1. Aos poucos, um Everest de dor e desafios
À medida que o tempo passa, a população de Brumadinho e todos os envolvidos pela tragédia percebemos que um evento dessa monta “realiza-se aos poucos”. É impossível absorver, de uma única vez e automaticamente, todas as transformações que as mortes e a devastação trazem tanto na sociedade quanto na esfera do Poder Público. A cada corpo encontrado, a cada conclusão de água imprópria para consumo, a cada pessoa velada e enterrada, a cada fotografia da vegetação destruída, chegamos mais perto de compreender o Everest de desafios a superar.
Vale lembrar que Everest não se escala sozinho e muito menos sem planejamento, persistência, força e foco. Será preciso definir as múltiplas tarefas, quem as assumirá, como será possível proceder, quais os caminhos deverão ser percorridos, quais as saídas de emergência e como evitar que novos problemas nos obriguem escalar, a seguir, um Kilimanjaro. Chega de montanhas de sofrimento e de desafios de difícil superação. Ok, é hora de aceitarmos o Everest de 2019 e encará-lo. Mas, principalmente, hora de evitar que sejamos obrigados a escalar piores Kilimanjaros, em razão de outras tragédias absurdas.
2. PPP: problemas, providências e perspectivas
Percebe-se que a catástrofe do rompimento da barragem do Córrego do Feijão representa uma consequência dramática de problemas crônicos da realidade brasileira. Desde a não aplicação das leis vigentes e o não aperfeiçoamento de diplomas com modelos inadequados, até a falta de investimento mínimo, de servidores públicos treinados e de orçamento suficiente, passando pela corrupção, pela não articulação entre os órgãos dos diversos Poderes e pelos problemas do automonitoramento, de renúncia à atuação administrativa unilateral e de ausência de maturidade institucional para o movimento de consensualização, foram plúrimas e significativas as dificuldades que concorreram para a tragédia e que permanecem como obstáculos no presente e no futuro próximo.
Destaca-se que são inúmeras as medidas que se mostram indispensáveis: o acolhimento imediato das famílias desabrigadas, encontrar na lama os corpos daqueles que ainda estão desaparecidos, amparar familiares e amigos no doloroso processo de luto, planejar reconstruções, mensurar danos e formatar como a empresa responsável vai ressarci-los, estruturar cadastramentos que permitam a prestação de serviços públicos diversos, evitar que processos judiciais ou acordos extrajudiciais se arrastem por anos com emprego técnicas de atraso abjetas e já utilizadas sem escrúpulos anteriormente, fiscalizar outras barragens em idêntica situação de perigo, fazer o descomissionamento de todas que representarem risco a outras populações, evitar que a corrupção comprometa parte das medidas adotadas, planejar como reerguer a cidade atingida com eventual mudança da sua atividade econômica principal, incluindo o treinamento dos cidadãos e fomento das novas iniciativas, reforçar identidade social que sirva de amparo num momento de tanta dor e viabilizar que competências públicas indispensáveis à segurança dos cidadãos e à preservação do meio ambiente sejam, enfim, executadas adequada e tempestivamente.
Cumpre afastar os riscos de se ignorar a seriedade do momento que o país vive. O Brasil é um país ideologicamente rachado, com posições antagônicas que destilam ódio irracionalmente, vitimado pela deterioração dos padrões éticos no serviço público e no setor privado, além de contaminado pela descontinuidade administrativa e obsessão lucrativa de quem exerce atividades econômicas. Precisamos, cada um de nós, retomar a capacidade de diálogo, de reconhecer os próprios erros e de buscar aperfeiçoamento para os momentos futuros.
