1.Considerações Preliminares
Situações trágicas como a que aconteceu em Brumadinho com o rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão trazem à tona as dificuldades que a Ciência Jurídica enfrenta contemporaneamente, velhos e insuperados problemas da Administração Pública, além de colocar em xeque escolhas anteriores e alternativas diversas para o futuro. São essas questões que serão analisadas, a fim de que possamos vislumbrar um modo de agir que seja capaz de minorar os riscos nos comportamentos a serem adotados, absorção de limites inerentes às opções e superação de desafios especialmente complexos.
2. As várias dificuldades: da definição da norma jurídica às práticas corruptas
2.1. O difícil exercício da competência administrativa-ambiental em meio à “onda principiológica pós-positivista” e ao excesso de normas infra-legais
Cada atuação do Estado, inclusive no exercício da competência de fiscalização e punição ambiental, requer o conhecimento das regras que estão em vigor e que condicionam as atividades controladas, o que nem sempre é uma tarefa fácil na realidade contemporânea. Com efeito, interpretar e aplicar o ordenamento com equilíbrio e efetividade tornou-se mais difícil no atual momento da Ciência Jurídica por inúmeras razões: o papel assumido pelos princípios, a dificuldade de sistematizar os métodos hermenêuticos cabíveis em face do positivismo e pós-positivismo, a multiplicidade de normas regulamentares e regulatórias editadas em todos os níveis da federação.
Autores como Emerson Gabardo denunciam que o direito contemporâneo precisa mais de um novo positivismo constitucional do que um “esquizofrênico pós-positivismo neoconstitucional cheio de “más ações fundadas em boas intenções”, sendo necessária a superação da histeria no uso dos princípios, sob pena de se substituir o direito pelo poder, com assustadora adesão à máxima “os fins justificam os meios”, sem o menor constrangimento das autoridades públicas. Num contexto de tantos perigos, invoca-se que decisões excelentes dependem de os seus tomadores de decisão serem sujeitos virtuosos, estudiosos, competentes, sérios, dedicados, sensíveis, honestos, solidários e possuem um forte senso de alteridade e responsabilidade para com o sistema positivo, visto que a ponderação dá-se a partir do particularismo do intérprete.[1] Outros juristas fazem contumaz crítica ao “pan-principiologismo”[2] e à “Onda principiológica” em razão da qual estaríamos sujeitos a uma série de princípios vagos e superficiais em hábeis mãos profissionais: “Vive-se hoje um ambiente de ‘geleia geral’ no direito público brasileiro, em que princípios vagos podem justificar qualquer decisão.”[3]
A isso se acresce a chamada “inflação normativa” a comprometer a segurança jurídica na própria definição do Direito. Nesse sentido, escreve Odete Medauar: “O Brasil e muitos outros países vivem a situação de desenfreada e desordenada produção legislativa, também chamada de explosão legal. Tal situação é o contrário do que o buscado pelo princípio da segurança jurídica, gerando não somente incerteza no tocante a situações jurídicas individuais, mas uma sensação generalizada de insegurança.
Na França, o Conselho de Estado, em seu relatório de 1991, mencionou a inflação de textos de leis e de regulamentos, sua instabilidade e a degradação das normas editadas como fatores de insegurança jurídica para os cidadãos e de risco de arbítrio das autoridades, enquanto a função do Direito é, antes de tudo, a de assegurar a proteção de uma e a prevenção do outro. Daí dizer-se que o excesso de direito mata o Direito.”[4]
Num contexto tão complexo, é manifesta a dificuldade de definir o direito que se aplica em cada situação concreta. Sem dúvida, especialmente em searas como o direito ambiental e o direito administrativo, fixar a norma a ser observada em dada realidade chega realmente a ser dramático, eis que, como bem anuncia a doutrina, os órgãos administrativos são chamados a determinar a norma aplicável no âmbito de uma pluralidade concorrente de fontes:
“A Administração Pública desempenha, por tudo isso, um papel activo na definição do próprio Direito que aplica, podendo dizer-se que mesmo a juridicidade heterovinculativa a que se encontra sujeita não deixa de ser ‘filtrada’ pelos órgãos administrativos: o sentido da legalidade vinculativa da Administração Pública, acabando por ter a sua aplicabilidade, a respectiva interpretação e densificação concretizadora, além da resolução dos seus conflitos normativos que suscita, determinadas pelos órgãos a que se destinava a pautar a conduta, encontra mais nas mãos da própria Administração do que na vontade do legislador.
