1.Situando o problema
Em diversas situações, a Administração Pública depara-se com uma situação em que não há uma única e clara resposta normativa. Mesmo com cuidadosa análise do ordenamento, não é seguro que a solução indicada na esfera administrativa será a que posteriormente, após todo o processo de controle judicial, inclusive nas instâncias superiores, prevalecerá e vinculará os envolvidos. Por vezes, diante do conflito de interesses e insegurança quanto ao comportamento a ser adotado, a advocacia pública chega a emitir parecer fundamentado orientando a autoridade administrativa ou órgão competente em dado sentido. Anos depois, não é raro que o Judiciário entenda de modo diverso, pacificando a matéria em sentido contrário ao da consultoria jurídica anterior. Entre em questão o que fazer com os atos praticados até a uniformização jurisprudencial em sentido diverso, sendo especialmente controverso definir o que fazer com os comportamentos praticados no lapso de 05 (cinco) anos anteriores à palavra final do Judiciário.
2. Enfrentando o problema
O primeiro aspecto que é preciso definir é reconhecer se, de fato, havia divergência sobre a matéria, sem orientação segura na doutrina e na jurisprudência quanto à existência e contornos do direito em questão. Se não havia controvérsia, eventual parecer em sentido diverso à legalidade apresenta-se contaminado por vício, sujeitando-se à análise segundo a teoria das nulidades do ato administrativo, o que também ocorre com os atos administrativos praticados com base na equivocada e ilícita orientação jurídica.
Já nas situações em que havia divergência, com dúvida significativa sobre a natureza jurídica de um instituto ou sobre os efeitos de uma específica característica de uma dada figura, até que jurisprudência superveniente trouxesse o sentido a ser observado, é induvidoso que não se trata de mera situação de “há vício, é preciso invalidar”. Essas situações são agravadas quando havia comportamentos reiterados administrativos (omissivos ou ativos) em dado sentido, orientações gerais por superiores ensejando tais escolhas públicas ou até mesmo pareceres técnicos e jurídicos com conclusão distinta da que acabou prevalecendo.
2.1.Um caso concreto
No Estado de Minas Gerais, durante algum tempo prevaleceu entendimento no sentido de ser possível falar-se em imprescritibilidade quanto ao pedido de pensão pelos dependentes de servidores públicos após a sua morte; por se tratar de verba alimentar, estar-se-ia diante de um direito fundamental e, portanto, não sujeito à limitação de exercício pelo tempo. Contudo, surgiram acórdãos em sentido contrário e sobrevieram, no ano de 2010, manifestações em consultas respondidas por setor jurídico de autarquia previdenciária, aquiescendo com a nova orientação. Explicitou-se, então, no Parecer nº 15.080, de 20.04.2011, da consultoria jurídica da Advocacia Geral do Estado que a jurisprudência dos Tribunais Superiores consolidara-se confirmando posicionamento no sentido da ocorrência da prescrição de fundo do direito de pedir pensão, depois de passados cinco anos da morte do segurado.
Referido entendimento embasou-se em julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, os quais fixaram ser a partir do falecimento do servidor público que surge o direito dos dependentes dos segurados requererem o pensionamento, sendo imperioso cumprir a prescrição quinquenal. Conforme a orientação da jurisprudência mais recente à época, se o interessado quedou-se inerte pelo prazo de 05 (cinco) anos após a morte do segurado, findo estava o seu poder de exigir da Administração o deferimento de pensão, ocorrendo a prescrição de fundo de direito. O parecer explicitou, ainda, a impossibilidade de se aplicar legislação estadual sobre a matéria, tendo em vista a competência da União para legislar sobre prescrição.
Nesse contexto, colocou-se em questão se o Parecer nº 15.080/2011, que explicitou a ocorrência da prescrição de fundo de direito, implicava necessariamente a revisão e consequente invalidação dos atos administrativos que, nos cinco anos anteriores à sua edição (entre 2006 e 2011), deferiram pensão aos dependentes dos segurados do IPSEMG, quando ultrapassado o quinquênio após a morte do segurado.
Tal questionamento mostrou-se pertinente tendo em vista que, inclusive à época da edição do Parecer nº 15.080/2011, prevalecia o entendimento de que uma orientação que evidenciasse vício de conteúdo de um ato administrativo praticado nos cinco anos anteriores ao exame da matéria implicava necessariamente sua invalidação. Seguindo tal compreensão, não se mostrava descabido entender que a conclusão do Parecer nº 15.080/2011 (prescrição de fundo do direito de pedir pensão após cinco anos da morte do segurado) era diversa do conteúdo de vários atos deferitórios de pensão praticados entre 20 de abril de 2006 e 20 de abril de 2011 (atos que deferiram pensão a dependentes mesmo depois dos cinco anos subsequentes à morte do segurado, inspirados na orientação da imprescritibilidade administrativa anterior). À primeira vista e mediante análise superficial, essa divergência entre o entendimento do novo parecer e o conteúdo dos atos anteriores implicaria, direta e necessariamente, em vício de conteúdo, o que exigiria a invalidação de cada ato, como um dever-poder de restauração da juridicidade administrativa.