Não se pode sacrificar o potencial de efetividade da atuação do Estado que requer que o Brasil incorpore atividade de planejamento. Afinal, não se pode apenas administrar o presente, mesmo que caótico e tão imenso, a nos engolfar numa teia de lama. Não. É preciso escapar, lutar pela sobrevivência e ir além. É necessário planejar o futuro. Conforme adverte o constitucionalista Gilberto Bercovici, o Estado que abre mão de planejar o futuro, abre mão de uma das características fundamentais a estatalidade. É clara a necessidade de se escolher as diretrizes, estratégias, prioridades, ações e metas realizado pelo Estado, com verdadeira participação social. É importante que estruturas públicas e sociais estejam comprometidas com as decisões de caráter geral que apontem os rumos e linhas de atuação governamental, potencializando os recursos disponíveis e implantando os fins do Estado previstos na Constituição. É preciso que as empresas se comprometam, enfim, com muito mais que assegurar resultados lucrativos para seus investidores. São essas decisões que viabilizarão os comportamentos executivos subsequentes.
É uma ação tempestiva e eficiente da Administração Pública que tornará real o Estado Revitalizado, com alta capacidade de planejamento e capacidade de promover o desenvolvimento em favor da população, inclusive com projetos e médio e longo prazo. São empresas que entendam ser indispensável a incorporação de valores éticos mínimos a pautar suas ações concretas que poderão sobreviver no mercado. É preciso que abandonem definitivamente uma postura de “autoproteção” e que passem a assumir as retificações necessárias em virtude dos seus erros, aceitando que só perdem definitivamente se se recusam ao “mea culpa” seguido de um célere processo de indenização, cabendo-lhes uma padronização responsável de corretos comportamentos subsequentes, com execução rigidamente acompanhada. Nesse contexto, é uma sociedade engajada que poderá fiscalizar o exercício de atribuições pelos diversos Poderes do Estado e por empresas privadas, assumindo também o seu papel na produção da cidadania a que faz jus.
3. Sobre planejamento
A atividade de planejamento é fundamental em um momento de reconstrução. Exige compreensão sobre a sua natureza jurídica enquanto política pública. Do ponto de vista genérico, definem-se as políticas públicas como instrumentos de ação dos governos que implicam a escolha dos meios para a realização dos objetivos públicos, com a participação do Estado e, em diversas realidades, de particulares. Formular política pública vincula-se à atividade de planejamento estatal, até mesmo porque “As políticas públicas devem ser vistas também como processo ou conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito.”[1] Ademais, “Quando falamos políticas públicas, ora estamos a significar a ação estatal com vista ao atingimento de um fim estatal, mais especificamente a concretização dos direitos fundamentais; ora estamos a significar o planejamento, o programa, as balizas dessa atuação; ora estamos a significar todo o conjunto de ações, incluídas as ações de planejamento e as ações executivas do atuar estatal.”[2]
Considerando o processo de escolha das diretrizes, estratégias, prioridades, ações e metas presentes em uma política relevante como a de reconstrução de uma cidade destruída por uma catástrofe ambiental, certo é tratar-se de atividade à qual o Estado não pode renunciar. Afinal, está-se diante de decisões de caráter geral que apontam rumos e linhas estratégicas para atuação governamental, privada e social, potencializando os recursos disponíveis para se tornarem públicas, reduzindo efeitos da devastação e buscando implantar uma nova realidade.
Muito além do lado político do planejamento governamental, tem-se o lado técnico que exige atuação de profissionais com conhecimento das diversas searas envolvidas e boa capacidade de governança. É necessário ensejar que venham à tona uma pluralidade de enfoques, assumindo o Estado a função de articulador e promotor do desenvolvimento. Estratégias podem vir à tona a partir da realidade social e do mercado, sendo necessário operacionalizá-las em planos que efetivamente conduzam ao desenvolvimento de modo ordenado e articulado. O alinhamento das diversas organizações é indispensável para que se consiga implementar os processos de execução tempestivamente, sendo indispensável monitorar, reformular, atentar para a ordem sequencial das medidas, absorver novos fatos que exijam mutação nas estratégias, exigindo-se criatividade inovadora que não seja incompatível com a juridicidade e lideranças aptas a viabilizar a transparência e a comunicação entre os interessados.
