanismos aptos a prevenir conflitos em contratos firmados pela Administração enquadráveis no conceito de “intrinsecamente incompletos” ou “relacionais”. Raríssimas são as tentativas de solucionar, na própria estrutura contratual originária e prevista entre as partes quando da sua pactuação, como conduzir problemas que certamente sobrevirão na fase executória do acordo. No Direito Internacional Privado, não só já se indicam vários mecanismos a esse propósito, como desde o século passado adotam-se instrumentos para prevenir conflitos em vínculos dessa natureza.
Com base em estudos de direito comparado e em experiências internacionais, a doutrina civilista brasileira pontua:
“Traçando-se um paralelo com as disposições legais que intentam reger a alteração de circunstâncias, observa-se que o uso das hardship clauses é uma manifestação da tentativa de se regular, autonomamente, os efeitos oriundos de uma modificação futura. Essas verdadeiras cláusulas de renegociação são instrumentos jurídicos de fonte negocial que tencionam afastar as vicissitudes dos fatos que são verificados posteriormente à celebração do termo
Essa tipologia tem sua origem no Direito Internacional Privado. A necessária celeridade, que circunscreve as relações de comércio internacional, exige mecanismos que visem à conformação dos conteúdos avençados. Com o uso das hardship clauses, busca-se esgotar, no próprio instrumento contratual, a solução de eventual controvérsia na execução do pactuado, estabelecendo um dever de renegociação, em razão de modificação substancial de conjunturas. (…)
O termo hardship pode ser traduzido com os significados de necessidade ou apuro. O uso da expressão se refere, assim, às complicações oriundas da modificação do ambiente contratual de formação. Diante das dificuldades que podem surgir em razão do prolongamento do contrato no decurso do tempo, as partes optam por prever a solução de controvérsias no próprio instrumento pactuado.
As referidas disposições são, normalmente, dotadas de caráter geral e, de forma corrente, são acompanhadas de uma cláusula penal para o caso de não cumprimento do estabelecido. Trata-se de um desenho que busca estabelecer uma técnica de renegociação. Desse modo, uma adequada cláusula de hardship prescreve, inicialmente, sob que condições deverá ser realizada uma renegociação do conteúdo pactuado. Em um segundo momento, observa-se a prescrição do procedimento a ser adotado pelas partes para sanar a eventual problemática nascida da modificação das circunstâncias. E, por último, tem-se a especificação das respectivas sanções diante da possibilidade de uma das partes se negar a realizar a conformação do contrato à nova realidade.
Nessa contenda, a obrigação de renegociar representa o aspecto mais característico e inovador da cláusula de hardship, ao permitir configurar o contrato como uma realidade em permanente construção. Essa renegociação deve ser sempre realizada tendo por intuito adequar as condições aos anseios de ambas as partes. Normalmente, serão estabelecidos mecanismos de proposta e contraproposta, objetivando coadunar as vontades dos contratantes. A própria cláusula poderá conduzir a adequação do conteúdo contratual a parâmetros de equidade. Em todos os casos, todavia, é necessário estar atento aos juízos de razoabilidade no exercício de manutenção do contrato.
(…)
Como já assinalado, a obrigação de renegociar é a principal característica presente no uso das cláusulas de hardship. Sobre sua qualificação, Giovanni Ettore Nanni sustenta que ‘a obrigação de renegociar consiste na atribuição imposta às partes de tornar a negociar os alicerces originários do contrato, os quais sofreram significativas modificações no curso de sua execução, em função de circunstâncias alheias à sua vontade’.”[6]
É certo que a maior amplitude de se adotar uma cláusula “hardship” em contratos firmados pela Administração Pública vinha sendo admitida quando da adoção do regime privado e não nos contratos administrativos em sentido estrito, exigindo o aperfeiçoamento das cláusulas do contrato não para estabelecer dever de renegociar como obrigação de resultado, mas especificação dos meios a serem adotados, indicando quais passos integram o dever de renegociação de boa-fé[7].