(…) A Administração Pública passa aqui a gozar de um duplo conjunto de tarefas, além da actividade de prossecução do interesse público típica da função administrativa, tem agora de desenvolver uma nova tarefa que, sendo lógica e em momento temporal anterior, visa determinar ou encontrar a normatividade que irá pautar aquela sua intervenção decisória típica.”[5]
Lembre-se que a autoridade administrativa quando define o direito a ser aplicado no caso concreto não pode fazer debilitar o ordenamento de modo a assumir, com exclusividade, a definição da norma a que se vincula, com ignorância das funções dos demais poderes e dos limites constitucionais. Se nenhum sistema é completo e fechado, muito menos o ordenamento ambiental e administrativo, também não se pode, por outro modo, aceitar a possibilidade de uma “adaptação constante à realidade que procura dominar vale como sinónimo de uma queda num casuísmo”[6] e, pior, no arbítrio e violência estatal. Ademais, não se pode reforçar a chamada “crise da generalidade e permanência das normas”, com foco exclusivo na resolução de demandas singulares e concretas, sem comprometimento com a solução de problemas abstratamente e a longo prazo, em favor da sociedade.[7]
Diante de tais condicionamentos, é certo que, quanto maiores as demandas e sua complexidade, exatamente como acontece no trato de catástrofes como a do rompimento da barragem da Vale, maior a responsabilidade do gestor encarregado das escolhas relativas ao conjunto de medidas a serem adotadas. Não lhe é lícito invocar princípios abstratos para tomar medidas teratológicas no caso concreto. É vedado ignorar as regras integrantes do sistema jurídico e que requerem juízo de constitucionalidade e de legalidade responsável. Não lhe é deferida a alternativa do excesso, nem mesmo da ausência ou insuficiência. A celeridade na definição da obrigação de agir para proteção ambiental e reparação dos prejudicados não pode ser confundida com imprudência ou exercício abrupto e incorreto de atribuições, nem a cautela pode se transmutar em omissão indevida ou lentidão criminosa. É preciso buscar o equilíbrio que apresente maior potencial de razoabilidade e efetividade a permitir, com os dados recolhidos, as decisões adequadas e tempestivas. Esse o difícil desafio colocado para quem exerce competências ambientais na estrutura da Administração Pública hoje. E não é o único.
2.2. Os limites reais à adoção de soluções administrativas: a teoria reserva do possível não é a inimiga
Já se elucidou em artigo anterior que cabe ao Poder Público investir de modo a ensejar o exercício adequado das competências de proteção ao meio ambiente, sendo inadmissível o sucateamento da máquina administrativa e o esvaziamento do quadro de pessoal necessário para realizar as diversas atribuições. Em contrapartida, não se pode ignorar que, em se tratando de recursos do erário, há limites reais resultantes da multiplicidade de demandas a serem satisfeitas e a disponibilidade orçamentária que depende de fatores como a própria arrecadação tributária. Assim, se a omissão na alocação orçamentária necessária à estruturação dos órgãos ambientais é intolerável (e é), também não se pode ignorar que recursos públicos sujeitam-se a limites reais, os quais precisam ser considerados. É entre a “desídia criminosa” e a “utopia irreal” que se coloca o desafio do equilíbrio para definir, em cada caso, o comportamento público adequado.
A análise referente a esse aspecto é comumente feita quando se analisa o controle judicial e o exercício dos seus limites, merecendo enfoques diversos na doutrina, em regra sob o nome “teoria da reserva do possível”. A esse respeito, cumpre reiterar: “Sobre o controle judicial, reconhece-se que a simples menção à teoria da reserva do possível tem atraído críticas e rechaçamento dos juristas e dos profissionais do Direito Público.