A multiplicidade de causas e a multiplicidade de providências reproduz-se na exigência de uma multiplicidade de intervenções de diversos setores, o que requer uma rede alinhada e comprometida com as metas fixadas, sem busca de primazia ou destaque exagerados. Daí a importância da coordenação que busque convergência e foco na obtenção dos resultados, além de técnicos que, sem perder a visão do todo e dos objetivos, utilizem os meios aptos a conduzir às metas, proporcionando uma sequência de contribuição ordenada a concretizar todo o planejado.
Humberto Martins e Caio Marini já observavam que um modelo ideal de planejamento e de gestão para resultados deve ser dinâmico e, portanto, não se limitar a apenas definir e mensurar resultados. Gerir resultados, nessa perspectiva, significa defini-los (a partir de um planejamento abrangente), alcançá-los (mediante processos claros de implementação), monitorá-los e avaliá-los (a partir de controles, acompanhamentos e ajustes decorrentes). Por isso, trata-se de um modelo abrangente (alinhamento dos esforços para os resultados desejados) e multidimensional, levando em conta as múltiplas dimensões do esforço (processos, recursos, estruturas, sistemas informacionais e pessoas) para alinhá-los aos resultados. Deve-se evitar definições reducionistas e unidimensionais, que deixam de fora aspectos significativos do esforço e do resultado). Preconizam, assim, a construção de agenda estratégica que defina propósito, resultados e forma de alcançá-los (mobilização, sondagem de expectativas, elaboração de estudos prospectivos), o alinhamento da arquitetura mediante identificação da contribuição de cada unidade, dimensionamento dos recursos necessários e dos incentivos às equipes envolvidas, além do monitoramento e avaliação da realização da estratégia, com contribuição de unidades organizacionais nessa direção.[3]
Modernamente esse planejamento vem sendo designado como “planejamento estratégico situacional”, utilizado em ambientes turbulentos que requerem planos e ações rápidas, sem atuar de forma homogênea para todos os problemas ou situações. Aqui, cada problema é analisado e a adequabilidade das soluções verificada, incluindo-se a viabilidade econômica e a possibilidade de implementação, considerando-se o momento e os agentes. “Se a solução for considerada adequada, são alocados os recursos humanos, financeiros e de poder necessários à implementação. De forma contínua, avalia-se a situação atingida e compara-se à desejada, a fim de definir ajustes.”[4]
O importante de se adotar um planejamento eficiente é que, passado o momento de comoção inicial, o plano de ação já está definido, com a organização das medidas a serem realizadas conforme a estrutura arquitetônica das diversas unidades, sendo maiores as chances de execução real das providências indispensáveis à reconstrução e ao aperfeiçoamento estatal. Para tanto, é preciso observar exigências materiais e procedimentais.
4. As exigências principiológicas e as garantias constitucionais
Diante de um fato como o rompimento de uma barragem de rejeitos, sob responsabilidade de uma empresa, é intuitivo pensar nas sanções cabíveis no exercício do poder de polícia. A esse propósito, é preciso que sejam cumpridas algumas condições enquanto pressuposto ao exercício do poder sancionador do Estado, o que vincula a polícia administrativa, inclusive na seara ambiental.
Em primeiro plano, cumpre sublinhar que é obrigação da Administração Pública colacionar elementos fáticos da realidade pertinente à infração. Em cumprimento aos princípios da realidade e da verdade material, é dever do Estado (e não do acusado ou da empresa acusada) produzir provas da autoria e materialidade da infração como pressuposto para que seja lícita a punição. Afinal, o ato administrativo sancionatório, como qualquer outro, exige a certeza quanto ao motivo e, no caso do poder de sancionar, o motivo consiste na infração, cuja existência é indispensável ao exercício da competência administrativa punitiva.
