1. Dos prazos de vigência dos contratos administrativos
Decorre da Lei nº 8.666 a vedação de que o contrato administrativo seja firmado por prazo indeterminado, resultando do artigo 57, § 3º a regra geral segundo a qual deve o ajuste ser celebrado por prazo determinado. A sua duração encontra-se adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, uma vez que nestes encontra-se a previsão dos recursos necessários para adimplir as obrigações assumidas pelo Estado. Nesse sentido, confira-se o magistério de José dos Santos Carvalho Filho:
“Sua duração é adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários (art. 57), forma encontrada pelo legislador para impedir que o dispêndio oriundo de contratos venha repercutir em orçamentos futuros, sem que tenham sido ordenadamente planejados os ajustes.
Como os créditos orçamentários têm a duração de um ano, os contratos, como regra geral, deverão também ter sua duração em igual período. Tais créditos vigoram durante cada exercício financeiro, entre 1º de janeiro e 31 de dezembro.” [1]
Os Tribunais de Contas têm assentado para a necessidade de, ressalvadas as exceções, não se ultrapassar a vigência do crédito orçamentário, uma vez que a formalização de contratos com prazo de duração superior à vigência dos respectivos créditos contraria o artigo 57 da Lei nº 8.666 (Decisão nº 286/95-1), motivo por que recomendam que “não prorrogue o contrato de fornecimento de bens por período maior que a vigência dos respectivos créditos orçamentários conforme prevê o art. 57”.[2]
Contudo, a própria Lei nº 8.666, atendendo à peculiaridade de determinadas situações, criou exceções à regra geral, enumerando hipóteses em que os contratos podem ter duração superior aos créditos orçamentários. Destaca-se como hipótese excepcional elencada na Lei nº 8.666 os acordos cujo objeto seja a prestação de serviços a serem executados de forma contínua, quando houver a previsão de preços e condições mais vantajosas para a Administração Pública. Neste caso, reconhece-se ao contrato a possibilidade original de ser celebrado até por 60 (sessenta) meses, após rigorosa averiguação das autoridades competentes da satisfação dos pressupostos incidentes na espécie, ao que se acresce a regra do § 4º do artigo 57 da Lei Federal nº 8.666/93.
Observe-se que o artigo 57 do Estatuto das Licitações determina: “Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: (…) II – à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses;” (redação dada pela Lei Federal nº 9.648/98)
Diante do referido dispositivo, celeuma doutrinária e nas Cortes de Contas instalou-se sobre a viabilidade de firmar, ou não, um contrato de prestação de serviços contínuos, já no instrumento original, pelo período de 60 (sessenta) meses, fixando o lapso de cinco anos como a duração certa do acordo. Uma primeira posição sustentava a necessidade de se obedecer o limite do exercício financeiro, prorrogando-se o vínculo inúmeras vezes até alcançar o prazo máximo de 60 (sessenta) meses, caso fosse do interesse das partes (Leon Frejda Szklarowsky e Sidney Bittencourt). Em sentido contrário sustentavam outros doutrinadores como Diogenes Gasparini e Carlos Ari Sundfeld, afirmando não haver qualquer vício na contratação inicial com vigência para 60 (sessenta meses), por se tratar de serviços contínuos de necessidade do Poder Público na persecução do interesse público primário. Ganhou reforço o entendimento de que são excessivas formalistas e inócuas interpretações de que a contratação deve respeitar o exercício orçamentário, promovendo-se sua renovação no início do ano seguinte, uma vez que se trata de serviço cuja necessidade presente continuará no exercício subsequente. Assim, afirma-se que, em face da lei, é possível que o prazo inicial da contratação ultrapasse o limite da lei orçamentária[3]. Confira-se, ainda, a seguinte conclusão:
“Ante todo o exposto, portanto, é imperioso concluir que a interpretação e aplicação correta para o art. 57, II da Lei 8.666/93 é a de que os contratos de execução continuada podem ter qualquer prazo, desde que menor que sessenta meses, pois somente através desta exegese se consagrarão de melhor forma os princípios da eficiência administrativa, da economicidade administrativa, da continuidade dos serviços públicos, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana, cumprindo e respeitando, enfim, o sistema de valores consignados na Constituição da República Federativa do Brasil.”[4]
No âmbito federal a questão já foi superada com a Orientação Normativa AGU nº 01/2009, segundo a qual “a vigência do contrato de serviço contínuo não está adstrita ao exercício financeiro”. O Tribunal de Contas da União, que em mais de uma oportunidade proclamara a necessidade de se limitar a vigência contratual ao exercício financeiro mesmo em se tratando de serviços contínuos, em 2013 procedeu à revisão de tal posicionamento. Em acórdão originário de estudos realizados quando o Ministro Ubiratan Aguiar, à época em exercício da Presidência do TCU, buscou fornecer contribuições para o aperfeiçoamento da contratação, gestão e encerramento de contratos de prestação de serviços de natureza contínua no âmbito da Administração Pública, o Pleno do TCU reconheceu que o prazo de vigência de um contrato deve atender a sua finalidade, que é a obtenção do melhor preço e das condições mais vantajosas para a Administração, o que em alguns casos só se alcança com a fixação inicial do período de 60 (sessenta) meses:
“200. É pertinente concluir que, quanto maior o prazo de vigência desses contratos, maior é a segurança das empresas para ofertar seus preços, tendo em vista a estabilidade que lhes é oferecida no negócio. Com isso, é esperado um aumento da concorrência, com a expectativa de melhores preços e a participação de empresas melhor qualificadas para prestar os serviços.