Ainda como mecanismo capaz de auxiliar para que sejam contornadas as dificuldades inerentes aos problemas surgidos na fase de execução contratual, inclusive em razão de mutações não passíveis de serem antevistas quando da pactuação originária, aponta-se o instituto denominado “Dispute Board”. Trata-se de um mecanismo cuja primeira menção é referenciada à construção da ponte “Boundary Dam” na década de 60, no estado de Washington (EUA): previu-se um “Joint Consulting Board” que atuou durante o contrato e emitiu opiniões não vinculantes sobre os conflitos. Com a denominação de “Dispute Board”, tem-se a experiência à época da construção do Túnel Eisenhower, no estado do Colorado (EUA). Foi a partir de 1995 que o Banco Mundial passou a exigir Dispute Board em projetos com valor de financiamento superior a 20 milhões de dólares, sendo que em 1996 a Federation Internacionale des Ingenieurs Conseils (FIDIC) passou a incluir como método preferencial para a resolução de disputas. Tem-se claro que internacionalmente trata-se de mecanismo comumente adotado para contratos de construção e projetos de infraestrutura complexos. Em 2006 foi estimada a aplicação em mais de 1.500 contratos de valores que superam US$ 98 bilhões, como, v.g., a construção do canal da mancha, no Reino Unido, projeto hidrelétrico Chacayes, no Chile, e aeroporto de Hong Kong. Embora parte das referências se dê em relação a obras de grande vulto de infraestrutura, tem-se claro que contratos de absorção de tecnologia de grande vulto e longa duração como o ora em discussão enquadram-se nas mesmas premissas que ensejaram a constituição do “Dispute Board” como instância de prevenção e solução de conflitos na fase de execução de contrato complexo.
No Brasil, a sua normatização em diploma federal de âmbito nacional sobreveio com a NLLC (Lei Federal nº 14.133/2021), embora já se admitisse a adoção de “Dispute Boards” mediante interpretação de dispositivos como o art. 42, §5º da Lei Federal nº 8.666 (regra aplicável para os contratos firmados com recursos estrangeiros), art. 44-A da Lei do RDC (Lei Federal nº 13.190/15), art. 23-A da Lei das Concessões (Lei Federal nº 8.987) e art. 11, III da Lei das PPPs (Lei Federal 11.079). A tais dispositivos, acrescem-se diplomas inovadores de outros níveis federativos como a Lei Estadual nº 15.812/2022 do Rio Grande do Sul, e as Leis Municipais 16.873/2018 (São Paulo), 11.241/2020 (Belo Horizonte), 12.810/2021 (Porto Alegre) e 7.958/2021 (Criciúma).
A sua previsão em relação a contratos de execução diferida (longa duração) e complexos (com incompletude decorrente da própria natureza) vem se mostrando eficaz em diversas situações, cabendo normatização a propósito da estrutura a ser adotada: número de membros do comitê, exigência de capacidade técnica, limitação das matérias a serem discutidas (previsão de mínimo e máximo de valores?), definição sobre custo, natureza permanente ou “ad hoc”, dentre outros aspectos. Na tentativa de buscar definir esse novo mecanismo em face de outros já existentes (como a arbitragem ou controle judicial), a doutrina explicita:
“Primeiro, os Dispute Boards não necessariamente produzem uma decisão vinculante para as partes. Logo, aqui se distanciaria da arbitragem. Estaria, então, mais próximo da conciliação ou da mediação? Há diferenças que devem ser apontadas, também, em relação a esses institutos. Na conciliação e na mediação, há clara intenção de “convencer” as partes à autocomposição e, muitas vezes, por meio de concessões mútuas. Além disso, na mediação e na conciliação não se exteriorizam decisões ou pareceres, como ocorre com os Dispute Boards. Estes se prestam a dizer, em determinada situação, qual parte tem razão.