Respeitado o ônus da prova imposto à Administração Pública e todas as garantias constitucionais que obrigam o procedimento sancionatório (como, v.g., ampla defesa e contraditório), incide a presunção de veracidade das decisões finais, cabendo ao eventual punido demonstrar vícios que entender presentes da sanção.
Nesse contexto, é até mesmo desnecessário importar do processo penal o princípio da “presunção de inocência”, visto que: 1) a Administração só pode praticar ato sancionatório se consegue provar o motivo que o autoriza, o que significa que a punição depende de o Poder Público comprovar a infração, por força da verdade material e princípio da realidade (mais eficazes que a própria ideia de presunção de inocência, neste caso); 2) punido o infrator com cumprimento das garantias constitucionais, a presunção de veracidade do ato sancionatório prevalece, sendo certa a inadmissibilidade de se “presumir inocente” alguém cujo comportamento infrator foi apurado regularmente na via administrativa, com o cumprimento das normas constitucionais e legais de regência; neste caso, o ônus de afastar a juridicidade do comportamento público, procedimental ou materialmente, é do próprio infrator, a quem caberá excluir os efeitos da presunção de legitimidade da sanção administrativa.[5]
Reitere-se que o dever da Administração de ter provas suficientes da infração ambiental cometida pela empresa como motivo do ato de polícia administrativa não é incompatível com a presunção de legitimidade da sanção aplicada ao final:
“Presunção de legitimidade: é a qualidade, que reveste os atos administrativos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao direito, até prova em contrário. Milita em seu favor uma presunção ‘juris tantum’ de legitimidade.
Consequências: imediata operatividade dos atos administrativos e transferência do ônus da prova de invalidade do ato administrativo para quem a invoca.
Assim, atos administrativos devem ser vistos como legítimos até prova em contrário. Demonstrada a violação ao direito, a presunção poderá ser afastada pelo Judiciário.
Presunção de legitimidade – Ato administrativo – Prevalência até prova contrária – Limite ao controle judicial: Agravo Interno no Agravo Interno na Suspensão de liminar e Sentença nº 2.240-SP, rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial do STJ, DJe 20.06.2017.
Presunção de legalidade – força probatória de documentos públicos:
REsp nº 1.298.407-DF, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção do STJ, DJe 29.05.2012 (…).
Verdade material e o consequente dever de instruir procedimentos não exclui presunção de legitimidade do juízo final do processo administrativo (inclusive na polícia administrativa e no poder de polícia).
Presunção de veracidade do ato decisório final do procedimento administrativo: difere do dever de instruir em cumprimento à verdade material, que cabe à Administração Pública.”[6]
Também é necessário que o Estado, ao exercer sua competência sancionatória observe a proporcionalidade. Sendo assim, a atuação da Administração deve se restringir ao indispensável para a eficácia da fiscalização/punição e para o condicionamento voltado aos interesses da sociedade). Nesse sentido, Rogério Silva Lima explicita que a proporcionalidade fundamenta a valoração entre o meio menos prejudicial (ato administrativo a ser aplicado) e o fim (interesse público aspirado, o bem-estar social), procurando equilibrar ambos.[7]
É o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello quem indica modos por meio de que se apresenta o eventual excesso irrazoável na coação: a) quando a intensidade da medida é maior que a necessária para a compulsão do obrigado (ex: emprego de violência para dissolver reunião não autorizada porém pacífica); b) quando a extensão da medida é maior que a necessária para a obtenção dos resultados licitamente perseguíveis (ex: apreensão de toda uma edição de jornal, por ser prejudicial à moralidade ou à tranqüilidade, quando seria suficiente proibir ou obstar à sua distribuição unicamente nas regiões ou locais onde sua divulgação fosse passível de ofender o bem jurídico defendido). Em qualquer das duas situações, o agente passa a exercer atribuição com abuso de autoridade, sujeitando-se à responsabilização civil, administrativa, criminal e a prevista na Lei n° 8.429.[8]
Não há dúvida, ainda, quanto à importância do devido processo legal, com garantia da ampla defesa e do contraditório, principalmente quando se trata de sanções de polícia com caráter punitivo com claro potencial restrição à esfera subjetiva do terceiro que se entende infrator.