Pode-se afirmar que, ainda na época da edição do Parecer nº 15.080/2011, analisava-se a preservação ou supressão de um ato com vício no ordenamento jurídico exclusivamente sob o ponto da natureza do vício (se vício de conteúdo, a sua natureza insanável conduziria diretamente à invalidação) e do lapso temporal em que o ordenamento admite o exercício do poder-dever de invalidar (prazo de decadência de cinco anos para o Estado rever os atos administrativos, segundo o artigo 65, da Lei Estadual nº 14.184). Como em relação à prescrição do fundo de direito, o fato de a sua incidência determinada no Parecer nº 15.080/2011 caracterizar vício insanável de conteúdo dos atos deferitórios de pensão (após cinco anos da morte do segurado) atrairia a decadência quinquenal para a Administração Pública reconhecer o vício. Assim, os atos que deferiram pensão sem observância da prescrição de fundo de direito antes de 24 de abril de 2006 estariam cobertos pelo manto da decadência, sendo inviável a Administração revê-los, nos estritos termos do artigo 65, da Lei Estadual nº 14.184. Já os atos praticados entre 24.04.2006 e 24.04.2011 (período de cinco anos anterior à data da emissão do parecer) estariam sujeitos à revisão sob o ponto de vista da legalidade administrativa, visto que inocorrente a decadência administrativa; isto significaria sua invalidação, sem ser cabível cogitar de exceções ou temperamentos.
Foi preciso sublinhar, contudo, que no Direito Administrativo contemporâneo ganhou importância o princípio da segurança jurídica, em especial a confiança legítima, ao que se acrescentou a ideia de boa-fé como elemento que atrai proteção jurídico-administrativa[1]. Foi (e é) com base nesses preceitos que se impôs análise de situações controversas como a explicitada, aqui tratada apenas de modo exemplificativo.
3. Segurança jurídica: o básico
A Administração Pública e a jurisprudência brasileiras há algum tempo vêm atentando para lições doutrinárias que aprofundaram o exame sobre a necessidade de estabilidade nas relações jurídicas, inclusive em relação a situações nas quais havia originariamente divergência de entendimentos sobre a matéria.
Segundo Odete Medauar, “A segurança jurídica permite tornar previsível a atuação estatal e esta deve estar sujeita a regras fixas. Diz respeito, assim, à estabilidade da ordem jurídica e à previsibilidade da ação estatal.” Daí infere consequências como a necessidade de proteção da confiança e, próximo à segurança jurídica, a proibição de retroatividade dos atos administrativos e das leis, bem como as limitações ao desfazimento dos atos administrativos.[2]
No mesmo sentido, novos e lúcidos doutrinadores encaram como reflexos importantes da segurança jurídica a imposição de limite à retroatividade das normas, das opiniões técnicas e a revisão de situações consolidadas, destacando a ligação com a previsibilidade e com a clareza da atuação estatal. A propósito, Fabrício Motta destaca a necessidade de atos normativos possuírem pretensões de permanência, criando orientações para aplicação motivada do ordenamento, sem mudança de critérios que cause surpresas, inobservado o caráter antecipatório que norteie os interessados.[3]
Pode-se afirmar que a segurança jurídica encontra-se presente no texto constitucional no dispositivo que protege a coisa julgada e o ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI) e, especificamente em relação à Administração Pública, no próprio princípio da legalidade (art. 37, “caput”). Não se ignore, ainda, sua previsão expressa no artigo 2º, XII da Lei de Processo Administrativo Federal. Na verdade, a Lei Federal 9.784/99 também o evidencia ao impedir, com a regra do artigo 55, a alteração de ato ou situação jurídica por força da aplicação retroativa de nova interpretação do texto legal. Registre-se, ainda, institutos como da usucapião, do direito adquirido, da preclusão, todos expressões concretas que revelam a profunda aspiração à estabilidade, à segurança, conatural do Direito. Outrossim, não se pode olvidar da ampla defesa e contraditório aos acusados em geral, da ficção do conhecimento obrigatório da lei, das declarações de direitos e garantias individuais, do devido processo legal, nem mesmo da exigência de lei prévia para a configuração de crimes e transgressões e cominações de penas também no âmbito do Direito Penal Administrativo.
Autores clássicos como Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em recentes publicações sobre a matéria, elucidam como dimensão do princípio da segurança jurídica, na esteira da doutrina de Sylvia Calmes e Rafael Maffini, a previsibilidade (de que resulta a necessidade de regras de transição, anterioridade da previsão de algumas matérias e proteção da confiança legítima em relação às regras), a acessibilidade e a previsibilidade, donde infere a permanência e a regularidade das relações jurídicas vigentes.[4]
Também Osvaldo Ferreira Carvalho trata a proteção da confiança como dimensão de estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas pertinentes a ações e comportamentos concretos, oriundos das ações estatais (acepção “ex post”). Nessa linha de raciocínio, a proteção da confiança proporciona a tutela de pretensões ou direitos subjetivos com vistas a preservação de atos ou de seus efeitos, ainda que desconformes com a ordem jurídica, mormente quando produziram vantagens para os destinatários.[5]
Incorporando tais lições, os Tribunais vêm assentando a importância de dar estabilidade às normas de caráter administrativo, sejam elas regras legais, sejam elas pronunciamentos do Executivo de que resulta um modo de agir, embasado em interpretação do ordenamento. O grande desafio é encontrar, em cada situação concreta, o ponto de equilíbrio entre a necessária estabilidade e o cumprimento da estrita legalidade, ambos critérios reitores vinculantes da atividade administrativa. Especificamente quando se trata de mutações decorrentes de análises jurídicas do ordenamento, máxime quando se está diante de matérias controversas, é preciso cautela para não recusar vigência absoluta à segurança jurídica, nem à legalidade administrativa. Se a Administração não pode implantar mutações casuísticas, com prejuízos intoleráveis aos direitos de terceiros, igualmente não pode sacrificar o cumprimento mínimo das normas vigentes, sendo necessário, em cada circunstância, atentar para os aspectos que lhe caracterizam, ponderando o grau de sacrifício razoável das normas principiológicas em questão.
