“(…) é necessário que cada um se dê ao trabalho do processo dialético, ainda mais num momento em que a liberdade de pensamento vem sendo discutida como direito fundamental, a despeito da clareza de sua pétrea cláusula a esse respeito. Desconfio que aceitar questionamentos de algo tão sagrado se dá principalmente pelo fato de aqueles que hoje estamos entre 20 e 50 anos não termos vivido a ditadura, nem a discutido, muito menos a superado no melhor sentido do termo. Não sentimos na pele o pavor da tortura, nem da falta de liberdade para pensar e falar; não fomos impedidos de trabalhar com espírito crítico, sob ameaças físicas e emocionais; não fomos comunicados do quanto isso equivale a uma longa e sofrida morte; não partilhamos das dores de quem viveu tanto horror. Ao contrário, ingênuos e imaturos pelo desconhecimento, fomos ampliando nossos espaços de reflexão quanto às engrenagens do sistema, vendo revelado o seu sujo nojento e nos horrorizando diante da máfia corrupta, antiga e generalizada, que se evidenciou. Sem atribuir relevância à liberdade que permitiu ver, esfregados em cada rosto brasileiro, os vícios do poder muitos agora imploram pela força bruta institucionalizada que nos reconduza à cegueira e ao silêncio. E, pior, num processo inconsciente de ‘mate meu direito de enxergar, pensar, ser livre e me assegure a tranquilidade burra da cegueira, mesmo que pela violência gratuita homicida de muitos e até própria; me engane, diga que sou livre sem ser e mais: diga que a força brutal apenas nos protege a todos; me impeça de questionar ou evoluir ou divergir ou mudar; me dê a paz irreal que sonho ganhar de presente de um Messias reencarnado’. Como se fosse possível ‘desver’… Como se a violência fosse a solução para uma realidade tão complexa como a nossa. Como se um Messias autoritário fosse capaz de nos tirar o ônus de chafurdar na lama desse país, sem um imenso e articulado esforço coletivo para dela nos livrarmos. Como se a ditadura tivesse funcionado em algum lugar do mundo com melhoria das condições de existência dos cidadãos. Logo, é indispensável ficarmos atentos para valorizar o trabalho do diálogo, do falar, do ouvir, do desconstruir, do refazer, do recomeçar e não desistir. Foi lindo ter isso em você com o nome de ampla defesa e contraditório, fundados no devido processo legal, e muitos seguiremos fiéis a essas abençoadas premissas. É projeto ainda exequível ver isso perseguido em ações públicas e privadas, na concretização do seu texto superior.” (Em “Constituição: Carta pelos seus Trinta Anos”. Artigo publicado em 05.10.2018. Disponível no “Direito Administrativo para Todos”. Acesso direto neste link. )
1. Noções Introdutórias
Cumpre destacar que os princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório saíram do domínio exclusivo do Processo Civil e ganharam espaço definitivo no Direito Administrativo, tendo a Constituição referido expressamente ao processo administrativo, estabelecendo garantias basilares, vinculantes também da seara administrativa. Com efeito, o artigo 5°, LIV da CR consagra o princípio do devido processo legal, o qual parte da doutrina enquadra na categoria de “sobreprincípio”, sendo que o artigo 5º, LV da CR assegura o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral.
De início, já é possível fixar, quanto à procedimentalização, que a dialética processual exige não apenas a oitiva, mas o efetivo diálogo entre as partes da relação jurídico-administrativa. Nessa perspectiva, as partes devem sair da posição de antagonistas e personificar a função de colaboradoras da formação da vontade administrativa final. Ademais, a sequência de atos deve, antes da prolatada qualquer declaração final, inclusive as da esfera administrativa, no mínimo cumprir a alternância de pronunciamentos e a amplitude de defesa, observado o rito regular incidente na espécie (concretiza o princípio democrático inerente ao Estado de Direito).
