Quarta-feira. 280 prazos processuais pendentes. Dezenas de prazos perdidos. Mais um email para a coordenação e chefia. Calor de 38 graus em pleno inverno. Levanto os olhos e vejo três das novas estagiárias perdidas. Só uma, mais experiente, para treinar as novas enquanto dá conta do próprio trabalho (tão volumoso quanto o nosso). Tento colaborar em meio ao caos:
– Alguém aí tem interesse em aprender fazer uma inicial de execução?
Respostas positivas animadas. Quem faz estágio quer é aprender: mais uma vez a regra se confirma.
– É uma peça bem simples. Para começar mesmo. O processo tramitou no Juizado Especial da Fazenda Pública e o recurso inominado do autor foi julgado deserto. Ele foi condenado a pagar honorários advocatícios. Temos que executar.
Os olhares eram firmes, mas conhecia o que significavam. Não tinham entendido muito. Lembrei que o universo jurídico nos invade depois de umas décadas de trabalho, somos absorvidos por uma linguagem hermética e esquecemos que o mundo real é outro. Pedi para pegarem cadeiras e facilitei:
– As pessoas têm conflitos com o Estado. Por exemplo: um servidor acha que não recebeu a remuneração direito, a empresa contratada reclama no atraso do pagamento, o cidadão quer ser indenizado porque o carro da polícia destruiu a lateral do seu… Algumas dessas ações têm um valor pequeno. Criaram um “Judiciário express”, com regras mais simples, para tentar fazer tudo andar mais rápido. Então se o Estado me deve 1 milhão, posso recorrer ao “V. Exa” do Fórum seguindo o Código de Processo Civil que vocês ainda vão estudar. Mas se a dívida é, como nesse caso, de R$ 30.000,00 posso bater na porta do Juizado que trata das brigas com o Estado, com lei específica que simplifica o andamento do processo.
Faço o login no sistema eletrônico, que graças a Deus funcionou, e abro o primeiro arquivo:
– Essa aqui é a inicial. A hora em que o autor vira para o Juiz e fala: O senhor está vendo essa minha relação com o Estado? Pois ele está recusando essa coisa aqui que eu tenho direito de receber! Aí vem Poder Público, na sua defesa, e explica porque o autor está errado e que sua ação ou omissão está correta. Em algum momento o Juiz vai decidir e dizer quem está com a razão.
– Isso acontece no “processo de conhecimento”?
– Booooa! No processo de conhecimento, o autor fala que tem um direito, a parte contrária diz que não e o juiz, ao fim, declara (ou não) o direito e condena quem perdeu a cumprir o que está definido na sentença. Nessa etapa, a gente ainda está discutindo se o direito existe, ou não. Existindo e sendo declarado pelo Judiciário (é ele que tem a palavra final), aí vem o processo de execução. Na fase executiva, quem ganhou o processo de conhecimento pede para o Estado usar a força do Judiciário para fazer quem perdeu cumprir: seja pagar, fazer ou não fazer. No pedido “de cumprimento de sentença”, o interessado vira para o juiz e diz: você, que tem o poder da violência pela força reservado pela Constituição, use esse poder para atender o que já foi definido como correto e devido.
Considerando que precisava chegar no caso concreto, abri mais um arquivo:
– Olhem só, o magistrado falou que a parte, um servidor, não tinha direito à vantagem de R$ 30.000,00 que ela pediu. Ou seja, negou o direito e julgou “improcedente o pedido inicial”. O servidor não se conformou e recorreu. Quer que o problema seja analisado por outros juízes, da chamada “Turma Recursal”. No Juizado, o recurso chama “inominado”.
– Foi esse o recurso que ficou “deserto”?
– Isso. Para explicar o que é deserção, é preciso reconhecer que fazer andar a máquina do Judiciário custa dinheiro. Quem precisa do Judiciário, portanto, paga “custas”, ou seja, um determinado valor para “custear” as despesas que o Estado terá para fazer andar a estrutura judicial. Só quem nem todo mundo que precisa do Judiciário tem condições de arcar com esse pagamento. Em princípio, se o autor é pessoa física, ele declara que é pobre e o juiz presume que é. A pessoa está livre de pagar as “custas e despesas processuais”. Às vezes, quem não é pobre se declara pobre. Mas o juiz consegue, pelos documentos dos próprios autos, verificar que a declaração não é correta. Neste caso, o Juiz chamado “Relator” da Turma Recursal prestou atenção nos contracheques que o autor juntou. Mais de R$ 20.000,00 mensais, sendo que uma gratificação, ou seja, um pedaço da remuneração, em 10 meses levou a R$ 30.000,00, sem correção monetária e juros. O que fez? Mandou o autor pagar as “custas” do recurso para que ele fosse examinado.
– O juiz que deu a sentença comeu mosca?
– Não. No Juizado, quem examina o direito à gratuidade judiciária é a Turma Recursal, não o juiz de primeiro grau. Na Turma, o principal magistrado responsável pelo processo (o “Relator”) mandou que o autor pagasse as custas. Ele não pagou. O recurso foi julgado “deserto”, pois não tinha sido “preparado” corretamente. E nessa decisão o autor foi condenado a pagar as despesas do processo e 10% de honorários advocatícios sobre o valor da causa.
– Aí ficou valendo a sentença.
– Ficou valendo a improcedência o pedido do servidor de receber os R$ 30.000,00 de gratificação mais a condenação ao pagamento das despesas processuais e honorários. Vejam nesse “evento” do sistema que os comandos decisórios já “transitaram em julgado”, ou seja, eles se tornaram definitivos, não cabe mais recurso. E se é definitivo que o autor tem que pagar honorários advocatícios e custas…
– A gente vai executar! Pedir o cumprimento.
– Bingo. Vou mandar o modelo das peças em que se pede o pagamento espontâneo (se acontecer, economiza-se o desgaste da máquina judiciária) e o cumprimento da sentença formal.
No fim do dia, três pedidos de cumprimento na caixa de emails. Um precisou de reestruturação, outro muito bom e um precisou ser reescrito.
De verdade? Tem nada melhor profissionalmente que ensinar.
PS O texto contém óbvias simplificações em relação à disciplina processo civil. Aliás, a ideia é mesmo traduzir para que, dominado o básico, seja possível densificar e complexificar o aprendizado.