A esse respeito, já se escreveu que a maioria dos princípios apresenta repercussão direta no conteúdo da ação administrativa, determinando que o Estado deve realizar eficientemente suas atribuições, atender a ética pública e a boa-fé em cada comportamento, de modo a tornar concreta a segurança jurídica a que fazem jus os cidadãos cuja confiança não pode ser frustrada, daí por que também é necessário que cada autoridade evite vícios prováveis ou possíveis, sem retroceder quanto a vantagens já previstas em lei e realizadas pela Administração a quem incumbe fazer evoluir o conjunto de direitos vigentes:
“É preciso advertir que a concreção desses aspectos depende de uma série de medidas instrumentais, que sejam aptas a garantir até mesmo o controle da efetividade dos princípios mencionados. De fato, de nada adianta falar em moralidade e combate à corrupção, se não se tem conhecimento do conteúdo dos atos estatais. A transparência é condição indispensável para que se possa aferir se, em dada realidade, aconteceu ou não uma prática corrupta, com comprometimento da ética pública e da boa-fé exigida de todos os agentes e cidadãos. É inócuo falar em impessoalidade, se não se exige motivação adequada e tempestiva de quem exerceu dada competência administrativa; afinal, é praticamente inviável concluir se ocorreu favoritismo ou perseguição sem o acesso mínimo às razões fáticas e jurídicas de um dado comportamento público. Também não adianta sonhar com eficiência, segurança jurídica ou confiança legítima se sequer conseguimos absorver, no cotidiano administrativo, a necessidade do devido processo legal, com outorga das garantias da ampla defesa e do contraditório a todos aqueles que podem ter o seu universo jurídico afetado pela atividade do Estado.
O que se pretende frisar é que falar teoricamente em uma dada exigência sem assegurar os instrumentos que garantam a aferição do seu cumprimento é o caminho perfeito para manipulação aleatória, captura indevida privada ou governamental e verdadeiro entretenimento alienante da sociedade. (…)
O que custou séculos ao direito público evidenciar foi que a mera imposição formal e abstrata de normas cujo conteúdo potencialmente é capaz de promover uma atividade administrativa adequada, por si só, não é suficiente para assegurar que se alcance o resultado desejado. Existem garantias sem as quais não só se dificulta a concretização das finalidades desejadas e impostas pelas normas, mas cuja ausência é instrumento de realização contrária do que se diz buscar. Isso até mesmo ponderando a essencialidade do controle como condição para se obter a atuação estatal lícita ou para restaurar a sua juridicidade. (…)
O raciocínio explicitado torna evidente a importância de alguns princípios cuja instrumentalidade, para garantia da efetividade dos demais, é clara: publicidade, motivação, devido processo legal, ampla defesa e contraditório. Sendo assim, recomenda-se o aprofundamento no exame de cada um deles, sob a perspectiva da Constituição, da legislação vigente, da doutrina comparada e pátria, além da orientação jurisprudencial clássica e atualizada. Trata-se da única forma de assegurar o mínimo de um Estado que ainda se pretenda Democrático de Direito: o conhecimento técnico como forma de, nas engrenagens públicas, preservar conquistas anteriores, ampliando-as.”
Não é o fato de estarmos diante de uma das maiores catástrofes ambientais do mundo que autoriza que se ignorem exigências indispensáveis à regularidade da ação do Estado. Se uma empresa descumpriu os seus deveres, causou uma tragédia com ampla devastação e perda de vidas humanas, isso não autoriza ao Poder Público negar vigência às exigências principiológicas e às garantias constitucionais de regência. Ao contrário, a necessidade de sustentabilidade dos resultados que se entende cabíveis, inclusive a nível punitivo, depende do compromisso do Estado em atender às premissas basilares do regime jurídico administrativo.
