Em se tratando da realidade estatal, tem-se como inviável pretender esmiuçar, em sede de lei aprovada pelo Parlamento, todos os aspectos técnicos necessários à operacionalização concreta das figuras jurídicas do Direito Administrativo. Com efeito, em diversas realidades pertinentes ao regime jurídico de direito público, é inviável prever abstrata e objetivamente todos os elementos relativos à realização deveres do Estado, o mesmo ocorrendo com suas prerrogativas e direitos. Na maior parte das situações, é indispensável que normas constitucionais, legais e administrativas ensejem liberdade de escolha para o agente público que terá sua atuação balizada por princípios consagrados no ordenamento e outras regras vigentes. E em muitos casos o ordenamento necessita utilizar conceitos jurídicos indeterminados que, após interpretação sistêmica em face de realidades concretas, podem sim ensejar legítima discricionariedade, permitindo que a autoridade ou órgão público escolha, conforme conveniência e oportunidade administrativas, uma dentre duas ou mais opções que o Direito estipulou como admissíveis.
Nestas hipóteses, o ordenamento usa fórmulas que, por si só, já evidenciam a liberdade pública para escolha superveniente. Em determinadas circunstâncias, a abertura no sistema para essa liberdade dá-se exatamente por meio do emprego de conceitos jurídicos indeterminados que são noções vagas, fluidas ou imprecisas, e que não possuem um único significado de caráter prévio e absoluto, mas, ao contrário, situam-se entre uma zona de certeza positiva e uma zona de certeza negativa conceitual.
Hoje em dia, afirma-se que a indeterminação não é um vício ou uma imperfeição de determinados vocábulos da língua, mas se trata de uma característica da linguagem. Neste contexto, o que a doutrina administrativa chama de conceito jurídico indeterminado é a noção que, além de vaga inicialmente, ainda se mantém indeterminada após ser interpretada diante de uma realidade. Insere-se na denominada zona de penumbra que, no caso concreto, impede a definição precisa dos seus efeitos vinculantes daqueles que a ela se sujeitam. Assim ocorre quando a lei utiliza expressões ou termos plurissignificativos dos quais podem decorrer, ou não, certa liberdade de escolha para o agente público. É o caso de a norma se utilizar de expressões como conveniência administrativa ou paz social ou produtividade no trabalho. Nestas hipóteses, é possível que, mesmo após a hermenêutica à luz dos princípios integrantes do regime jurídico administrativo, o conceito ainda comporte vários significados defensáveis diante de determinada realidade. Daí poderá resultar discricionariedade no mandamento do ato ou mesmo na situação fática que autoriza o exercício da competência pública. Esta é a situação em que o emprego de conceito jurídico indeterminado resulta em ato discricionário.
Pode ocorrer, contudo, que, após interpretar o conceito indeterminado à luz do regime jurídico público incidente em dado caso concreto, não remanesça liberdade alguma ao administrador público. O conceito, inicialmente vago, assume contornos precisos e que vinculam a ação administrativa em um só sentido, no tocante ao pressuposto fático que a autoriza e quanto ao comando que dela advirá. Nestes casos, embora em princípio uma regra legal admitisse cogitar-se de certa liberdade administrativa, constata-se que tal liberdade desapareceu, após ser a regra interpretada em face das demais normas do sistema, ponderadas à luz do interesse público e direitos fundamentais. Os limites principiológicos e legais incidentes na espécie impediram que se mantivesse espaço de valoração pública conforme critérios de conveniência e oportunidade administrativas, porquanto um só motivo ou conteúdo é admissível perante aquelas especificidades concretas e jurídicas.