É certa a possibilidade de se promover uma análise técnica de matéria com ampla repercussão administrativa, considerando jurisprudência atual, sem pretender a imutabilidade de comportamentos anteriores. A Administração Pública não está presa em uma camisa de força definida pelos entendimentos prévios já sustentados sobre um determinado assunto, sendo possível que os Tribunais passem a decidir em sentido diverso ou que a doutrina evolua ao tratar de uma matéria específica, de modo a justificar uma mutação interpretativa. Contudo, é preciso cautela quando da mudança dos códigos de conduta do Estado, mesmo nas situações em que não haja dúvida quanto ao acerto de nova posição sobre dada matéria, principalmente em se considerando os comportamentos praticados no período imediatamente anterior, não coberto pela estabilização pelo tempo decorrente da decadência administrativa.
3.1. Autovinculação administrativa, boa-fé e proteção à confiança
Destaca-se que doutrina moderna do Direito Público vem tratando da chamada “autovinculação administrativa”. No direito comparado, o português Pedro Muniz Lopes, ao analisar a problemática da tutela da confiança, a reconduziu ao conceito lato de autovinculação administrativa, incluindo na autovinculação a uma conduta comunicativa que, consubstanciando uma praxe, eventualmente preencha os requisitos da tutela da confiança.[6] Segundo Paulo Modesto, a reiteração de um mesmo modo de decidir em casos concretos impõe que o mesmo padrão seja adotado nas demandas futuras de mesma natureza, salvo motivação especial, fundada em alteração das circunstâncias e na necessidade de reformar o atendimento anterior em face do interesse público.[7] Não é que a Administração Pública esteja impedida de mudar o seu padrão de agir, mediante dados supervenientes que justifiquem a alteração do seu juízo técnico. Com efeito, embora a Administração Pública esteja “autovinculada ao precedente”, é possível que a mutação da realidade fática e jurídica embase mudança no padrão decisório. Se houver fundamentação suficiente ou razoável que sustente o novo entendimento, afasta-se a vinculatividade dos precedentes para adotar o novo padrão:
“É evidente que a Administração não está impedida de modificar o seu comportamento ou o seu padrão decisório. Mas se assim entender, deve motivar a mudança de rota, justificar não apenas a decisão concreta, mas a própria alteração de critério decisório, afastando qualquer suspeita de atuação caprichosa ou contrária aos padrões éticos da boa-fé. Se houver fixado a compreensão em regulamento, deve antes revogá-lo, em face do princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos. Se seguia apenas um padrão concreto de decidir, basta fundamentar a decisão contrária de forma razoável. (…) É certo ainda que a nova interpretação não pode ter efeito retroativo, consoante disposição igualmente expressa no artigo 2º, parágrafo único, XIII, da referida lei.”[8]
Também Judith Martins-Costa assenta que, pelo viés negativo, a segurança jurídica não impede que lei nova ou ato administrativo conforme situações jurídicas, desde que resguardado o princípio da legalidade, pois não limita de modo absoluto o poder de conformação daquele que detém competência na matéria. Reconhece a autora que o ordenamento jurídico é perpassado por uma secular relação de tensão entre permanência e ruptura, entre estabilidade e mudança, entre o que tende a ser eterno e o que tende à perpétua mudança. O que se busca é equilibrá-lo entre os pólos da segurança (na abstrata imutabilidade das situações constituídas) e da inovação, sendo a segurança jurídica um instrumento de adaptação.[9]
Em excelente trabalho sobre a matéria, também Irene Nohara pontua a importância de não se atribuir à proteção da confiança o efeito de exigir que uma interpretação jamais evolua, “ainda mais diante de uma justificação plausível; mas, como a própria Administração provocou nos administrados legítimas expectativas, ensejaria violação à proteção da confiança e à proibição do venire contra factum proprium pretender aplicar a nova interpretação com efeitos retroativos, uma vez que tal atitude geraria incoerência do Estado em relação a comportamentos com presunção de legitimidade.”[10]
Especificamente sobre o princípio da boa-fé, Judith Martins-Costa leciona que a jurisprudência brasileira estabelece, p. ex., o dever de não-contradição decorrente da aplicação da regra que proíbe o venire contra factum proprium, uma das concreções mais significativas da boa-fé como norma de conduta (REsp nº 47.015-SP, STJ). Indica, ainda, a percepção de um movimento intelectual, também assinalado pelo administrativista espanhol Luciano Parejo Alfonso, no sentido de ser cada vez mais frequente o apelo à confiança na relação Estado-cidadão. Trata-se de uma confiança também na atividade estatal, na ação continuadamente voltada à proteção das expectativas legítimas do cidadão e dos seus direitos, notadamente os Direitos Fundamentais instrumentalmente necessários ao livre desenvolvimento da personalidade humana:
“A confiança é, pois, mais do que o apelo à segurança da lei, é também mais do que a boa-fé, embora a suponha. É crédito social, é a expectativa, legítima na tiva proteção da personalidade humana como escopo fundamental do ordenamento. Daí alcançar Couto e Silva, em texto escrito mais recentemente, a plena compreensão da operatividade positiva da confiança no quadro do Estado de Direito.