É preciso ressaltar, contudo, que não existe qualquer vício implícito em defender abstratamente a ‘possibilidade’ como um elemento indissociável da configuração dos deveres do Estado.
A teoria da reserva do possível fixa pressupostos para que seja legítima a exigibilidade de uma obrigação em face da Administração Pública, tornando imperioso examinar a) a razoabilidade da pretensão apresentada ao Estado; b) a efetiva disponibilidade de infra-estrutura orçamentária, econômica, financeira, de pessoal e patrimônio do Estado para atendê-la; c) se o Estado está tomando, ou não, medidas concretas para cumprir os deveres que decorrem do ordenamento.
Se o Poder Público observou as normas que o vinculavam e realizou suas escolhas da forma mais razoável, seria absurdo exigir-lhe resultados superiores aos obtidos. De quem fez o máximo, nada mais há a exigir. A reserva do possível surge exatamente para consagrar essa premissa: se foram utilizados adequadamente os meios estatais disponíveis e, mesmo assim, não se mostrou possível determinada providência, inviável que se lhe a exija da autoridade administrativa.
Frisa-se que o fato de o Estado por vezes manipular indevidamente a Teoria da Reserva do Possível, na tentativa de blindar suas omissões e ações ilícitas, consubstancia simples uso indevido da mesma, sem qualquer vício intrínseco capaz de a comprometer.
A limitação de recursos e infraestrutura pública é contingência que não se pode ignorar. Outrossim, é faticamente impossível que o Estado supra todas as necessidades todos os cidadãos; há demandas enormes em todas as áreas (educação, moradia, saúde, saneamento básico, segurança, transporte, lazer etc.). É preciso distribuir os recursos entre as várias demandas, segundo critérios de prioridade, racionalização, padronização razoáveis.”[8]
Diante dessas ponderações, insiste-se que reconhecer limites ao investimento público em searas como a de controle ambiental não equivale a tolerar a irresponsabilidade em alocar o mínimo necessário para que entidades administrativas funcionem e cumpram seus deveres legais, evitando o comprometimento da sobrevivência humana e dos bens naturais. Trata-se apenas de entender que recursos, inclusive públicos, são limitados e precisam ser aproveitados adequadamente para que se se tenha realizado o melhor potencial de atingimento dos resultados necessários.
Não se ignora o quão difícil é encontrar o equilíbrio na compreensão desses limites, uma vez que “Diante de uma crise financeira, diante do aumento de beneficiários de prestações estatais, diante de outras demandas do Estado, a reserva do possível pode comparecer como justificativa para a debilitação dos direitos sociais, sendo forte argumento favorável ao retrocesso em matéria de direitos sociais.”[9] Sobre esse perigo, frisa-se que “Não se trata de adotar qualquer corrente restritiva sobre a proteção dos direitos fundamentais, mas chamar a atenção para o comprometimento da governabilidade e respeito ao Estado Democrático de Direito”. É preciso utilizar, “todos os meios disponíveis para a correta percepção da realidade, sem devaneios, falsas promessas ou jurisdição arbitrária”.[10]
O que se requer em momentos como o atual, de enfrentamento de consequências de uma tragédia de proporções ainda não definidas, é que haja um uso eficiente de recursos. Como ensina Luísa Cristina Pinto e Netto, devem ser considerados todos os recursos disponíveis, não só os financeiros internos, mas os naturais, humanos, tecnológicos, advindos de cooperação internacional. Deve ser privilegiado um uso eficiente e racional, direcionado para o atendimento de necessidades básicas, da concretização do essencial de cada direito voltado a este atendimento.[11]
Nesse contexto, é clara a prioridade que os esforços públicos e privados devem reconhecer ao trato das consequências da tragédia de Brumadinho e, mais, à atividade preventiva de que outros rompimentos de barragens ocorram, comprometendo populações e áreas ambientais diversas. É preciso evitar a ampliação do passivo de destruição já suportado pelo Brasil, em especial Minas Gerais e isso simultaneamente com todas as demais tarefas estatais. Ao definir o emprego dos recursos, requer-se um exame responsável do orçamento, com compromisso de médio e longo prazo das múltiplas atividades, sem olvidar na necessidade de aperfeiçoamento na gestão, na estruturação do quadro de pessoal e na execução administrativa. Mais um desafio. E não é o último.