5. Chamando à responsabilidade e à esperança
Eventos como a catástrofe de Brumadinho demonstram que é preciso cautela ao confiar no mercado para atividades como o “automonitoramento de atividades com alto potencial de risco”, visto que o compromisso com resultados lucrativos já demonstrou o potencial de resultados indesejados, à custa, inclusive, de vidas humanas. A mesma advertência se faz, com a devida vênia dos que divergem, à flexibilização do regime aplicado à execução de atividades previstas como dever jurídico do Estado.
É preciso construir um modelo para o exercício adequado das competências administrativas indispensáveis à segurança social. Não vale não investir, não admitir nem treinar servidores suficientes, não aplicar os recursos orçamentários abstratamente previstos em lei para finalidades específicas de controle e simplesmente afirmar que o “Estado é sempre incompetente e corrupto” para, então, trespassar ao mercado atividades que não podem ficar nas mãos do setor privado. Isso porque o compromisso natural do mercado é com o lucro (e nada de errado há nisso). Errado está em querer que empresas esqueçam do seu objetivo (alcance de resultados financeiros positivos) e realizem a função que é, sim, do Estado e que pode, sim, ser realizada adequadamente com uma atuação séria desde a edição dos diplomas legais até a sua execução. À obviedade, estamos longe dessa realidade. Essa é uma tarefa para cuja realização os esforços ainda são incipientes.
Reitere-se o entendimento pessoal de que não importa a ideologia predominante em dado momento histórico: não é possível negar que o Estado é Necessário. O Mercado não substitui o Estado, sendo pregação imprópria defender o mero “fim da burocracia”. Os governos jamais irão desaparecer, mesmo porque há tarefas que o mercado não consegue realizar e não faria sentido se o fizessem. Há bens públicos que devem ser providos pelo Estado, porque o seu custo excede o valor auferido, pela superioridade dos interesses sociais presentes a superar qualquer interesse individual transitório. Assim sendo, é certo que se modificam papéis e, observados determinados limites, algumas estruturas organizacionais. Mas o Estado continua central no fazer público, embora não seja o único agente de condução das atividades de interesse social. É necessária uma presença estatal normativa, indutora, agregadora e, em países como o Brasil, não raras vezes executiva direta.
Como afirma o Luciano Sotero, invocando posicionamento do Ministro Eros Grau na Adin 3.512 e ADPF 46: “A realidade brasileira evidencia que nossos conflitos sociais são trágicos e perversos. Não basta, portanto, a atuação meramente subsidiária do Estado. O desenvolvimento econômico e social do Brasil, com a eliminação das desigualdades, exige, face aos fundamentos e objetivos da Constituição da República, um Estado forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência digna. A proposta de substituição do Estado pelo mercado, na implementação de políticas econômicas de desenvolvimento social e econômico, é incompatível com a Constituição do Brasil. Afinal, a realidade econômica e social está aí para mostrar que se a economia de mercado for deixada a se desenvolver de acordo com suas próprias leis, haverá grandes e permanentes males.”[9] Confira-se, ainda, a lição comparada:
“Em um mundo cada vez mais complexo e incerto, o Estado permanece um quadro privilegiado de formação de identidades coletivas e um dispositivo fundamental de integração social; a ele cabe ‘recriar sem cessar o liamo social sempre em via de romper-se’, encarnando os valores comuns ao conjunto de cidadãos, arbitrando os conflitos de interesses, assumindo a tarefa da gestão dos riscos, gerindo os serviços coletivos (…)”.[10]
Precisamos do Estado reconstruído e executor das suas atribuições principalmente a de articulador e árbitro de conflitos. Precisamos de empresas responsáveis, reencarnadas em um compromisso ético. Precisamos de uma sociedade engajada cujos cidadãos, de fato, tenham direito à existência digna. Para tanto, não podemos nos conformar. É quando me lembro de uma advertência da Ana Maria Gonçalves, no livro “Um Defeito de Cor”: pude observar um pouco os caminhos da cidade e observar as pessoas, que me pareceram muito mais tristes que as pessoas da Bahia. Não sei se era bem tristeza, mas as pessoas da Bahia “pareciam ter mais esperanças de felicidade, não sei se dá para entender, e os de São Sebastião pareciam mais conformados. Acho que essa é até uma palavra melhor que tristeza, a palavra do conformismo, porque é uma palavra que acaba com os sonhos das pessoas.”