A confiança dos cidadãos é constituinte do Estado de Direito, que é, fundamentalmente, estado de confiança. Seria mesmo impensável uma ordem jurídica na qual não se confie ou que não viabilize, por seus órgãos estatais, o indispensável estado de confiança. A confiança é, pois, fator essencial à realização da justiça material, mister maior do Estado de Direito. De resto, a exigência de um comportamento positivo da Administração Pública na tutela da confiança legítima dos cidadãos corre paralela ao crescimento, na consciência social da extremada relevância da conexão entre a ação administrativa e o dever de proteger de maneira positiva os direitos de personalidade constituintes do eixo central dos direitos fundamentais.”[11]
Destarte, a doutrina, que reconhece a viabilidade de o Poder Público adotar novo comportamento ou nova interpretação, passou a advertir que, diante da mudança, há um valor especial que a Administração também deve proteger: a confiança das pessoas nas normas e interpretações anteriores. Conforme lição atualizada, “A permanência constitui nesse sentido, uma das projeções da confiança legítima, garantindo o cidadão contra os efeitos danosos, ou ilegítimos, das modificações adotadas pelo Poder Público.” Se, por um lado, pode recobrir o princípio da confiança para escondê-lo nas dobras do manto da legalidade estrita, por outro, em conjuntura diversa, poderá significar o dever de afastar ou relativizar, no caso concreto, o princípio da estrita legalidade para fazer atuar outros princípios do ordenamento, tais como o princípio da boa-fé.[12]
A confiança legítima e a boa-fé passaram a ser, nos últimos anos, normas principiológicas a que a jurisprudência e a doutrina outorgaram significação e importância especial quando se está diante de uma nova realidade jurídica que vincule os comportamentos futuros da Administração. Quanto aos atos já praticados anteriormente, em sentido diverso ao da nova orientação, a segurança jurídica, a confiança legítima e a boa-fé objetiva passaram a consubstanciar princípios cuja incidência deve ser preservada, para fins de avaliação do comportamento público a ser adotado na espécie.
3.2. A irretroatividade das novas interpretações administrativas
O administrativista mineiro Luciano Ferraz, já há uma década, explicitou a necessidade de se observar a irretroatividade de uma nova interpretação administrativa sobre a matéria, com base em parâmetros jurisprudenciais e doutrinários. Segundo ele, a jurisprudência brasileira começa a registrar casos em que o preceito da Lei 9.784, que vedou a retroatividade de novas interpretações da legislação administrativa, tem aplicabilidade; p. ex., mudança pelo INSS de interpretação de regras previdenciárias em detrimento de seus segurados (Processo 2002.03.99.030048-7/SP, TRF da 3ª Reg.).[13]
Embora seja certo que em alguns Estados como em Minas Gerais, a legislação estadual (como a Lei Estadual nº 14.184/2002) não tenha estabelecido regra equivalente ao artigo 2º, parágrafo único, XIII da Lei Federal nº 9.784, não há dúvida que a segurança jurídica, sob o prisma da confiança legítima, a moralidade administrativa e a boa-fé consubstanciam elementos normativos fundantes da regra segundo a qual é preciso respeitar a legítima expectativa que terceiros mantém em relação aos atos da Administração Pública.