Como elucida Ana Teresa Ribeiro da Silveira: “Para que o ideal democrático se concretize no âmbito da Administração, é indispensável a participação do administrado no processo de formação da vontade estatal. O cidadão, diretamente interessado na decisão administrativa a ser produzida, deve ter a oportunidade de se manifestar, de contribuir para o ato que interferirá em sua esfera de direitos. E isto se faz por intermédio do processo administrativo. A Constituição estende o contraditório e a ampla defesa ao processo administrativo e dá base para a aplicação do devido processo legal à atividade administrativa, contribuindo para a formação de uma Administração democrática.”[1]
2. Devido processo legal
A primeira formulação do princípio do devido processo legal, ainda em termos distintos do seu uso contemporâneo, deu-se na Magna Carta de 1215 cujo Capítulo 39 estabeleceu que “nenhum homem será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”. Essa a lição de Oscar Vilhena que também adverte ser objeto de controvérsia o significado deste dispositivo na Idade Média: a) Para alguns, o objetivo era determinar fossem as pessoas notificadas, podendo apresentar defesa e sendo julgadas pela autoridade competente; b) outros atribuíram ao preceito significado mais amplo, a saber, sinalização de que os privilégios concedidos e outros instrumentos medievais não poderiam ser restringidos de forma aleatória pelo Rei. “Ou seja, somente uma autoridade legítima e pré-constituída poderia limitar tais privilégios. Esta autoridade, no entanto, deveria agir em conformidade com procedimentos igualmente preestabelecidos pela lei.”[2]
Se no período medieval o devido processo legal significava, por um lado, o estabelecimento de um juízo imparcial e equidistante das partes (com segurança de determinadas garantias processuais) e, por outro lado, tratava-se de uma ideia associada a limites substantivos impostos ao exercício do poder (com restrição material às decisões do Parlamento ou de outras instâncias de conduta), a Suprema Corte norte-americana, ao interpretar a cláusula do devido processo legal consagrada na Constituição dos EUA de 1787, sob perspectiva material, fixou a impossibilidade de a Constituição ter seu conteúdo limitado posteriormente por decisões do legislativo (possível impugnar atos do Legislativo com base na sua afronta a valores substantivos da Constituição).
Diante desses elementos, podem ser indicadas duas faces do devido processo legal no direito comparado:
a) devido processo substantivo: surge como meio de proteção das liberdades e direitos fundamentais, mediante a limitação da discricionariedade política do Legislativo e do Governo, com imposição a todos os Poderes de observância do conteúdo da Constituição; a intenção é exigir razoabilidade das normas e dos atos do Poder Público, excluindo-se o arbítrio e fixando-se os limites da margem de liberdade constitucional;
b) devido processo legal processual: obriga o cumprimento de determinadas formalidades cujo objetivo é ordenar a sucessão de atos, de modo regular, de modo que, ao final, se tenha produzido ação dialética, com amplo conhecimento social e público.
Após alguns movimentos pendulares na incidência do devido processo legal substantivo sobre as decisões legislativas e administrativas, identifica-se, historicamente, tendência para uma caracterização processual do princípio. Em especial no Brasil, é certo que a doutrina e a jurisprudência enfocam o devido processo legal em seu sentido procedimental, especificamente sob o prisma da ampla defesa, do contraditório e do juiz natural. É verdade que, em algumas hipóteses, tem-se invocada a ideia de devido processo material o que não exclui o fato de que este enfoque passou a ser enquadrado sob o prisma da razoabilidade ou proporcionalidade, reservando-se ao due process of law a natureza de garantia processual.
Como ensina Demian Guedes, é certo que doutrina do devido processo deve muito à construção jurisprudencial e doutrinária norte-americana, em torno do significado da cláusula de due processo of law. Tal construção exerce influência em grande parte dos países da América Latina, alcançando, hoje, quase toda a cultura jurídica mundial: “Conforme anota a doutrina, os principais objetivos do due process em sede administrativa é garantir (i) justiça; (ii) correção; (iii) segurança; e (iv) autonomia aos processos conduzidos pelas entidades governamentais. Justiça (fairness) refere-se à atuação administrativa de aacordo com parâmetros seguros, que sejam imparcialmente aplicados às partes, através de procedimentos que sejam conhecidos. Aqui, o conceito-chave é de revealed procedures, que são procedimentos visíveis e compreensíveis, essenciais para uma participação confortável e efetiva dos cidadãos.
Por seu turno, a idéia de correção (accuracy) aproxima-se bastante do conceito de eficiência, na medida em que representa a preocupação com a melhor aplicação possível dos recursos estatais: as políticas p´=ublicas devem ser implementadas da forma mais correta possível, à luz do que efetivamente ocorre em sociedade.