Pode-se afirmar, por conseguinte, que o emprego de conceitos jurídicos indeterminados pode vir a legitimar, ou não, espaço de escolha para o agente público competente, não havendo qualquer vício que lhe seja intrínseco e que justifique afastar o seu emprego das normas constitucionais, legais ou regulamentares. Uma vez empregados, haverá discricionariedade se, em face da discrição na norma e observadas todas as delimitações adicionais relacionadas com o caso concreto, for impossível identificar objetivamente uma única solução para o caso, hipótese em que a Administração deterá margem de liberdade para escolher dentre as várias soluções legítimas. Se após os testes de juridicidade ainda remanescerem alternativas para livre escolha pública, reconhece-se presente a discricionariedade. Caso contrário, se se tiver uma única ação possível e um único fato ensejador do ato administrativo, tem-se a vinculação. E não alterará esta característica vinculada do ato a circunstância de o mesmo fundar-se em norma cuja hipótese foi descrita mediante o uso de conceito jurídico indeterminado. Isto porque o referido conceito inicialmente vago determinou-se na realidade específica em que foi aplicado, vinculando os seus destinatários.
Na mesma linha de raciocínio, a Procuradora do Estado Célia Cunha Mello escreveu: “quando for suficiente a interpretação, deve-se procurar a solução hermenêutica prevista na lei, no sentido de buscar a significação dos termos abertos previstos na lei, mas se terminado o trabalho de interpretação ainda restar à Administração o poder de optar, dentre várias soluções, por aquela que melhor atenda ao bem comum, ter-se-á alguma liberdade discricionária”.[1]
Não é lícito, em hipótese alguma, confundir discrição com arbítrio. Discricionariedade é agir dentro dos limites da lei. Arbitrariedade é agir fora dos limites da lei. A discricionariedade começa quando, finda a atividade hermenêutica, sobram alternativas igualmente admitidas perante o direito, no tocante ao conteúdo ou ao motivo do ato administrativo. Por isto, afirma-se que a discricionariedade começa onde a hermenêutica termina e ainda sobram opções. Ela termina, por sua vez, onde findam as opções de escolha admitidas pelo sistema jurídico e começa o arbítrio. Com efeito, a arbitrariedade principia exatamente onde acabam as escolhas discricionárias e, portanto, legítimas. Ou seja, o arbítrio tem início quando a ação administrativa vai além das alternativas que a ordem jurídica consagrava. Consiste em comportamento ilícito, pois fora dos limites do ordenamento.
Em diversas realidades, há expressa previsão legal de uma figura jurídica, com determinados requisitos ali consagrados, sendo o detalhamento e pormenorização dos critérios veiculados em Decretos do Chefe do Executivo ou atos regulatórios dos órgãos públicos ou entidades administrativas, mediante uso de expressões vagas como “interesse social”[2], “urbanidade” ou “qualidade do trabalho”, o que consubstancia legítima normatização regulatória a ensejar regular discricionariedade administrativa. Não se vislumbra qualquer vício em permitir ao gestor ou administrador competente o exercício da conveniência administrativa ao aplicar tais conceitos, motivadamente, máxime em se considerando a incidência dos princípios constitucionais, bem como pressupostos negativos e positivos consagrados em lei.
Tem-se, aqui, o chamado “mérito administrativo” que, conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Mérito do ato é o campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única adequada.”[3]
Sendo assim, certo é que o ordenamento, em inúmeras circunstâncias, opta por deixar sob responsabilidade do agente público, mais próximo da realidade administrativa, a valoração de parâmetros não positivos, mas essenciais na escolha da decisão administrativa. Este núcleo livre que o sistema assegura ao administrador é o juízo de conveniência e oportunidade que se encontra no cerne da discricionariedade, restrito à Administração. Este núcleo é definido a partir da liberdade que ainda permanece após a incidência de todos os parâmetros integrantes da juridicidade como, v.g., proporcionalidade, segurança jurídica, boa-fé objetiva e eficiência. Se após a observância de todas essas normas, resulta clara a possibilidade de o agente público escolher uma ou outra alternativa, todas admitidas pelo sistema, não há vício em falar-se em mérito administrativo de ato discricionário.