2.3. A manifestação do empreendedor como base do poder de polícia administrativa, a captura de esferas públicas por interesses privados e a corrupção sistêmica
Não há como se admitir o exercício de uma atividade econômica de significativo impacto ambiental sem o exercício do poder de polícia do Estado que deve assegurar a proteção do interesse público, com a menor restrição necessária ao propósito lucrativo da atuação empresarial.
A melhor doutrina de Direito ambiental adverte que “A avaliação das externalidades ambientais negativas é fundamental para subsidiar o órgão ambiental responsável pela decisão administrativa que permitirá o acesso ao recurso natural. Caberá à autoridade administrativa, a partir do exame dos estudos técnicos, definir pela viabilidade, ou não, daquele empreendimento e examinar, entre as alternativas técnicas apresentadas, as mais adequadas medidas mitigatórias e compensatórias dos impactos ambientais.” Não há qualquer dúvida que “A definição do tipo de avaliação dos impactos ao meio ambiente é um dos instrumentos de que o Poder Público dispõe para implementar sua política de meio ambiente” e que “Tratando-se de atividade minerária, há uma presunção normativa de que a atividade gera significativo impacto ambiental”.[12]
Especificamente quanto às atividades minerárias, cumpre sublinhar o fato de o licenciamento ambiental depender de informações fornecidas pelos próprios empreendedores aos órgãos de fiscalização. Descrevendo o próprio modelo de informação privada como base fática do juízo administrativo, bem como os problemas daí decorrentes, tem-se análise técnica feita pelo TCU:
“145. Esta auditoria apurou, contudo, que esse processo de cadastramento de barragens restringe-se ao fornecimento unilateral e meramente declaratório de informações por parte dos empreendedores.
- O DNPM não dispõe de meios e instrumentos concretos, como o uso de softwares de georreferenciamento, serviços de imagens por satélite ou tecnologias como veículos aéreos não tripulados (Vants), além de cruzamento de dados ou vínculos de cooperação com órgãos ambientais ou universidades, para auxiliar na verificação e conferência sistemática e rotineira da veracidade dos dados informados no cadastro pelos empreendedores.
- Na prática, essa verificação dá-se tão somente durante as vistorias (fiscalizações in loco), quando os técnicos do DNPM, por meio de inspeção visual, confrontam os dados constantes do sistema RAL com a realidade de cada barragem.
- Ademais, muito embora se exija do empreendedor a retificação tempestiva do RAL acerca de qualquer alteração nos dados requeridos no cadastramento, não há controle efetivo do órgão fiscalizador de que esse requisito esteja sendo, de fato, cumprido. (…)
- Em face de todo exposto, entende-se pertinente recomendar ao DNPM que, sem prejuízo da discricionariedade técnica, aprimore seu processo de cadastramento e classificação de barragens, por meio de desenvolvimento de sistema informatizado (ou aprimoramento do atualmente em operação) com funcionalidades que permitam a extração automática de dados, a emissão de alertas em casos de retificações ou situações preestabelecidas que indiquem riscos ou necessidade de acompanhamento, com vistas a otimizar esforços e recursos, reduzir a vulnerabilidade a erros e tornar a atuação da Autarquia mais tempestiva e eficiente. (…)
- Identificou-se como uma das causas para essa ausência de procedimento de análise tempestiva dos documentos encaminhados pelos empreendedores a precariedade da gestão documental do próprio órgão. Isso porque as informações estão armazenadas de forma fragmentada nos processos minerários (físicos), o que dificulta seu acesso e seu tratamento, de forma rápida e eficaz, pelos fiscais do DNPM.
- Do ponto de vista da tecnologia da informação, inexistem sistemas eletrônicos, por exemplo, que armazenem numa mesma base todos os dados relevantes a respeito das barragens de rejeitos. Toma-se o caso dos extratos de inspeção, que são encaminhados via sistema RAL, ao passo que as declarações são protocolizadas nas superintendências ou enviadas por correio eletrônico.