De outro giro, segurança para os administrados implica que estes saibam o que esperar da Administração e conheçam o modo através do qual ela produzirá suas decisões. Assim, o devido processo legal funciona como um grupo de parâmetros delineados entre o Poder Público e o indivíduo, garantindo que a relação desenvolvida entre eles não tenha surpresas, nem seja orientada por opções pessoais do agente público.
Por fim, o devido processo legal exige um tratamento humano ao cidadão (respeitando sua autonomia), para que ele não seja tratado apenas como uma estatística na massa universal de casos a serem resolvidos pelo Poder Público.”[3]
O citado autor elucida que para a doutrina norte-americana, o processo administrativo justo pode ser descrito aquele comprometido com a justiça da decisão “que se desenvolve por padrões conhecidos pelos administrados – aplicados imparcialmente através de processos visíveis -, livre das opções pessoais dos agentes públicos e que valoriza o cidadão na sua dimensão humana, não como um mero dado estatístico. Nessa perspectiva, o devido processo legal é um princípio a ser considerado em toda a atuação da Administração Pública norte-americana e impõe uma atuação administrativa segura, estável e visível, que ‘leve a sério’ os direitos dos administrados, respeitando-os na sua dimensão humana e conferindo-lhes oportunidades efetivas de defesa. Reconhece-se que no Direito Administrativo brasileiro o conceito recebe abordagem diferente, realizando-se nas garantias do contraditório e da ampla defesa, a serem respeitadas, como o devido processo legal, sempre que presente qualquer controvérsia ou conflito, ou sempre que se vislumbrar a condição de acusados. A jurisprudência dos tribunais superiores segue a orientação da doutrina majoritária, relacionando o princípio do devido processo legal com as garantias do contraditório e da ampla defesa.[4]
De fato, se no direito comparado o devido processo legal é visto sob um primeiro prisma material (devido processo legal substantivo), já entre nós essa perspectiva assume a feição da proporcionalidade a qual exige presença de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito nas leis, nos atos administrativos normativos e concretos, no planejamento e na execução de políticas públicas. No Brasil, como subprincípios do devido processo legal, tem-se as noções de ampla defesa e de contraditório, com repercussões que fixam deveres na realidade administrativa.
Diante da origem a partir da ideia do devido processo legal e da análise histórica da sua evolução na Inglaterra e nos Estados Unidos, tem-se, portanto, especificada a significação dessa garantia de direito fundamental na Constituição brasileira e em nosso Direito Administrativo, impondo-se respeito ao seu conteúdo procedimental, aos direitos que dele decorrem e institutos a ele pertinentes.
Adverte-se ser cabível o devido processo legal nos processos administrativos em que há interesses legitimamente protegidos, independente da existência de “litígio” no sentido formal de “conflito de interesses entre partes”, pela própria imperiosidade de seguir a regularidade procedimental em todas as manifestações estatais.
Destaca-se, como efeito relevante do citado princípio a necessidade de se a duração razoável do processo também incidente na seara executiva do Estado. Consiste verdadeiro desafio compatibilizar celeridade e qualidade no exercício das competências públicas, à luz da necessária processualidade administrativa (ideia de contraditório prévio participativo).
3. Princípio da ampla defesa
O contraditório e a ampla defesa são instrumentos de garantia democrática no processo administrativo (oportunizam o direito de produzir provas, de acompanhar a instrução, de impugnar as ações contrárias e interpor os recursos cabíveis). Aproximam-se indivíduos e Administração, na defesa dos seus interesses, formando a vontade pública que, ao final, deverá ser exarada buscando a concretização do bem comum.
Algumas exigências decorrem expressamente da ampla defesa, tais como: identificação dos fatos com base em que se apura a infração, ciência da infração ao acusado, garantia de acesso aos autos, oportunidade para apresentação de defesa, produção das provas necessárias à defesa adequada, possibilidade de acompanhamento dos atos instrutórios, indicação dos fundamentos jurídicos da sanção, dentre outros aspectos.