- Ademais, o prazo de vigência de 60 (sessenta) meses só traz benefícios à administração, visto que os procedimentos atualmente adotados para a prorrogação serão significativamente reduzidos.
(…) 205. Diante do exposto, verificadas as peculiaridades de cada serviço, os contratos de natureza continuada podem ser firmados, desde o início, com prazos superiores a 12 meses. Contudo, a cada doze meses devem ser avaliadas a necessidade e a qualidade dos serviços e se os valores estão compatíveis com os praticados pelo mercado.”[5]
O Ministro Aroldo Cedraz, relator do acórdão, em seu voto, procedeu a uma análise das posições originárias, mais restritivas sobre a matéria, absorvendo a razoabilidade e adequação do novo entendimento apresentado tecnicamente:
“87. O art. 57, inciso II, da Lei 8.666/93 não impede que contratos referentes a serviços de natureza continuada tenham seu prazo de vigência dimensionado em prazos superiores a 12 meses. A leitura de alguns julgados do Tribunal que trataram dessa questão indica que a principal preocupação desta Corte é evitar que a celebração de contratos por prazos muito longos (60 meses seria o caso extremo) possa colocar a administração em situação de fragilidade caso se verifiquem problemas durante a execução do contrato, notadamente em termos de qualidade na prestação dos serviços. A prorrogação a cada 12 meses seria um momento em que a administração avaliaria a vantajosidade em se manter aquele contrato (Decisão 148/96-Plenário, Acórdãos 1.467/2004-1ª Câmara, 490/2012-Plenário 525/2012-Plenário).
- Por outro lado, é bastante razoável o argumento trazido pelo grupo de que a contratação já por prazo mais alongado poderia permitir a obtenção de preços mais vantajosos, uma vez que as empresas teriam uma maior estabilidade na relação contratual. Essa segurança, entretanto, seria relativa, uma vez que o próprio grupo defende a possibilidade de a administração verificar periodicamente a necessidade, a qualidade e o preço dos serviços.
- O que se verifica é a necessidade de equilíbrio entre dois aspectos: de um lado possibilitar à administração obter melhores preços ao firmar contratos com prazos de vigência superiores (e ainda reduzir custos administrativos para fazer eventuais prorrogações de 12 em 12 meses) e de outro possibilitar à administração avaliar periodicamente a qualidade e as condições econômicas daquela contratação e eventualmente não mais continuar a prestação dos serviços naquelas condições.
- Com relação ao segundo aspecto, por mais que o grupo afirme que a vigência inicial de 60 meses não impede uma avaliação periódica do contrato por parte da administração, não se pode negar que é muito mais simples para a administração não prorrogar um contrato (até porque a prorrogação não se constitui direito do contratado) do que rescindir um contrato durante seu prazo de execução, medida que pode ser custosa e inclusive gerar ações judiciais.
- Considerando que a legislação não determina expressamente que esse tipo de contrato deve ter prazo inicial de vigência de 12 meses, levando em conta os aspectos mencionados nos parágrafos anteriores, entendo que não se deva fixar uma orientação geral de que a administração deve ou não fazer contratos para prestação de serviços continuados com prazo de 12, 24 ou 60 meses. É uma avaliação que deve ser feita a cada caso concreto, tendo em conta as características específicas daquela contratação. Cabe à administração justificar no procedimento administrativo o porquê da escolha de um ou outro prazo, levando-se em conta os aspectos aqui discutidos e outros porventura pertinentes para aquele tipo de serviço.