Os Dispute Boards, ainda que, via de regra, não vinculem as partes, não se valem de apelações para concessões mútuas para evitar a judicialização dos conflitos. Deles emanam decisões ou pareceres para dizer quem tem razão no conflito. O convencimento, aqui, assenta-se muito mais no risco de sucumbência, judicial ou arbitral, para a parte que possivelmente não tenha razão. Não haverá, logo, mediação ou conciliação; haverá, sim, indução para o cumprimento do contrato a partir da exposição de decisão fundamentada, técnica e especificamente direcionada à relação contratual determinada. (…)
Não seria excessivo afirmar que os Dispute Boards reúnem melhores condições de propor uma solução eficaz para qualquer conflito do que o árbitro ou o juiz.”[8]
“Uma diferença evidente entre a arbitragem e os disputes boards está no fato de que, no primeiro caso, a disputa será submetida ao árbitro, que não acompanha a execução do contrato, ao qual caberá dirimir, em definitivo, o litígio já instaurado, ao passo que, no segundo caso, a controvérsia será dirimida pelo colegiado de experts, escolhido antes mesmo da existência de qualquer controvérsia, para acompanhar a execução do contrato, com melhores condições, em tese, de prevenir e solucionar problemas, em virtude da redução da assimetria de informações e da celeridade da decisão. Um (a arbitragem) tem por objetivo pôr fim ao conflito já conflagrado; o outro (dispute boards) tem por objetivo prevenir o surgimento de eventual litígio.
Por fim, a mediação, a conciliação e a negociação são formas autocompositivas de resolução de conflitos. Nelas, as partes, com ou sem o auxílio de um terceiro, solucionam suas controvérsias consensualmente. Na negociação, as próprias partes, mediante diálogo e sem a intervenção de terceiro, buscam diretamente chegar a um termo quanto ao litígio. Enquanto isso, tanto na mediação quanto na conciliação, um terceiro (o mediador ou o conciliador), neutro e imparcial, auxilia as partes na composição do conflito.
Mediação e conciliação, contudo, não se confundem. A distinção é sutil: enquanto na mediação o terceiro (mediador) deve levar as partes, elas próprias, a construir o caminho para o acordo, sem influir diretamente nas escolhas feitas, na conciliação permite-se que o conciliador exerça um papel mais ativo na condução do diálogo, apresentando sugestões às partes na busca da solução consensual.” [9]
E para que não se imagine tratar-se de uma grande inovação doutrinária, ainda não discutida no âmbito do Poder Judiciário, destaca-se que já na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho Federal da Justiça Federal, ainda em 2016, foram aprovados os seguintes enunciados:
Enunciado 49: Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) são métodos de solução consensual de conflito
Enunciado 76: as decisões proferidas por um Comitê de Resolução de Disputas (Dispute Board), quando os contratantes tiverem acordado pela sua adoção obrigatória, vinculam as partes ao seu cumprimento até que o Poder Judiciário ou o juízo arbitral competente emitam nova decisão ou a confirmem, caso venham a ser provocados pela parte inconformada
Enunciado 80: utilização dos Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards), com a inserção da respectiva cláusula contratual, é recomendável para os contratos de construção ou de obras de infraestrutura, como mecanismo voltado para a prevenção de litígios e redução dos custos correlatos, permitindo a imediata resolução de conflitos surgidos no curso da execução dos contratos
Cada vez mais o Direito formata e incorpora novas soluções para solucionar situações de litígio pertinentes à execução de algo previamente devido: desde as cláusulas hardships (consagradas no próprio contrato firmado entre as partes para fixar o dever de renegociar de boa-fé), até os Dispute Boards (comitês que podem prevenir e solucionar conflitos surgidos na execução contratual de objeto complexo e de longa duração avençado entre as partes), passando pelos chamados “processos estruturantes” quando do controle judicial. O que se recomenda é que a gestão pública sempre avalie a pertinência de, já na contratação inicial ou posteriormente, incorporar técnicas como cláusula hardship e/ou Dispute Board que viabilizem a melhor administração da execução de um contrato cuja complexidade seja manifesta, com provável a mutação de contingências que, embora não passíveis de ser todas antevistas no momento inicial, impactarão nas diversas etapas execução do contrato e exigirão esforços de todos os envolvidos.