Depois de esclarecer que “o direito à ampla defesa se apresenta como possibilidade, juridicamente protegida, de o litigante ou acusado liminarmente se opor aos fatos ou atos que lhe são imputados (defesa prévia)” e “de requerer a produção de todas as provas em Direito admitidas”, o administrativista Daniel Ferreira especifica o direito do interessado, nos processos com potencial punitivo pelo Estado (ex: processo disciplinar), ser comunicado do procedimento, apresentar alegações finais, produzir provas e interpor recursos nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio, ter ciência da tramitação, ter vista dos autos, obter cópias de documentos e conhecer as decisões proferidas (processos administrativos em que tenham a condição de interessados); formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente; fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação por força de lei; na fase instrutória e antes da tomada de decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, aduzir alegações referentes à matéria do processo; na motivação do relatório e decisão ver considerados os elementos probatórios; somente sofrer restrições na esfera de direitos em caso de risco iminente, mediante providências acauteladores e mesmo que sem prévia manifestação, mas de forma devidamente motivada; e, por fim, acesso à motivação explícita, clara e congruente, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, de ato administrativo que imponha ou agrave deveres, encargos ou sanções, bem como que negue, limite ou afete direitos ou interesse.[5]
Em algumas situações específicas, nas quais não há evidente gravidade da conduta praticada e, por se tratar de infração leve, a penalidade cabível é, p. ex., advertência, a doutrina tem proclamado menor rigor na formalização do cumprimento das garantias constitucionais. Assim, haveria certa condescendência no rigor da exigibilidade da ampla defesa quando se está diante de infrações sem maiores repercussões para Administração, que atraem penalidades de menor poder constritivo e, portanto, implicam atingimento menor do universo jurídico individual dos eventuais infratores.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal já julgou inconstitucionais dispositivos que determinavam a aplicação de penas como repreensão e suspensão “de imediato” por autoridade que tivesse ciência de falta disciplinar cometida por servidor. O fundamento invocado pela Corte Suprema é o direito do infrator ser ouvido previamente ao ato de punição disciplinar, sendo inadmissível o exercício abusivo ou arbitrário da competência punitiva.[6]
De fato, o regime jurídico que exige ampla defesa e contraditório vincula o exercício dos diversos comportamentos públicos, principalmente aqueles com potencial sancionatório, como é o caso do exercício do poder de polícia em sentido restrito (as sanções e as medidas de polícia administrativa devem observar o rito procedimental previsto no ordenamento, com direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes), bem como medidas estatais restritivas como inscrição de pessoas federativas em cadastros de inadimplência. Também na hipótese de infrações funcionais, exige-se apuração por meio de processo disciplinar, em que se garanta ao servidor acusado as garantias do art. 5°, LV, da CR. Nessas situações, o STF tem insistido na obediência das garantias constitucionais:
“Princípios da Administração Pública (…) É necessária a observância da garantia do devido processo legal, em especial, do contraditório e da ampla defesa, relativamente à inscrição de entes públicos em cadastros federais de inadimplência. Com base nesse entendimento, a Primeira Turma julgou procedente pedido formulado em ação civil originária para afastar o registro do Estado do Amapá no Sistema Integrado de Administração Financeira (SIAFI), relativo a convênios firmados entre ele e a União. Na espécie, assinalou a ausência de oitiva do interessado e de instauração de tomada de contas especial pelo Tribunal de Contas da União.”[7]
Também o STJ, na Súmula 312, fixou aspectos objetivos decorrentes da ampla defesa a serem observados no caso de exercício de competência punitiva do Estado, a saber, especificamente para hipótese de poder de polícia de trânsito: No processo administrativo para imposição de multa de trânsito, são necessárias as notificações da autuação e da aplicação da pena decorrente da infração.