- Também não há sistema ou ferramenta que emita alertas informando ao DNPM, por exemplo, sobre a inadimplência dos empreendedores quanto à entrega de documentos. Na prática, uma mesma base de dados poderia, por exemplo, confrontar, automaticamente, as declarações entregues com as barragens cadastradas no sistema RAL, otimizando, pois, a atuação do DNPM.
(…) 205. As vistorias consistem na principal etapa do processo de fiscalização da segurança de barragens e representam o momento em que os técnicos do DNPM vão a campo verificar as condições dessas estruturas.
(…) 212. A partir da análise dos planos de fiscalização elaborados pela Difis para os anos de 2014 e 2015, observa-se que as diretrizes para o planejamento das vistorias têm se restringido à classificação por risco crítico e não considera, de forma explícita, outros aspectos relevantes para a seleção das estruturas a serem fiscalizadas, tais como barragens sem estabilidade atestada, a classificação por dano potencial associado, os resultados advindos de outras fiscalizações ou informações contidas nos documentos encaminhados regularmente pelos empreendedores, como a declaração de condição de estabilidade e os extratos de inspeções regulares, fato este já destacado anteriormente.
- Isso porque, conforme também relatado, inexiste, no DNPM, procedimento para a análise sistemática dos documentos encaminhados pelos empreendedores, os quais contêm informações relevantes quanto à situação da segurança das barragens. Não há, ainda, rotinas de tratamento e interpretação de dados, a partir das diversas fontes disponíveis (documentos, outros sistemas ou processos do próprio DNPM, etc.), as quais poderiam auxiliar no planejamento das ações de fiscalização da Autarquia (…)”.
Não é difícil constatar que transferir aos empreendedores a oferta dos documentos que trazem elementos fáticos a serem avaliados quando da mensuração do risco exige que o Estado tenha condições de analisar a veracidade dos dados informados, com vistoria “in loco” que permita um juízo de correção técnica. Simplesmente fixar como obrigação privada apresentar estudos, sem possibilidade de controle efetivo pelo Poder Público da veracidade e da legitimidade dos dados, consiste numa opção sistêmica “Pôncio Pilatos”. Frise-se que “lavar as mãos” e renunciar a um dever que é da entidade administrativa competente não é alternativa possível ao Estado. O dever de planejar, normatizar, fiscalizar e, se for o caso, punir adequadamente não é delegável nem renunciável, como toda e qualquer competência pública, o que se robustece em se tratando de competência para licenciamento ambiental de atividade com elevado risco para bens naturais e vidas humanas.
Para que os objetivos de eficiência no cumprimento das tarefas estatais sejam alcançados, é indispensável que os órgãos públicos não sejam instrumentalizados a serviço de interesses econômicos privados. A formação de um corpo técnico eficiente e capaz de atender às demandas de um controle efetivo pode se evitar a captura do espaço público em favor de interesses lucrativos individuais e empresariais. Não se ignore que, em países como o Brasil, ainda não se tem um setor privado com formação histórica e cultural comprometida com a preservação de interesses sociais, muito menos de gerações futuras. Daí ser especialmente indispensável o controle público de dados sensíveis quando se trata de licenciamento ambiental, máxime quando se atenta para as consequências catastróficas da eventual desídia do Estado a esse propósito.
Não se ignore que à falta de pessoal, orçamentária e de conhecimento da norma jurídica incidente em cada caso, acresce-se a captura do espaço público por demandas lucrativas, com potencial espaço fértil às práticas corruptas, ainda comuns na realidade brasileira. Ao tratar da corrupção, já se escreveu:
“São vícios que trazem imoralidade à realidade do Estado a vinculação entre o exercício do poder e a corrupção, bem como a complacência social em lidar com fraudes e desvios. São claros os elevados custos da complexificação e da generalização da corrupção sistêmica, as dificuldades de resistir às pressões organizações criminosas que capturam as estruturas administrativas, ocupando seus espaços para desvios, ao ponto de impedir até mesmo o exercício de controles internos efetivos.