Resta claro não se ignorar que contratos complexos dificilmente têm todos os aspectos pertinentes à sua execução pré-fixáveis de modo absoluto e correto, uma vez que é improvável um enquadramento perfeito dos fatos que ainda ocorrerão durante longo período de tempo subsequente às cláusulas redigidas em dado momento preliminar. A título de exemplificação, uma situação como a pandemia enfrentada nos anos de 2020 e 2021 não poderia ter suas consequências previstas contratualmente em instrumento contratual firmado em 2018, por razões óbvias. Mais uma vez se insiste que isso não significa, contudo, que os aspectos que são passíveis de planejamento, do ponto de vista técnico e administrativo, possam ser ignorados ou não ponderados no momento da contratação. Daí se destacar a importância de a gestão superior de cada órgão ou entidade aferir, mediante o melhor uso dos recursos disponíveis, quais metas assumidas são factíveis, tendo em vista a estrutura atual da instituição, o investimento a ser realizado, a mão de obra a ser empregada, a natureza da atividade a se cumprir, dentre os demais aspectos do acordo. Isso porque a eficiência administrativa requer de qualquer gestor o emprego dos esforços e elementos disponíveis para o planejamento adequado. Sob o ponto de vista da razoabilidade e ponderando a necessidade, adequação e utilidade (sob o prisma jurídico), demanda-se da gestão superior análise que passe pela compatibilidade com a necessidade institucional, adequação na consecução do resultado em face dos meios a serem empregados, excluídos excessos ou insuficiências, bem como utilidade para o atendimento das finalidades estatutárias da instituição, com adequado equilíbrio entre custos e benefícios.
Outrossim, cabe não só a máxima prudência e cuidado nos juízos de gestão como também a análise da pertinência de aperfeiçoamento dos instrumentos previstos para a administração da fase executória, em todas suas etapas. Modernizar com adoção de novos instrumentos e tecnologias é procedimento que exige dos envolvidos firmeza, disposição, cautela e profundidade técnica. São essas as habilidades que ora se recomenda aos gestores e responsáveis pela consultoria e assessoramento jurídico.
[1] NOBREGA, Marcos. Contratos incompletos e infraestrutura: contratos administrativos, concessões de serviço público e PPPs. In: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador, n. 19, mai./jul. de 2009.
[2] FERES, Marcos Vinicio Chein; DIAS, João Paulo Torres. Teoria Geral dos Contratos Relacionais: uma análise procedimental. In: Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos, v. 3, p.329-342.
[3] GUIMARÃES JÚNIOR, Jairo de Carvalho. A tipologia de contratos e a infraestrutura rodoviária: um estudo de caso no Estado da Bahia. In: Reflexões de economistas Bahianos – 2019. Planejamento e Desenvolvimento Econômico: Teoria, Brasil e Bahia. Salvador: CORECON-BA, 2020, p. 206-222
[4] CALIXTO, Vinícius Machado. A teoria do contrato relacional de Ian Macneil e a necessidade de se rediscutir a sua compreensão e aplicação no contexto jurídico brasileiro. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 9/2016, p.105-123, out./dez. de 2016.