Em aprofundado estudo sobre o tema, José Guilherme Giacomuzzi assevera que “o estoppel, na common law, assim como a boa-fé, na civil law, carrega a filosofia de que é fundamental em dado sistema jurídico, proteger a expectativa legítima e a confiança causadas por determinado ato, seja ele praticado por um agente privado ou público. A confiança (reliance) é o ponto essencial de todas essas teorias, e, como venho afirmando, a moralidade administrativa entra justo aí.” A isso, acresce o autor:
“Diferentes sistemas legais têm diferentes teorias, com diferentes nomes, para tratar do problema da expectativa criada por uma parte que age e, com essa ação, leva outra parte a crer em determinado estado de coisas. A doutrina do estoppel, mesmo dentro de mais estreitos limites, exerce no sistema do common Law o mesmo papel exercido pela doutrina da boa-fé objetiva no sistema do continental Law. Ambas protegem a confiança legítima da parte que age com base nessa crença. Entre nós, especificamente no campo do Direito público e concernente à ação estatal, o princípio da moralidade administrativa expresso no caput do art. 37 da CF/88 é o caminho pelo qual esse debate pode ser veiculado, a despeito de não ser essa a única função da moralidade administrativa. Esse princípio, se bem entendido, deita raízes na boa-fé objetiva e visa a proteger a expectativa legítima criada pelo Estado nos cidadãos. Ele pode ser capaz de provocar mudanças na ação administrativa e ajudar a conduzir, esta é a minha esperança, a nação a um tempo de mais Justiça e confiabilidade no Estado.”[14]
Tem-se, portanto, algumas conclusões preliminares: a) a Administração Pública pode modificar a orientação adotada em determinada matéria, desde que o faça fundamentadamente; b) na hipótese de significativa controvérsia anterior sobre a matéria em questão, a mudança de orientação deve atentar para a segurança jurídica, em especial a confiança legítima que terceiros de boa-fé imputaram às decisões reiteradas anteriores. A ponderação que deve ser feita considerando especialmente a confiança legítima e a boa-fé como normas principiológicas está restrita aos contornos fáticos da realidade em questão, bem como aos aspectos técnicos envolvidos. Isso porque não podem tais elementos normativos ser utilizados para sanar vícios inconvalidáveis de comportamentos administrativos, nem tolerância criminosa com atos nulos e/ou seus efeitos. Em contrapartida, também não é lícito ignorar que matérias controversas, com nuances sequer enfrentadas pela doutrina e pela jurisprudência, quando encontram solução específica em momento posterior contrariamente à praxe administrativa adotada de boa-fé, não podem ignorar a necessária consideração à expectativa que terceiros estavam obrigados a manter quanto à juridicidade do comportamento estatal.
3.2.1. Aplicando a irretroatividade ao caso concreto do item 2.1.
Especificamente na hipótese apresentada explificativamente no item 2.1. “in retro”, é preciso destacar dois aspectos relevantes como fundamento da posição assentada no Parecer sobre a matéria: 1) a compreensão a propósito da competência para legislar sobre prescrição e 2) a jurisprudência do TJMG e do STJ afirmando que “nas ações propostas visando ao reconhecimento do direito à pensão por morte, decorridos mais de cinco anos do óbito do instituidor do benefício, é de ser reconhecida a prescrição do próprio fundo de direito.”
Quanto ao primeiro aspecto, foi pouco discutida, no Brasil, até mesmo pela doutrina, a competência das pessoas federativas para legislarem sobre prescrição e decadência, sendo ainda recente o aprofundamento sobre a própria natureza de ambos os institutos. Daí ser também recente a compreensão técnica sobre a competência da União para fixar prazos prescricionais, ao final dos quais o interessado perde o direito de exigir determinado direito. Naquela situação, somente diante do Parecer nº 15.080 de 2011 restou fixada a natureza prescricional do lapso temporal para terceiros aviarem requerimento na espécie, com competência legislativa da União e a consequente aplicação do Decreto Federal nº 20.910/32 que prevê prazo prescricional de cinco anos após o óbito do segurado.
Sobre o segundo aspecto, apenas nos anos que antecederam a emissão do Parecer 15.080/2011 tornaram-se recorrentes no STJ julgados firmando a prescrição do direito ao pensionamento cinco anos após o óbito do segurado. Cabe mencionar, além daqueles já citados no Parecer nº 15.080: AgRg nos Edcl no AgRg no REsp nº 1.194.002-MG, relator Ministro Humberto Martins, 2ª Turma do STJ, julgamento em 22.03.2011, DJU de 04.04.2011; AgRg no REsp nº 1.117.531-RS, relator Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, julgamento em 19.11.2009, DJU de 11.12.2009.
Tinha-se, portanto, em 2011, uma nova realidade jurídica capaz de vincular os comportamentos futuros e de exigir reflexão quanto aos atos já praticados anteriormente. Esclareça-se que a prevalência dos atos anteriores ainda não atingidos pelo prazo decadencial para rever comportamentos administrativos no âmbito estadual (artigo 65 da Lei Estadual nº 14.184/2002, equivalente ao artigo 54 da Lei Federal nº 9.784) exige avaliação à luz dos princípios da confiança legítima, da moralidade administrativa e da boa-fé objetiva.
Advirta-se que estavam em questão benefícios previdenciários de caráter alimentar, que foram deferidos sem participação de má-fé dos interessados, quando ainda não havia sido fixado juridicamente o enquadramento que o Parecer nº 15.080 de 2011 fixou, inclusive quanto à competência legislativa sobre a matéria. Conforme já se ressaltou, é certa a possibilidade de se promover uma análise técnica de matéria com ampla repercussão administrativa, considerando jurisprudência então vigente, sem pretender a imutabilidade de comportamentos anteriores. A Administração Pública não está presa em uma camisa de força definida pelos entendimentos prévios já sustentados sobre um determinado assunto, principalmente se os Tribunais passam a decidir em sentido diverso. Por conseguinte, nenhum impedimento havia em, diante da jurisprudência predominante nos Tribunais Superiores em 2011, fixar que o pedido de pensão sujeitava-se ao prazo prescricional de 05 (cinco) anos do Decreto Federal nº 20.910/32 ao contrário da imprescritibilidade reconhecida previamente. Contudo, as especificidades excepcionais da realidade em questão exigiram (e exigem em situações semelhantes) cautela ao interpretar a amplitude da mudança do código de conduta do Estado, mesmo quando não há dúvida quanto ao acerto de nova posição sobre dada matéria.