São necessárias reformas, com mudança de culturas organizacionais transversalmente, na tentativa de retomada de ações comprometidas com o interesse público, reestruturação dos órgãos públicos e profissionalismo nas carreiras públicas, o que é um desafio em situações de grave recessão, com significativa anomia social.
Também precisamos de normas adequadas à prevenção da corrupção com origem no capital que chega aos mais diversos países, inclusive independentemente do ‘tamanho do Estado’, sendo manifesto o aumento dos efeitos danosos onde as estruturas públicas são mais frágeis e a democracia escassa. Cabe, ainda, adotar publicidade e de sistemas de responsabilização diante a ‘globalização das práticas corruptas’ e da insuficiência da sua identificação em entes públicos menores (ex: Municípios), onde raramente há a simultaneidade entre o controle e os desvios.
Também é essencial distinguir a ‘grande corrupção’ da ‘pequena corrupção’, aceitar que de ambas decorre redução de novos investimentos e desestruturação estatal. Dentre as medidas para aperfeiçoamento do sistema, tem-se desde um mínimo de transparência, a exigir adoção formal de uma ética mínima como parâmetro de conduta dos agentes públicos, além do uso eficiente de recursos tecnológicos.
Destaca-se a importância de observância das garantias constitucionais, excluídas atuações violentas de quem exerce competência apuratória, fiscalizatória e punitiva, sob pena de fazer ruir definitivamente o Estado Democrático de Direito.”[13]
É certo que quaisquer desvios éticos do terceiro que se relaciona com o Poder Público e de agentes das estruturas governamentais contrariam o dever de honestidade nas relações administrativas. A corrupção que atinge o exercício de atividades de significativa repercussão social é vedada tanto ao servidor encarregado das competências administrativas quanto ao terceiro que se relaciona com o Estado quando da execução das suas atividades. Não se pode negar o risco de corrupção sistêmica no Estado, em especial em setores responsáveis pela autorização de atividades de significativo valor econômico como a mineração. É manifesto que não existem órgãos nem entidades blindadas quanto a esse vício. Isso vale para o mercado, para a Administração Pública e para as unidades de controle. É lógico que não se trata de afirmar que todos sejam corruptos. Trata-se de reconhecer, com base em fatos recentes e históricos, não ser raro em nosso país que práticas antiéticas engulam a moralidade exigível nas esferas privada e pública, do planejamento à fiscalização, sendo necessário aperfeiçoar o sistema de modo que seja menos vulnerável a tais vícios e, mais, que possamos aperfeiçoar as diversas estruturas.
São antigos os estudos segundo os quais “Poucos se dão conta de que a corrupção sistêmica não pode ser tratada da mesma forma que a corrupção individual. Medidas drásticas são imprescindíveis. Entretanto, falta a vontade política, o tempo, a paciência e o conhecimento para esse avanço, e alguns podem estar tão comprometidos que não têm condições para mudar o próprio sistema que os erigiu ao topo.” A verdade é que, não obstante as décadas de discussão sobre os efeitos da corrupção nos graves problemas administrativos, pouco tem sido feito para controlar efetivamente tal prática e atar as mãos sujas dos que o lavam:
“Infelizmente, uma forma de corrupção está quase sempre conectada com outra, de modo que se alimentem mutuamente. Se a tolerância do cidadão à corrupção é reduzida, se o povo não fica passivo e se menos crédito é dado aos violadores para livrá-los de qualquer suspeita, todos são fatores que auxiliam nas estratégias de combate à corrupção. As mãos sujas não se limpam mutuamente, porém contaminam tudo o que tocam. Logo, em estágio preparatório, o povo deve demonstrar sua indignação.”[14]
Que a expressão da indignação não se dê casuística e momentaneamente, mas seja um modo de combater o contágio da burocracia com vícios que variam da ineficiência, à falta de estrutura, chegando a práticas corruptas alastradas. Se não nos dispusermos a tanto, vale lembrar a advertência de Daisy de Asper y Valdés: “Deixada sem tratamento, destrói a efetividade da área contaminada. Mesmo que atacada a tempo, ao primeiro sinal da doença, não há garantias de que será eliminada totalmente. As estratégias atuais apenas se propõem a conter e minimizar os efeitos da doença, não a erradicá-la totalmente. Os astutos e ardilosos estarão sempre um passo adiante, e assim permanecerão, enquanto um sistema de integridade pessoal não fizer parte do caráter dos que lidam com a coisa pública.”[15]
Cabe a cada um de nós, em nosso trato cotidiano, perceber a necessidade de maior comprometimento ético, de intolerância quanto aos desvios e de acompanhamento dos órgãos administrativos e de controle sujeitos à corrupção e encarregados de a prevenir e combater. Trata-se de um desafio coletivo, à obviedade. E há mais.