O conhecimento prévio de qualquer acusação é essencial em se tratando de poder punitivo do Estado. Clássicas são as lições de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari ao explicitar que “acusado” consiste naquele a quem é feita acusação formal, ou seja, aquele a quem é irrogado um comportamento correspondente a uma qualidade negativa e que se encontre em situação da qual lhe pode resultar dano econômico, moral ou jurídico. Em relação a ele, é preciso garantir os mecanismos do direito de defesa que repercutem sobre qualquer processo punitivo, nos termos constitucional, em especial: art. 5º, XXXVII (proibição de tribunais de exceção), XL (irretroatividade da norma sancionatória, salvo se benéfica ao acusado), XLVI (exigência de individualização da condenação); XLIX (respeito à integridade física e moral do condenado); LVI (proibição de penas infamantes, como “demissão a bem do serviço público; inadmissibilidade de provas obtidas de forma ilícita); LVII (Presunção de inocência). Os autores sublinham que o acusado tem o direito de permanecer em silêncio, de se quedar inerte, se assim o desejar, cabendo à autoridade processante, por força do princípio da oficialidade, providenciar a produção das provas e zelar pela regularidade do processo, inclusive da defesa. “O julgador administrativo, muito embora possa ser concomitantemente o acusador, deve cuidar para que o julgamento seja feito da forma mais imparcial possível, examinando com cuidado e isenção todas as provas produzidas.”[8]
A propósito da ampla defesa, José Armando Costa assevera que a audição prévia do acusado é a mais básica manifestação do direito protegido pela Constituição, sendo que não se trata apenas de ouvi-lo, como também de dar a devida acústica às suas ponderações. “Se o acusado requer diligências que visem à busca real dos fatos, deve ser prontamente atendido. Pois que ouvir o acusado com desprezo pelo que ele diz e alega é igual a deixar de ouvi-lo.”[9]
De fato, se há lide instaurada, se há probabilidade de aplicação de sanção administrativa, são necessários ampla defesa e contraditório, por se tratar de garantias incidem diante de qualquer viabilidade de privação de bens ou restrição de direitos dos administrados, consoante o artigo 5°, LIV, da CR e jurisprudência do STF. Devem elas ser asseguradas em procedimentos como licitação ou mesmo registro de aposentadoria junto ao Tribunais de Contas, se possível a contenção da esfera jurídica do interessado.[10]. A Súmula Vinculante nº 3 do STF pacificou o entendimento de que “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.”
Contudo, “Caso o Tribunal de Contas da União aprecie a legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão após mais de cinco anos, reformando-o, há a necessidade de assegurar aos interessados o exercício do contraditório e da ampla defesa.”[11]
Observe-se que já quando da edição das súmulas 20 e 21 do STF, fixou-se que “É necessário processo administrativo, com ampla defesa, para demissão de funcionário admitido por concurso” e “Funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade”. É certo que já se reconhecia, à época, a impossibilidade de constrição de universos jurídicos singulares sem a outorga da oportunidade de defesa.
Na hipótese de exoneração do servidor ainda em estágio probatório, o STF segue exigindo que se garanta o direito de defesa ao interessado, viabilizando que este apresente dados concretos e jurídicos aptos a justificar posicionamento administrativo em sentido diverso, concessivo da estabilidade pretendida: “É necessário o devido processo administrativo, em que se garanta o contraditório e a ampla defesa, para a demissão de servidores públicos, mesmo que não-estáveis.”[12]
O STJ já reconheceu a violação da ampla defesa por citação extemporânea que inadmitiu a oportunidade de defesa[13], tendo o STF fixado a colegialidade como decorrência da ampla defesa: “3. A observância do princípio da colegialidade é consectário dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, o que reclama sua observância mesmo em procedimentos de índole administrativa. Precedentes: MS 35.054 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe 09-05-2018; RE 210.487, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 14-04-2000; MI 375 AgR, Rel Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 15-05-1992. 4. In casu, o Corregedor Nacional de Justiça vedou o prosseguimento de recurso interposto em face de decisão singular, impedindo a submissão ao Plenário do CNJ, o que configura o direito líquido e certo do impetrante, ora recorrido, ter seu recurso analisado pelo colegiado do órgão.” [14]
Se a Administração observar a ampla defesa e o contraditório inerentes ao devido processo legal, nenhum vício há que se imputar ao comportamento público, o qual permanecerá incólume. Também não há que se falar em nulidade de decisão administrativa se ocorreram meras falhas formais quando do cumprimento das normas procedimentais, sendo as irregularidades irrelevantes para o desfecho do procedimento. Cumpre observar aqui a máxima pas de nullité sans grief, em cumprimento da qual não há nulidade se não houver dano: “2. A regularidade do processo administrativo propiciou a feitura de subsídios e decisão técnicos, assim como respeitou os princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa aplicáveis à parte interessada. Precedentes. 3. O princípio do pas de nullité sans grief exige a demonstração do prejuízo à parte impetrante que suscita o vício de procedimento, pois não se pode decretar nulidade processual por mera presunção. Precedentes.”[15]
Já no caso de ofensa à ampla defesa, doutrina e jurisprudência proclamam a necessidade de reconhecer a desconformidade com o ordenamento e a consequente nulidade, senão vejamos: “O direito à ampla defesa impõe à autoridade o dever de fiel observância das normas processuais e de todos os princípios jurídicos incidentes sobre o processo. A desatenção a tais preceitos e princípios pode acarretar a nulidade da decisão, por cerceamento de defesa. Cabe, todavia, assinalar que muitos abusos são cometidos sob esse título, levando à invalidação despropositada de processos. Somente haverá cerceamento de defesa se da omissão ou falha puder resultar um dano, potencial ou efetivo ao acusado. Meras falhas formais, irrelevantes para o desfecho do feito, não são suficientes para acarretar a nulidade.”[16] “Uma vez comprovado que o lançamento do Estado nos cadastros federais de inadimplentes ocorreu sem se viabilizar o direito de defesa, cumpre glosar o procedimento.” [17]
4. Princípio do contraditório
O contraditório situa-se especificamente no movimento dialético, ou seja, na ação de o terceiro rechaçar argumentos públicos que lhe são contrários, de apresentar provas que contradigam as afirmações estatais, de reinquirir testemunhas ou até mesmo de recorrer da decisão final em sentido oposto ao dos seus interesses. É preciso que se assegure “paridade de armas” entre as partes da relação jurídico administrativa.