Que não nos conformemos. Que cada família possa chorar ao enterrar os seus mortos. Que cada profissional envolvido no atendimento da emergência siga comprometido em manter a sua força hercúlea. Que a empresa assuma as consequências da tragédia e não use de subterfúgios para atrasar as indenizações, com manobras jurídicas deploráveis, merecedoras de “vergonha alheia” e “indignação própria”. Que os órgãos públicos assumam as tarefas de coordenação, gestão e execução das respectivas competências, não se escudando na ausência de recursos e de infra-estrutura, nem se pretendendo únicos “donos da verdade” quando o desafio é a articulação eficiente. Que saibamos andar em direção ao objetivo do recomeço.
Acho que é hora de começarmos a falar de esperança. Talvez tenha sido porque ontem passei os olhos em um capítulo de um dos livros do antropólogo Luiz Eduardo Soares em que o autor diz: “A esperança é um dever ético.” Em entrevista antiga à jornalista Carla Rodrigues ele acena: “as vezes a diferença entre a vida e a morte, a barbárie e a civilização, é o olhar e a oportunidade para o indivíduo ensaiar uma outra possibilidade de ser.
Enquanto há vida, há liberdade. A liberdade é uma dimensão constitutiva do ser humano segundo qualquer descrição com um mínimo de pertinência.
A liberdade é a contra-face, é a contrapartida da indeterminação, da incerteza, da imprevisibilidade. (…) Se, no último suspiro, essa liberdade proporcionar algum tipo de convulsão da consciência que altere valores e perspectivas, isso poderá efetivamente acontecer. (…) não temos o direito de prever o pior: (…) Se é assim, se há sempre a possibilidade do inusitado, do surpreendente, do imprevisível, do novo, se a previsão é parte do condicionamento que gera futuro, temos uma obrigação ética a crer que seja sempre possível a recuperação. Ou seja, a esperança é um dever ético. As instituições não podem bloquear a emergência do novo.”
Que nós, que tivemos a benção de amanhecermos vivos nessa segunda-feira, cumpramos o nosso dever ético de esperança. Fé na vida e pé na tábua.
[1] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 264.
[2] JORGE NETO, Nagibe de Melo. O Controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2009, 2ª tiragem, p. 53.
[3] MARTINS, Humberto Falcão. MARINI, Caio. Um guia de governança para resultados na Administração Pública. Coeção Publix Conhecimento.
[4]SANTOS, Clezio Saldanha dos. Introdução à gestão pública. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 30.
[5] Na mesma linha de raciocínio, post específico sobre punição disciplinar divulgado em 25.09.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[6] Post divulgado em 21.12.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[7] LIMA, Rogério Silva. O princípio da proporcionalidade e o abuso de poder no exercício do poder de polícia. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 89, nº 773, p. 123-127, mar. 2000.
[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 793-794.
[9] SOTERO, Luciano. Por um novo destino nacional. Revista Consulex jurídica – ano XII, n. 283, 31 de outubro de 2008. p. 32-34.
[10] CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Belo Horizonte: Fórum, trad. Marçal Justen Filho, 2009, p. 11 e 61.