3. Da necessidade do exercício correto das atribuições
Quando se analisa uma catástrofe como a que decorreu do rompimento da barragem da Vale, a causar centenas de mortes, é manifesto que erros graves ocorreram no exercício das atribuições da própria mineradora, principalmente em relação à gestão do risco que é integralmente responsabilidade empresarial. No que tange às competências de fiscalização da ANM (Agência Nacional de Mineração), já foram indicadas falhas quanto à estrutura e ao orçamento, sendo cabível mencionar, ainda, comportamentos já apontados como falhos pelo Tribunal de Contas da União:
“220. Do ponto de vista da classificação de barragens por dano potencial associado, a situação encontrada é que, entre 2012 e 2015, 66% das vistorias representaram fiscalizações em barragens com alto DPA e, do total de 185 estruturas cadastradas dessa categoria no Brasil, 52% foram fiscalizados.
- Analisando de outra perspectiva, se o cenário de vistorias no mesmo período considerar a classificação da matriz Risco crítico x DPA, contabiliza-se que apenas 28% das barragens enquadradas na categoria A, ou seja, simultaneamente de alto risco e alto dano potencial, foram alvo de fiscalização da Autarquia (no horizonte 2012-2015).
- A fragilidade do processo de planejamento – pela falta de critérios mais robustos e diversificados para seleção das barragens fiscalizáveis, pela ausência da prática de planejamento no âmbito das superintendências e pelo volume de demandas externas – prejudica a construção de uma visão estratégica de longo prazo no tocante à atuação do próprio DNPM enquanto órgão fiscalizador da segurança das barragens de rejeitos de mineração no País.
- Por fim, essa situação impacta também a expectativa de controle entre os empreendedores, uma vez que há real risco de empreendimentos permanecerem longos períodos sem serem fiscalizados. Corrobora essa constatação o fato de, em âmbito nacional, apenas 41% das barragens de mineração terem sido vistoriadas nos últimos quatro anos, como visto nesta auditoria (…)
- A razão identificada para essa ausência de critérios e instrumentos de padronização da execução das vistorias de barragens foi a própria limitação de conhecimento técnico e expertise no âmbito do próprio DNPM, o qual vem, paulatinamente, se aperfeiçoando enquanto órgão fiscalizador da segurança de barragens de rejeitos, e isso inclui a melhoria de seus métodos e processos.
- Disso resulta a efetiva ausência de mecanismos concretos de padronização dos procedimentos de trabalho a serem utilizados por todos os técnicos envolvidos na fiscalização da segurança de barragens – critérios mínimos acerca dos documentos analisados, modelos de relatórios (de uso obrigatório), etc. – e, por conseguinte, a ausência de instrumentos para avaliar e aferir a qualidade das vistorias que vêm sendo realizadas no âmbito de cada superintendência regional.
(…) Voto do Ministro Relator: 21. Em estudo realizado pela Diretoria de Fiscalização da autarquia durante a elaboração da proposta orçamentária de 2015, foi apontada, para uma previsão de onze mil fiscalizações no exercício, a necessidade de R$ 8 bilhões, o dobro do efetivamente consignado no orçamento daquele ano. Menciona-se que, com o advento da Lei 12.334/2010, novas atribuições foram destinadas à autarquia, tais como toda a regulamentação e fiscalização relativa ao Plano de Segurança da Barragem (PSB) e ao Plano de Segurança da Barragem (PSB) e ao Plano de Ação de Emergência (PAE). (…) 27. Apesar de a unidade técnica constatar deficiências nos procedimentos de fiscalização por parte do DNPM, não foi possível individualizar condutas tendentes a responsabilizar servidores pelo acidente. Trata-se de problemas intrínsecos ao órgão, ineficiente e sem condições materiais para cumprir de forma satisfatória suas atribuições.[16]
Destarte, tem-se que, desde o planejamento até os atos específicos de fiscalização e punição, não há atividade correta, tempestiva e adequada da entidade pública responsável pelo controle das barragens de rejeito de minério. A estrutura, viciada e ineficiente, sequer permite a individualização de culpa em face de agentes públicos, visto que o serviço público não funciona como devido na fiscalização ambiental, sendo inviável exigir individualmente dos servidores qualquer superação irreal das comprovadas limitações materiais.