Daí a doutrina afirmar que o contraditório exige diálogo, alternância das manifestações das partes interessadas durante a fase instrutória. A decisão final deve fluir da dialética processual, o que significa que todas as razões produzidas devem ser sopesadas, especialmente aquelas apresentadas por quem esteja sendo acusado, direta ou indiretamente, de algo sancionável.[18] Autores como Daniel Ferreira ensinam que “mediante invocação do contraditório é que qualquer administrado, enquanto legítimo interessado, tem acesso a toda e qualquer informação necessária à defesa de seus interesses e pode pleitear o direito de se contrapor, mediante resposta ou reação, à verdade quanto a fatos ou à legitimidade quanto a atos, como postos perante a Administração.” [19]
Também o STF vem fazendo prevalecer o contraditório de limitação de direitos, proclamando a nulidade na hipótese de ausência de processo administrativo prévia à constrição do direito da pessoa que se relaciona com o Estado: “As garantias constitucionais da ampla de defesa e do contraditório devem ser asseguradas nos casos em que ocorra a imposição, a determinada pessoa ou entidade pública ou privada, de limitação de direitos, sob pena de nulidade da própria medida restritiva.”[20] “Consoante a jurisprudência desta Corte, os atos da Administração Pública que tiverem o condão de repercutir sobre a esfera de interesses do cidadão deverão ser precedidos de prévio procedimento em que se assegure ao interessado o efetivo exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa.”[21]
À obviedade, se o contraditório foi assegurado, ausente está vício capaz de comprometer a atuação estatal: “Não há ofensa à garantia do contraditório e da ampla defesa, inerente ao devido processo legal, quando, em procedimento administrativo, o interessado, notificado, deixa, sem justa causa, de apresentar defesa no prazo legal.”[22]
Destaca-se, principalmente em se tratando dos processos punitivos do Estado, a importância de assegurar o direito ao silêncio do acusado, o dever instrutório da Administração Pública com direito à produção de provas pelo interessado e, principalmente, as ações cautelosas que o responsável pela instrução deve tomar, para preservar a regularidade dos atos e evitar a ofensa a garantias constitucionais básicas.
5. Conclusão
Em um momento da evolução do direito público em que o foco voltou-se para a necessidade de reprimir ilícitos administrativos, é imperioso observar as garantias constitucionais capazes de impedir a apropriação desse espaço como seara de perseguição ou favorecimento indevido. A atividade estatal cabível é sempre a adequada à realidade, conforme o ordenamento jurídico com o todo, sem excessos e sem insuficiências. Para atender tais exigências, o poder punitivo do Estado requer atenção especial quanto às etapas que precedem o juízo final, visto que não é cabível qualquer presunção fática quanto à infração autorizativa do sancionamento (é dever do próprio Estado comprovar a infração que é o motivo do ato administrativo punitivo), nem mesmo supressão de direitos previstos na própria Constituição.
Conclui-se ser indispensável a concretização da ampla defesa, bem como o movimento dialético inerente ao contraditório, com obrigações exigidas do Estado e impostas ao terceiro que se relaciona com o Poder Público, convocado a participar, de boa-fé, dos diversos procedimentos administrativos. Afinal, em um Estado Democrático de Direito, o único modo de alcançar objetivos como a moralidade, impessoalidade, boa-fé objetiva, confiança legítima e eficiência na Administração Pública é observar procedimentos os quais se orientem rigorosamente pelas garantias resultantes do devido processo legal.