Discorda-se do entendimento doutrinário segundo o qual a força coercitiva dos princípios implícitos e explícitos do regime jurídico administrativo extinguiriam, sempre, o espaço da discricionariedade administrativa. Este fenômeno que César A. Guimarães Pereira qualificou como a redução à zero da discricionariedade administrativa corresponderia à situação em que, diante das circunstâncias do caso concreto e do procedimento administrativo adequado à escolha pública, a gama de alternativas limitar-se-ia a uma única conduta possível:
“Hartmut Maurer explica que, para haver a ‘redução do poder discricionário a zero’ (Ermessensreduzierung aufNull), no caso concreto somente uma solução teoricamente possível deixa de apresentar vício do poder discricionário – transgressão de limites, abuso de poder ou violação de direitos fundamentais ou princípios gerais de direito. Em vista disso, a Administração é obrigada a ‘escolhê-la’. Acrescenta que a redução a zero pode resultar da influência dos direitos fundamentais ou outras regras constitucionais.”[4]
Não se aquiesce, pois, com o fim da discricionariedade administrativa que resultaria da sua redução a zero, genérica e aprioristicamente. Isto por ser impossível imaginar que é viável, em todos os casos, mediante simples atividade hermenêutica, chegar-se objetivamente a uma única solução admissível, ainda mais em se tratando de matéria de complexidade empírica e/ou técnica, muito comum no cotidiano do Estado. Deve-se admitir a finitude da capacidade de abstrativizar previamente todos os pressupostos e limites que podem surgir na realidade administrativa. Nem sempre há possibilidade de tecnicamente chegar-se a um único comando passível de consagração abstrata e preliminar, exaustiva, em normas da ordem jurídica. Ademais, conforme prescreve César A. Guimarães Pereira, nem sempre é possível, com base em critérios racionais, atingir uma decisão para o caso concreto. “De um modo ou de outro, haverá casos em que não se poderá, objetivamente, saber qual a solução ótima para o caso concreto. Aí é que estará a margem de liberdade que configura a discricionariedade administrativa.” Em vez de se buscar uma única decisão ótima para cada uma das complexas demandas administrativas, defende-se que sejam observados todos os limites da juridicidade, restringindo-se as decisões discricionárias aos parâmetros vinculantes do ordenamento, com equilibrada ponderação dos interesses presentes em face dos princípios vigentes. Ainda é César A. Guimarães Pereira quem assevera que “o relevante dessa constatação é permitir a percepção de que o resultado da apreciação técnica da Administração não é necessariamente unívoco nem conduz sempre de modo objetivo a um resultado exato.”[5]
Destarte, ao contrário do que se pode imaginar um conceito jurídico indeterminado consiste em expediente utilizado pelo legislador para fornecer indicações genéricas para aplicação de uma regra jurídica, pois como explica Barbosa Moreira “às vezes é impossível, que a lei delimite com traços de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica, isto é, que descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico”.[6]
Com efeito, em diversas situações não há como a lei, abstrata e previamente, trazer todos os aspectos técnicos que podem ser mensurados pelo agente público. Daí porque a sua normatização em sede regulamentar e com emprego de conceitos jurídicos indeterminados afigura-se cabível, sem que se possa falar em imperfeição linguística, vício intrínseco ou qualquer arbítrio. Caberá ao aplicador da norma fazer um esforço hermenêutico em cada realidade, de modo que as expressões empregadas nas normas mantenham-se na zona de certeza positiva, a ensejar discricionariedade ou até mesmo, em determinados casos, vinculação administrativa.
Entende-se juridicamente impossível a pretensão no sentido de se esmiuçar, em lei, todos os aspectos técnicos que podem ser cogitados. Em diversas situações é preciso que alguns desses aspectos sejam tratados em sede regulamentar pelo Chefe do Executivo e regulatória pelos órgãos públicos e entidades administrativas de direito público interessadas, sendo inevitável e irrepreensível o uso de conceitos jurídicos indeterminados. Na verdade, mesmo nessas condições é possível que ainda remanesça espaço de escolha livre para o gestor ou administrador, conforme conveniência e oportunidade administrativa. Nesse caso, haverá discricionariedade, sem que se possa falar em qualquer vício. Já na hipótese de decorrer diretamente da Constituição e da lei ou mesmo dos atos regulamentares e regulatórios, a ação necessária a um determinado agente público, ter-se-á vinculação, sendo questão de legalidade respeitar a competência, o motivo, a finalidade, a forma e o conteúdo do comportamento estatal necessário na espécie. A resposta se se está em uma ou em outra realidade somente será possível no caso concreto[7], mediante complexa atividade hermenêutica. Daí ser manifesto que o uso de conceito jurídico indeterminado não significa, aprioristicamente, liberdade de escolha e, mesmo nos casos de discricionariedade, não há que se falar em poder ilimitado da Administração Pública[8].