Sobre essa questão, destaca-se a importância de uma catástrofe como a causada pela Vale deixar claro para as empresas a gravidade das omissões na gestão de risco e a responsabilidade que daí decorre. Diretores, donos de empresas e outros profissionais precisam, enfim, entender que decisões cotidianas podem significar ter as mãos sujas de sangue e gerações sem condições de sobrevivência. Não é exagero, nem drama. Vejam a imagem da barragem estourando e atingindo prédios administrativos e enxerguem o risco. O desafio é exatamente a conscientização de que não vale a pena ter desgraças desse porte na conta da própria existência.
Em relação ao Poder Público, é preciso reanalisar o modelo de fiscalização ambiental que, quanto ao licenciamento assenta-se basicamente em informações trazidas pelos empreendedores, quanto ao orçamento e ao quadro de pessoal não tem atenção devida dos legisladores e governantes para fornecimento dos recursos indispensáveis (observados os limites existentes) e, por fim, quanto à corrupção e à consciência dos envolvidos sobre a necessidade do agir corretamente, requer ainda grande evolução nas ações administrativas e de controle.
[1] GABARDO, Emerson. Boas intenções e ideias malditas. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/emerson-gabardo/boas-intencoes-e-ideias-malditas. Acesso em 18.06.2018.
[2] STRECK, Lenio Luis. Disponível em www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf. Acesso em 10.05.2018.
[3] SUNDFELD, Carlos. Ari Direito Administrativo para céticos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 70 e 205.
[4] MEDAUAR, Odete. Segurança jurídica e confiança legítima. In: ÁVILA, Humberto et al. Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. ÁVILA, Humberto (org.). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 118.
[5] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007, p. 700-701.
[6] SOARES, Rogério Ehrhardt. Direito público e sociedade técnica. Coimbra: Tenacitas, 2008, p. 41-42.
[7] PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de derecho administrativo general. v. I. 1ª ed. Reimp. Madrid: Iustel, 2005, p. 151.
[8] Post divulgado em 07.11.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[9] PINTO E NETTO, Luísa Cristina. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto Alegre: livraria do advogado editora, 2010, p. 158.
[10] GUIMARÃES, Jader Ferreira. WITZEL, Wilson José. Limitações processuais à tutela judicial do direito à saúde. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 35, n. 179, p. 220, jan./2010.
[11] PINTO E NETTO, Luísa Cristina. O princípio de proibição de retrocesso social, op. cit., p. 164.
[12] SIQUEIRA, Lyssandro Norton. Qual o valor do meio ambiente? Rio de Janeiro: Lumen, 2017, p. 48;107 e 109.
[13] Post divulgado em 04.09.2018 na Página da “Professora Raquel Carvalho” no facebook.
[14] VALDÉS, Daisy de Asper y Corrupção: o excesso de peso nas costas do Cidadão. B. Cient. ESMPU, Brasília, a. 5, n. 20/21, p.269 e 271, jul/dez.2006.
[15] VALDÉS, Daisy de Asper y Corrupção: o excesso de peso nas costas do Cidadão. B. Cient. ESMPU, Brasília, op. cit., p.280-281.
[16] Acórdão nº 2.440/2016, Processo nº TC 032.034/2015-6, rel. Ministro José Múcio Monteiro, Pleno do TCU. Julgamento em 21.09.2016, Disponível em https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A8182A25753C20F0157587B1F4C0870&inline=1. Acesso em 01.02.2019.