- No processo que culminou com a prolação do Acórdão 490/2012-Plenário, por exemplo, o Tribunal entendeu legítima a fixação de um prazo inicial de 24 meses, para a contratação de serviços especializados de prevenção e de combate a incêndio e pânico, tendo em vista o argumento apresentado pela entidade contratante de que, para aquele tipo de serviço, não era conveniente uma alta rotatividade de empresas na prestação dos serviços.”
Adaptando tais ponderações à hipótese de transferência de tecnologia, tem-se certo que, em regra, a complexidade da cooperação técnica a ser prestada exige longo período de vínculo, o que justifica a celebração do contrato pelo prazo de 60 (sessenta) meses, sem que se possa atribuir a esse aspecto a natureza de excesso administrativo. À obviedade, é preciso que haja elementos fáticos comprovados que sejam suficientes para evidenciar a legitimidade de pactuação pelo período de 60 (sessenta) meses.
A escolha de um prazo contratual como de 60 (sessenta) meses, nesses casos, dá-se no exercício da competência discricionária de, em face das demandas específicas da realidade em questão, considerar qual é o lapso temporal adequado para o atingimento da finalidade pública, respeitado o limite máximo fixado na legislação. É preciso, em cada caso concreto, excluir a arbitrariedade e analisar, com objetividade e com lastro fático comprovado, se o período mínimo para a transferência tecnológica corresponde ao prazo de cinco anos ou se se vislumbra algum excesso quanto a esse aspecto mensurado. Um dos aspectos a ser considerado cinge-se à avaliação relativa à interrupção antes do término do período pretendido: se prospectivamente se verificar a possibilidade de interromper atividade essencial à coletividade, cabe a previsão de prazo superior à regra geral.
2. Transferência de tecnologia como prestação de serviço
Quanto à caracterização da transferência de tecnologia como prestação de serviço, é mister aferir se há previsão de transferência da informação para a produção do produto, com fornecimento do mesmo mediante cronograma de entrega. É comum que se esteja diante de objeto complexo que, além de inúmeras obrigações de fazer, também implica obrigação de fornecer (entregar produtos).
A definição, em cada caso, daquela que é a tarefa principal do ajuste depende do aspecto prevalecente no cerne do objeto contratado: se a aquisição dos bens necessários ao consumo rotineiro e cotidiano do Poder Público, a classificação é do fornecimento como compra; se a produção dos bens a serem fabricados pelo contratado e/ou pelo contratante (no caso de transferência de tecnologia), o objeto se enquadra como prestação de serviços.
Afirmar que há prestação de serviços é possível na hipótese de figurar como principal aspecto da contratação a produção do bem em questão, de modo que a atividade de fabricação do bem (obrigação de fazer) assume especificidade capaz de afastar o enquadramento do objeto como simples obrigação de dar ou de pagar. Em outras palavras, tem-se um serviço contínuo prestado à Administração se a atividade de produzir o bem assumir relevância preponderante na espécie, não caracterizando simples obrigação acessória e meramente instrumental da obrigação de dar.
Por conseguinte, o essencial é que se investigue, na hipótese em questão, se o interesse principal das partes reside no “fazer” (produzir o bem a ser fornecido) ou na transferência do domínio (adquirir o bem a ser entregue em momento único ou em prestações sucessivas). Se o contratado tem o dever de elaborar, mediante uma atuação especializada e personalíssima, o objeto específico a ser fornecido, o “fazer” é preponderante e, portanto, mostra-se cabível classificá-lo prestação de serviço. No entanto, se não há interferência subjetiva e especializada de uma das partes, mas, ao contrário, a simples “aquisição” contínua de um bem padronizado e disponível no mercado é o interesse prevalecente, sendo imperiosa a classificação como compra, com parcelamento periódico da entrega.
Em inúmeros casos, tem-se no país a previsão de uma tecnologia que empresas privadas detém, aceitando a tarefa de transferir esse conhecimento a órgãos públicos e entidades administrativas, mediante exclusividade na entrega de insumos necessários à produção do bem. O último aspecto afigura-se como secundário em relação à obrigação principal, qual seja, a tarefa de transferir tecnologia que, sem dúvida, define-se como serviço. No Brasil, em diversos setores há necessidade de treinamento dos servidores públicos, em um processo de aprendizagem que internaliza o conhecimento necessário. Sendo assim, essas realidades evidenciam que o objetivo principal do contrato firmado consiste em prestação de serviço, qual seja, transferência de tecnologia com as atividades que lhe são intrínsecas.