Se há uma motivação específica que embasou a alteração de um modo de agir administrativo (ex: no lugar do deferimento administrativo de pensões independente da data do óbito do segurado, um parecer fundamentado indica a necessidade o prazo prescricional de cinco anos a partir do falecimento), cumpre atentar para a natureza da parcela em questão, para a conduta dos agentes administrativos diante da mutação realizada e das evidências relativas à boa-fé de terceiros.
Não há qualquer dúvida que a parcela em questão era de natureza alimentar, tendo sido atribuído por parte da doutrina, inclusive, o caráter de direito fundamental ao pensionamento pela essencialidade à sobrevivência de quem o recebe. Outrossim, não se vislumbrou má-fé da gestão da entidade administrativa, uma vez que, em 2011, logo após emitido o parecer nº 15.080, a autoridade máxima da entidade requereu orientação à advocacia pública competente a propósito da retroatividade ou não do parecer nº 15.080. Registra-se que, à época, em virtude do receio (comum e ainda presente em diversas realidades administrativas) de uma manifestação jurídica formal da consultoria jurídica (no sentido da irretroatividade do parecer) implicar incentivo a ilegalidades administrativas generalizadas no Estado, transformando solução excepcional adequada às especificidades do caso concreto em intolerável regra geral de sanatória de vícios graves, orientou-se que o próprio, administrativamente, preservasse os atos jurídicos deferitórios anteriores ao parecer, motivando tal comportamento na confiança legítima apta a embasar a irretroatividade. Sublinha-se que, à época, não foi colacionado qualquer elemento evidenciador da má-fé dos pensionistas, inclusive considerando-se a natureza objetiva do princípio da boa-fé.
Delineada estava uma situação com os seguintes contornos: verbas de caráter alimentar deferidas antes de elucidado majoritariamente nos Tribunais o contexto jurídico vinculante dos atos autárquicos, sem evidência de má-fé dos pensionistas ou da gestão administrativa que demonstrou, já na época da emissão do parecer de 2011, preocupação com a observância da legalidade administrativa. Adverte-se tratar-se de situação incomum na realidade estatal, diferente de boa parte dos casos enfrentados pela atividade de consultoria. De fato, é comum que advogados públicos enfrentem atos com vícios graves, praticados irresponsavelmente, que requerem revisão antes de ultimado o prazo de decadência, com eficácia retroativa destrutiva e construtiva. Essa é a regra adequada à realidade comum dos problemas da Administração. Essa, portanto, é a solução jurídica propugnada como norma a ser observada na esfera pública, sendo sempre cautelosa a atividade da consultoria diante das hipóteses excepcionais. Reitera-se que o cuidado para evitar ampliação progressiva de ilegalidades administrativas, com progressão indesejada nos atos administrativos viciados, abrange até mesmo o comportamento de manter segura orientação de cada matéria, sem notas técnicas e pareceres que, circulando, possam levar a criminoso conforto administrativo no descumprimento do ordenamento, sob o biombo desviado da segurança em jurídica.
Antes mesmo da LINDB e independente de qualquer dispositivo de legislação processual administrativa de cada nível federativo, já era possível afirmar que, diante das especificidades do caso, não caberia fazer retroagir o novo posicionamento, para tornar inválidos atos praticados nos últimos cinco anos, contrariamente à jurisprudência e orientação jurídica superveniente. Nessas circunstâncias, tutelar a confiança dos beneficiários cujas esferas individuais foram ampliadas, ausente prova de má-fé, decorria da própria necessidade de se manter a segurança jurídica.
Diante desses aspectos, impunha-se o desenvolvimento das relações jurídicas já estabelecidas previamente ao novo entendimento, com fundamento na proteção da confiança legítima.
4. Confiança legítima
A confiança legítima “é a segurança jurídica vista do lado do particular” e protege contra mudanças de comportamentos bruscas, modificações normativas, desfazimento de ato administrativo desarrazoado que leva à perda de expectativas, fulminando drasticamente a esperança na permanência da situação jurídica vigente durante um determinado período.[15]
É comum, atualmente, a estabilização de situações pregressas, com fundamento no princípio da confiança legítima. É Rafael Valim quem escreve:
“Para que se configure a estabilização é necessário que estejam presentes os seguintes pressupostos: o ato inválido qualificar-se como ampliativo; a presença de administrado de boa-fé; e a permanência da situação criada atender a interesses hierarquicamente superiores aos residentes na norma violada.”[16]
O Ministro Gilmar Mendes concluiu, nos autos do Mandado de Segurança nº 24.268-MG, ser possível “cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato”.[17] O Supremo Tribunal Federal já decidiu que “Embora a lei inconstitucional pereça mesmo antes de nascer, os efeitos eventualmente por ela produzidos podem incorporar-se ao patrimônio dos administrados, em especial quando se considere o princípio da boa-fé.”[18] Se tal incorporação pode em alguns casos decorrer até mesmo de lei inconstitucional, não há dúvida quanto à possibilidade de estabilização em face de nova posição administrativa sustentada com base em recente e sólida orientação jurisprudencial e doutrinária.