[1] MELLO, Célia Cunha. Interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. v.12, n.3, jul/set. Belo Horizonte. 1994. p. 176
[2] Confira-se as seguintes lições invocadas pelo STJ ao tratar da noção de interesse social: “Pode-se afirmar, utilizando a classificação de Engisch, que interesse social encerra conceito jurídico indeterminado (porque o seu “conteúdo e extensão são em larga medida incertos”) e normativo(porque “carecido de um preenchimento valorativo”), e sua função “em boa parte é justamente permanecerem abertos às mudanças das valorações”.
Conforme observou o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, “é preciso ter em conta que o interesse social não é um conceito axiologicamente neutro, mas, ao contrário – e dado o permanente conflito de interesses parciais inerente à vida em sociedade – é idéia carregada de ideologia e valor, por isso, relativa e condicionada ao tempo e ao espaço em que se deva afirmar”. É natural, portanto, que os interesses sociais não comportem definições de caráter genérico com significação unívoca.
Como demonstrou J. J. Calmon de Passos, “a individualização do interesse público não ocorre, de uma vez por todas, em um só momento, mas deriva da constante combinação de diversas influências, algumas das quais provêm da experiência passada, enquanto outras nascem da escolha que cada operador jurídico singular cumpre, hic et nunc, no exercício da função que lhe foi atribuída. Assim, a atividade para individualização dos interesses públicos é uma atividade de interpretação de atos e fatos e normas jurídicas
(recepção dos interesses públicos fixados no curso da experiência jurídica anterior) e em parte é uma valoração direta da realidade pelo operador jurídico, atendidos os pressupostos ideológicos e sociais que o informam e à sociedade em que vive, submetidos à ação dos fatos novos, capazes de modificar juízos anteriormente irreversíveis” .
Genericamente, como Calmon de Passos, pode-se definir interesse público ou interesse social o “interesse cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde”.
A Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria de interesses, como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moral idade administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos, mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF, art. 170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI, Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.)” (REsp nº 799.841-RS, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJU de 08.11.2007)
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 908-909
[4] PEREIRA, César A. Guimarães. Discricionariedade e apreciações técnicas. Revista de Direito Administrativo, v. 231, Rio de Janeiro, Renovar, p. 243, jan./mar. 2003
[5] PEREIRA, César A. Guimarães. Discricionariedade e apreciações técnicas. Revista de Direito Administrativo, v. 231, Rio de Janeiro, Renovar, p. 263-264, jan./mar. 2003
[6] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo, Saraiva: 1988, p.64
[7] “I- A infração disciplinar consistente em o servidor público ‘prevalecer-se, abusivamente, da condição de funcionário policial’ (43 e inciso XLVIII da Lei nº 4.878/65) encerra um conceito jurídico indeterminado, o qual deve ser interpretado a partir dos elementos de cada caso concreto. Descabe, portanto, interpretação apriorística acerca do juízo de aplicação.” (Emb. Declaratórios no MS nº 12.689-DF, rel. Min. Felix Fischer, 3ª Seção do STJ, DJe de 18.03.2008)
[8] “O art. 4o, da Lei n. 8.437/92, bem como o art. 4o, da Lei n. 4.348/64, ao disciplinarem a suspensão de liminares contra o Poder Público pelos Presidentes de Tribunais, valem-se, no seu enunciado, de ‘conceitos jurídicos indeterminados’, o que, no entanto, não autoriza a conclusão de existência de ilimitado poder discricionário de decisão.” (Agravo Regimental na MC nº 4.053-RS, rel. Min. Paulo Medina, 2ª Turma do STJ RSTJ, v. 148, p. 133)