3. Serviços contínuos e artigo 57, II da Lei Federal nº 8.666/93
Caracterizado que o objeto do contrato que se pretende firmar consubstancia serviço, cumpre analisar a continuidade como característica do mesmo, de modo a se ter o enquadramento no inciso II do artigo 57 da Lei Federal nº 8.666. Jorge Ulisses Jacoby Fernandes define serviços contínuos como aqueles que se caracterizam pela necessidade de continuidade na sua prestação “não apenas a continuidade do desenvolvimento, mas a necessidade de que não sejam interrompidos, constituem os requisitos basilares para que se enquadrem como prestação de serviços a serem executados de forma contínua.”[6]
Ao tratar dessa noção, o Tribunal de Contas da União fixou: “O caráter contínuo de um serviço é determinado por sua essencialidade para assegurar a integridade do patrimônio público de forma rotineira e permanente ou para manter o funcionamento das atividades finalísticas do ente administrativo, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional.”[7]
O que se requer, portanto, é a demonstração que eventual interrupção da transferência de tecnologia implica comprometimento de parte relevante do objeto em questão. Para Morgana Bellazzi de Oliveira Carvalho,
“Assim, o contrato de prestação de serviços continuados (contrato cujo núcleo é uma obrigação de fazer) celebrado com o Poder Público não está sujeito à vigência do respectivo crédito orçamentário, exceção contida no art. 57, II, da Lei 8.666/93.
A exceção prevista significa que contratos de tal natureza não estão adstritos aos limites de vigência dos créditos, podendo permanecer em vigor após o final do exercício no qual foram celebrados e depois do término da vigência do crédito ao qual estavam vinculados.
Portanto, o fundamento lógico desta exceção consiste na inconveniência da interrupção dos serviços de atendimento ao interesse público. Caso fosse vedada a contratação superior ao prazo de vigência dos créditos orçamentários, os serviços prestados de modo contínuo teriam de ser interrompidos, implicando sério risco de continuidade da atividade administrativa.”[8]
Em se tratando de serviço continuado e estando demonstrado que eventual interrupção pode comprometer uma das competências públicas, tem-se evidente a necessidade de que o contrato se estenda por mais de um exercício financeiro, continuamente. Em hipótese semelhante, o Tribunal de Contas da União já admitiu em caráter excepcional, com base em interpretação extensiva do disposto no inc. II do art. 57 da Lei nº 8.666/1993, que as contratações para aquisição de determinados produtos fossem consideradas como serviços de natureza contínua:
“É uma situação limite, que realmente coloca em risco os hemofílicos. Solução alternativa, portanto, deve ser adotada. A meu ver, a admissão dessas compras com fundamento no inciso II do multicitado art. 57 é factível, principalmente se levarmos em consideração que as demais características necessárias para se considerar a excepcionalidade também estão presentes neste tipo de aquisição.
- A Unidade Técnica citou dois precedentes, um deles do Tribunal de Contas do DF – TCDF e outro deste Tribunal. Em que pese não se tratar de compras de hemoderivados, ou outros medicamentos de uso contínuo, nas duas situações restou demonstrado que a adoção de interpretação extensiva à aplicação do inciso II do art. 57 da Lei n.º 8.666/1993 veio permitir que os objetivos institucionais do órgão não fossem comprometidos.
- Dentro desta Corte, o precedente citado foi o Acórdão 1859/2006 – Plenário – Sigiloso, que tratou de denúncia sobre possíveis irregularidades na gestão da Infraero – Superintendência do Aeroporto Internacional de Florianópolis/SC. Dentre as falhas apontadas, havia a contratação de fornecimento de combustíveis como prestação de serviços de forma contínua, nos termos do inciso II do art. 57 da Lei de Licitações.
- Acredito que o então Relator, Ministro Marcos Vilaça, foi feliz ao transcrever lição do ilustre Marçal Justem Filho sobre o tema (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10 ed., São Paulo: Dialética, 2004, PP. 492/493). Atrevo-me a repetir a citação, ante a semelhança da matéria, in verbis:
‘A identificação dos serviços de natureza contínua não se faz a partir do exame propriamente da atividade desenvolvida pelos particulares, como execução da prestação contratual. A continuidade do serviço retrata, na verdade, a permanência da necessidade pública a ser satisfeita. Ou seja, o dispositivo abrange os serviços destinados a atender necessidades públicas permanentes, cujo entendimento não exaure prestação semelhante no futuro.
Estão abrangidos não apenas os serviços essenciais, mas também compreendidas necessidades públicas permanentes relacionadas com atividades que não são indispensáveis. O que é fundamental é a necessidade pública permanente e contínua a ser satisfeita através de um serviço.’