Registre-se que os atos de natureza ampliativa atraem a estabilização fundada na confiança legítima. Fazer permanecer tais relações jurídicas atende a necessidade social de estabilização mínima, com proteção à dignidade da pessoa humana e à segurança jurídica. A conservação dos atos anteriores decorre, pois, de critérios objetivos, identificados da realidade em questão, destacando-se os princípios da confiança legítima e da segurança jurídica como fundamento. Manter atos já realizados é conduta “menos traumática aos interesses prestigiados pela ordem jurídica que sua eventual invalidação”[19], motivo por que se entende cabível pela preservação dos atos praticados até então.
Observe-se que o Superior Tribunal de Justiça, até mesmo diante de regras legais expressas que vem sustentando o dever de devolução de parcelas ao Poder Público, vem utilizando a boa-fé objetiva como limite à conduta administrativa, senão vejamos:
“2. Esta regra, contudo, tem sido interpretada pela jurisprudência com alguns temperamentos, mormente em decorrência de princípios gerais do direito, como a boa-fé. A aplicação desse postulado, por vezes, tem impedido que valores pagos indevidamente sejam devolvidos.
- A boa-fé não deve ser aferida no real estado anímico do sujeito, mas sim naquilo que ele exterioriza. Em bom vernáculo, para concluir se o agente estava ou não de boa-fé, torna-se necessário analisar se o seu comportamento foi leal, ético, ou se havia justificativa amparada no direito. Busca-se, segundo a doutrina, a chamada boa-fé objetiva.
- Na análise de casos similares, o Superior Tribunal de Justiça tem considerado, ainda que implicitamente, um elemento fático como decisivo na identificação da boa-fé do servidor. Trata-se da legítima confiança ou justificada expectativa, que o beneficiário adquire, de que valores recebidos são legais e de que integraram em definitivo o seu patrimônio.
(…) Objetivamente, a fruição do que foi recebido indevidamente está acobertada pela boa-fé, que, por sua vez, é consequência da legítima confiança de que os valores integraram em definitivo o patrimônio do beneficiário.”[20]
Também o Supremo Tribunal Federal vem embasando entendimento na mesma linha de raciocínio no primado da segurança jurídica, confiança legítima e boa-fé de modo, por exemplo, a manter a não devolução dos valores recebidos por servidor a que não faria a determinada parcela, recebida em razão de liminar judicial.[21]
Adverte-se para a necessidade de definir à qual boa-fé está-se referindo, bem como para os riscos de respostas simplistas como regra aplicável a todas as situações, independentemente das peculiaridades de cada caso concreto. É preciso analisar de qual proteção à segurança jurídica se trata, explicitando os requisitos pertinentes a cada categoria jurídica.[22]
5. A investigação da boa-fé
A respeito da boa-fé, tem-se clara a relevância do exame da sua presença, ou não, em situações em que se discute a pertinência de se assegurar a estabilidade dos atos anteriores ou não. Originariamente, a boa-fé era analisada exclusivamente sob o ponto de vista anímico do sujeito que exercia uma dada competência ou que se relacionava com o Estado. Ensinava o professor Celso Antônio Bandeira de Mello que agir de boa fé “É agir sem malícia, sem intenção de fraudar a outrem. É atuar na suposição de que a conduta tomada é correta, é permitida ou devida nas circunstâncias em que ocorre. É, então, o oposto da atuação de má fé, a qual se caracteriza como o comportamento consciente e deliberado produzido com o intento de captar uma vantagem indevida (que pode ou não ser ilícita) ou de causar a alguém um detrimento, um gravame, um prejuízo, injustos.” A ideia de que o dolo não se presume atraía a conclusão de que, para se admitir como existente a má fé, se “demanda que dela se faça prova substante ou, quando menos, que se possa depreendê-la de indícios veementes, de elementos que precedendo ou circundando o ato (ou a relação jurídica), concorram de modo robusto para levar a uma convicção sólida de que a parte ou as partes agiram maliciosamente, animados por intuito vicioso.”[23]
Registra-se que, atualmente, a boa ou má-fé é analisada por parte da doutrina e da jurisprudência sob o aspecto objetivo no âmbito do Direito Administrativo. Em vez de buscar sua caracterização exclusivamente mediante a investigação da intenção do agente, inspira-se também no modelo concreto de conduta administrativa, baseado na proteção do interesse público primário, na honestidade e na lealdade. Exclui-se, portanto, o exame apenas do móvel do sujeito do comportamento administrativo, considerando-se até mesmo irrelevante tal elemento psicológico no aspecto em exame. Necessária se torna a análise do comportamento comissivo ou omissivo, da forma como concretamente se realizou, ou não, tomando como critérios reitores os deveres de imparcialidade, transparência, tempestividade no exercício da competência, neutralidade e proporcionalidade. Afinal, a boa-fé objetiva diz respeito aos padrões de comportamento objetivos, referentes ao intercâmbio escorreito entre Poder Público e cidadãos cuja correção procedimental se exige.