Mesmo sendo manifesta a maior profundidade da discussão no direito privado, ainda são incipientes artigos como o publicado por Paula Greco Bandeira sobre contratos incompletos e as consequências daí resultantes: “Tendo em conta que os contratos incompletos não distribuem, originariamente, os riscos e as perdas econômicas decorrentes da oscilação da álea normal, mas remetem essa decisão para momento futuro, quando tenha ocorrido o evento previsto no contrato, poder-se-ia cogitar da inexistência de equilíbrio contratual nos negócios incompletos. Afinal, os termos contratuais, cujo equilíbrio se pretenderia, estariam em aberto, sujeitos à determinação futura, mediante integração das lacunas. (BANDEIRA, Paula Greco. O contrato como instrumento de gestão de riscos e o princípio do equilíbrio contratual In: Revista de Direito Privado, v. 65. p.195-208, jan./mar. de 2016)
[5] Confira-se, a respeito, artigo de Thiago Priess Valiati segundo quem contratos de longa duração como de infraestrutura “devem estar prontos para enfrentar a realidade fática, o que Egon Bockmann Moreira denomina de capacidade de aprendizagem dos contratos. Marcos Nóbrega lembra que os ditos ‘contratos completos’ consistem nos contratos clássicos e irrealistas que estabelecem exaustivamente as hipóteses que podem, inclusive, comprometer a sua execução. A pretensão de completude contratual configura uma verdadeira ficção; os contratos clássicos apresentam uma série de problemas durante a fase de execução contratual, justamente por possuírem a pretensão de serem completos e conseguirem prever todas (ou quase todas) as contingências que podem afetá-los. Nóbrega destaca, assim, que, diante da realidade da incompletude contratual, uma série de circunstâncias deverão ser resolvidas ex post, durante o andamento da execução contratual.
Nesse sentido, Egon Bockmann Moreira afirma que a ‘segurança contratual advém da certeza da mudança’ e que ‘a estabilidade dos contratos de longo prazo não decorre da imutabilidade monolítica, mas sim da dinamicidade/plasticidade’. Vale dizer, a convivência entre a mutabilidade e a segurança jurídica dos contratantes é da própria essência dos contratos de concessão, já que tais contratos são incompletos e dinâmicos. Afinal, se algo é certo no longo prazo de duração destes contratos, trata-se das diversas modificações contratuais, tendo em vista as variadas demandas populares e inovações tecnológicas que podem surgir ao longo da execução do contrato. Afinal, é ilusório acreditar que exista um contrato tão completo que o torne imune a alterações. As alterações das demandas sociais em relação ao objeto do contrato de concessão implicarão frequentes mutações das obrigações contratuais.” (VALIATI, Thiago Priess. O sistema duplo de regulação no Brasil. A regulação por contrato complementada pela regulação por agência. In: Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, v. 8, p.23-58, jan./mar. de 2019)
[6] PEREIRA, Fábio Queiroz; ANDRADE, Daniel de Pádua. A obrigação de renegociar e as consequências de seu inadimplemento. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 15, p. 209-237, abr./jun. de 2018.
[7] Para compreender a propósito da incidência da boa fé quanto ao dever de renegociação, vale retornar às prudentes lições de Fábio Queiroz e Daniel Andrade: “A postura cooperativa exigida das partes na renegociação, entretanto, deve ser compreendida com prudência. Na definição de Anne-Sophie Laborderie, a boa-fé objetiva limita a obrigação de renegociar a um comportamento leal e razoável. Não se pode exigir das partes, por exemplo, a avaliação de pedidos de renegociação manifestamente infundados, bem como a realização de reavaliações na ausência de novos fatos. Ademais, o imperativo de cooperação não acarreta a obrigação de aceitar propostas de readequação contratual, ainda que reputadas equitativas. Não existe um dever de resgatar a outra parte de disposições contratuais desvantajosas, mas, sim, um dever de agir com honestidade e decência” (PEREIRA, Fábio Queiroz; ANDRADE, Daniel de Pádua. A obrigação de renegociar e as consequências de seu inadimplemento. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 15, p. 209-237, abr./jun. de 2018).
[8] MENDONÇA NETO, Delosmar Domingos de; GUIMARÃES, Luciano Cezar Vernalha. In: Revista dos Tribunais, v. 989, p. 125-140.
[9] SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Os meios alternativos de solução de controvérsias na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista de Arbitragem e mediação, v. 70, p. 241-266.