- É patente que a solução de continuidade no fornecimento dos fatores de coagulação pode causar enormes prejuízos à saúde de seus dependentes. A adoção da medida sugerida trará, sem dúvida, maior segurança à classe de hemofílicos, além de satisfazer necessidade pública permanente e atender a obrigação constitucional. Portanto, é essencial, nesse momento, que o Tribunal admita que o Ministério da Saúde realize as compras dos medicamentos com base no art. 57, II, da Lei n.º 8.666/93.”[9]
Se o mero fornecimento de um produto como fatores de coagulação (obrigação de dar) foi enquadrado como hipótese de serviço contínuo, afigura-se teratológico excluir do inciso II do artigo 57 da Lei nº 8.666 uma atividade que efetivamente consubstancia obrigação de fazer e de modo contínuo, qual seja, transferência de tecnologia para cumprimento de determinado objeto que se caracteriza como competência púbica.
4. Cautelas finais
Conclui-se, portanto, que hipóteses de transferência de tecnologia como as delineadas enquadram-se na exceção do artigo 57, II da Lei Federal nº 8.666/93. No caso do procedimento para celebração do acordo, sublinhe-se a necessidade de que o prazo de vigência seja estipulado conforme a natureza e complexidade do objeto, atentando para as metas estabelecidas e o plano necessário para a execução de todas as medidas, conforme plano de trabalho a ser analisado em cada hipótese. Não se admite fixação de prazos irrazoáveis em face da complexidade da transferência tecnológica a se realizar, sendo a exiguidade do lapso temporal um risco claro apto a comprometer o escopo contratual. É preciso levar em conta todos os fatores que se envolvem na consecução das atividades essenciais à absorção do conhecimento de produção, incluindo-se disponibilidade de quadro de pessoal e dotações orçamentárias suficientes para que o projeto se concretize, sem desperdício dos recursos vinculados à espécie. Transferência de tecnologia, em regra, implica projeto de vulto, com repercussões econômicas, sociais e financeiras muito significativas, a exigir equacionamento adequado.
Qualquer contrato dessa natureza deve ser negociado cautelosamente. Está a Administração Pública diante da oportunidade de exercer a atividade de planejamento de modo a superar os problemas comuns no cotidiano do Estado, enfrentando o dinamismo dos fatores técnicos que repercutem na espécie, o teor das cláusulas contratuais diversas de modo a não comprometerem os interesses da Administração, com a necessária adaptação às demandas sociais de tarefas executadas pelo setor privado de modo competente.
Contratos de transferência de tecnologia entre o setor privado e o espaço público comumente nos colocam em frente de situações em que as necessidades administrativas são manifestas e, em certos casos, até mesmo demandas sociais urgentes encontram nesse vínculo senão o único, mas excelente espaço de atuação eficiente. Em certas realidades, o setor público – após período de desmobilização interna de pessoal e problemas graves na execução de infraestrutura disseminada em diversos órgãos e entidades administrativas, encontram nesse desafio o instrumento capaz de funcionar como catalisador de aprendizagem, de modo que se desenvolvam novas capacidades na esfera federativa, restaurem-se antigas aptidões, evitem-se alguns vícios comuns a não serem reprisados, melhore a eficiência das providências administrativas, com ampliação da seara de atuação de cada envolvido e cumprimento de resultados satisfatórios em sua competência específica. É imperioso que isso se dê sem o desconhecimento de limites jurídicos incidentes na espécie.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13ª ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 163
[2] Processo nº 014.662/2001-6, Acórdão nº 2.521/2003, 1ª Câmara do TCU
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 8ª ed. São Paulo: Dialética, 2001, p. 52
[4] ARAÚJO, Fabrício Simão da Cunha. Duração dos contratos administrativos de execução continuada. Jus Navigandi, Disponível em <http://jus.com.br/artigos/10841>. Acesso em 25 de agosto de 2017
[5] Acórdão nº 1214/2013, rel. Min. Aroldo Cedraz, Pleno do TCU, julgamento em 22.05.2013
[6] Boletim de Licitações e Contratos. São Paulo: NDJ, fevereiro de 1996, n. 2, p. 75
[7] Acórdão nº 132/2008, rel. Min. Aroldo Cedraz, 2ª Câmara do TCU, julgamento em 12.02.2008
[8] CARVALHO, Morgana Bellazzi de Oliveira. Contrato administrativo: desvinculação da vigência do crédito orçamentário e controvérsias acerca da reserva de dotação orçamentária. Disponível em http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7B041600E3-87AD-4904-BDF4-BF2E3C86601C%7D_contrato-adm-desvinculacao-vigencia-credito.pdf. Acesso em 24.08.2017
[9] Acórdão nº 766/2010, rel. José Jorge, Pleno do TCU, julgamento em 14.04.2010