[1] SILVEIRA, Ana Teresa Ribeiro da. A Reformatio In Pejus e o processo administrativo. Interesse Público, São Paulo, Notadez, a. 6, n. 30, p. 63, 2005
[2] VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. Colaboração de Flávia Scabin. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 474-475.
[3] GUEDES, Demian. Processo administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 73-75, itálico no original.
[4] GUEDES, Demian. Processo administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade, op. cit., p. 76; 81-83
[5] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 106-107
[6] ADI nº 2.120-AM, rel. Min. Celso de Mello, Pleno do STF, julgamento em 16.10.2008, Informativo 524 do STF
[7] ACO nº 732-AP, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma do STF, julgamento em 10.05.2016, Informativo 825 do STF
[8] FERRAZ, Sérgio. DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 130-131
[9] COSTA, José Armando da. Procedimentos disciplinares e a ampla defesa. Fórum Administrativo – Direito Público. Belo Horizonte: Fórum, ano 5, n. 51, maio de 2005, p. 5515
[10] MS nº 24.421-DF, rel. Min. Marco Aurélio, STF, julgamento em 02.10.2003, Informativo 234 do STF
[11] MS nº 27.640-DF, rel. Min. Ricardo Lewankowski, 2ª Turma do STF, DJe de 16.12.2011
[12] RE n° 223.904-MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2a Turma do STF, DJU de 06.08.2004, p. 61
“Servidor público não estável. Demissão por motivo de conveniência administrativa e interesse público. Inexistência de processo administrativo. Nulidade do ato de dispensa por inobservância da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa. Agravo regimental não provido.” (Ag. Regimental no RE n° 223.927-MG, rel. Min. Maurício Corrêa, 2a Turma do STF, DJU de 02.03.2001, p. 6)
Também o STJ: “A exoneração de servidor público efetivo em estágio probatório independe de processo administrativo, sendo imprescindível, destarte, o exercício do direito à ampla defesa, como espécie de procedimento sumário.” (Ag. Regimental no RMS n° 15.546-SP, rel. Min. Paulo Medina, 6ª Turma do STJ, julgado em 27.10.2005, Informativo 266 do STJ). No mesmo sentido: REsp n° 417.089-PR, rel. Min. Jorge Scartezzini, 5a Turma do STJ, DJU de 26.08.2002.
[13] MS nº 13.379-DF, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 3ª Seção do STJ, julgamento em 10.09.2008, Informativo 367 do STJ
[14] Ag. Regimental no MS nº 34.702-PB, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STF, DJe de 26.06.2018
[15] Ag. Regimental no RMS nº 26.332-DF, rel. Min. Edson Fachin, 2ª Turma do STF, DJe de 18.12.2017
Confira-se: RMS nº 22.608-RN, rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma do STJ, DJU de 27.02.2007, p. 238; REsp nº 812.282-MA, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJU de 31.05.2007, p. 363
[16] FERRAZ, Sérgio ; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo, op. cit., p. 71
[17] Ação Cível Originária nº 1.662-BA, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma do STF, DJe de 27.6.2016
Confira-se, ainda: MS nº 26.419-DF, rel. Min. Teori Zavascki, 2ª Turma do STF, DJe de 11.12.2015
[18] FERRAZ, Sérgio & DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo, op. cit., Capítulo II.
[19] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas, op. cit., p. 105
[20] Agravo Regimental no RE nº 343.564-PR, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma do STF, DJe de 15.05.2012
[21] Ag. Regimental no RE nº 593.055-MG, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma do STJ, DJe de 21.08.2012
Demissão – Necessidade de assegurar contraditório (mesmo se o cargo não é efetivo): “1. Garantia do contraditório e da ampla defesa em eventual demissão de servidor público, civil ou militar, mesmo que de cargo não efetivo. Precedentes.” (Agravo Regimental no RE nº 562.602-PA, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma do STJ, DJe de 17.12.2009)
No mesmo sentido: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 623.854-MA, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma do STF, DJe de 22.10.2009; Agravo Regimental no RE nº 513.585-RJ, rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma do STF, DJe de 31.07.2008
[22] Agravo Regimental no RMS nº 26.027-DF, rel. Min. Cezar Peluso, 2ª Turma do STF, DJe de 06.08.2009
Olá aqui é a Michaela Santana, eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.
Obrigada pelo retorno, Michaela. Desejo ótimos estudos de Direito Administrativo!