Destaca-se a relevância de não se limitar a caracterização da boa-fé da Administração aos aspectos anímicos dos agentes públicos, os quais são de difícil investigação. Não basta, portanto, investigar a ignorância ou a crença errônea sobre uma dada situação, conforme a apreciação interna de um dado agente do Estado. Vincular a identificação de tal princípio à análise de um padrão objetivo de conduta, conforme a ética vigente em dado momento, é viabilizar a sua concretização, bem com o controle da sua observância, ou não. Constrói-se, pois, a noção da boa-fé objetiva presa a um padrão de conduta fundado na honestidade, retidão e lealdade; parte-se do padrão de conduta comum do homem médio (conceito controverso, mas do qual não se escapa em várias situações como a ora em exame), levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. “Pode, assim, ser considerada uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.”[24] Trata-se de uma concepção que leva em conta o aspecto social do exercício das competências públicas, inclusive os efeitos do comportamento administrativo na sociedade, em face das carências dos destinatários da atuação estatal. Outrossim, espera-se do administrado uma atuação leal, refletida e sem abuso, de modo que se concretize o interesse público primário em cada caso concreto. Portanto, a boa-fé objetiva implica cooperação entre Estado e administrado a fim de que se cumpram os objetivos públicos com satisfação de ambos interesses, sem que se confunda tal premissa como mera exigência de comportamento ético. Neste contexto, “sobressaem os elementos: confiança, transparência, cooperação, lealdade: todos eles deveres anexos ao princípio da boa-fé objetiva”.[25] Tais elementos vem sendo reiterados pela jurisprudência[26].
Não se admite presumir a boa-fé de modo absoluto e do ponto de vista exclusivamente subjetivo, conforme orientação do STJ[27].
Para quem adota tal posicionamento fundado na objetividade da boa-fé, adverte-se a importância de analisar os comportamentos dos envolvidos na situação controversa, com foco em verificar se ocorreu o atendimento da conduta que se espera de um administrador público, ao se deparar com situação fática de tal relevância. Examina-se a presença da legítima expectativa de continuidade dos beneficiados, até mesmo em razão da presunção de legitimidade dos comportamentos administrativos praticados.
6. Precedentes administrativos
A distinção estanque entre o Direito característico dos países de “common law” e “civil law” não consubstancia característica absoluta, sustentável em pleno século XXI. Rendem-se países como a Inglaterra à necessidade de normas escritas e outros, como o Brasil, incorporam mecanismos muito além do direito escrito que representam a força vinculante das decisões judiciais como espaço definidor das normas a serem observadas por pessoas públicas e privadas. E a importância da jurisprudência como espaço normativo do Direito vigente chegou não só ao Judiciário, também, à seara administrativa. Não são apenas as decisões judiciais que têm o poder de fixar o sentido possível dos diversos textos normativos e obrigar a sociedade e o Estado. As próprias interpretações administrativas veiculadas em decisões e comportamentos diversos consubstanciam os chamados “precedentes” aptos a definir limites de discricionariedade e até mesmo especificar qual sentido vinculará as partes em face de determinado ordenamento sem margem de liberdade para escolha de conveniência e oportunidade.
A esse respeito, confira-se a excelente obra de Gustavo Marinho segundo quem “A técnica dos precedentes judiciais pode ser utilizada nos países filiados à família romanista”, até mesmo porque “a Lei nestes países nem sempre é suficiente para garantir o tratamento isonômico em situações substancialmente similares, o que prejudica, inclusive, a previsibilidade das respostas do Estado”, donde concluir que “para se descobrir a conduta a ser observada pelo cidadão, não basta o texto da lei, mas sim a maneira pela qual ela é interpretada e aplicada pelo órgão competente. Conclui, com lucidez, o autor:
“Diante deste cenário é que os precedentes, sejam eles judiciais ou administrativos, são relevantes também nos sistemas romanistas, pois visam a resgatar a coerência na aplicação do Direito e, por conseguinte, reestabelecer a esfera de proteção dos cidadãos contra os desmandos do Estado. (…) Outra razão para o crescimento do prestígio dos precedentes está relacionada com a necessidade de se solucionar com maior agilidade as demandas judiciais e administrativas (art. 5º, LXXVIII). (…) A teoria dos precedentes nasceu e se desenvolveu no exercício da função jurisdicional, mas ela também pode ser aplicada no exercício da função administrativa. Isto porque, em ambas as funções, há a interpretação e a aplicação do Direito no caso concreto. Assim, os problemas e as dificuldades identificadas na aplicação do Direito pelo Poder Judiciário também existem quando é a Administração Pública que aplica o Direito ao caso concreto. (…) Os precedentes administrativos inserem-se na categoria autovinculação administrativa unilateral, individual e concreta.” [28]
Buscando definir e fundamentar adequadamente o instituto, esclarece Gustavo Marinho:
“Para nós, precedente administrativo é a norma jurídica extraída por indução de um ato administrativo individual e concreto, do tipo decisório, ampliativo ou restritivo da esfera jurídica dos administrados, e que vincula o comportamento da Administração Pública para todos os casos posteriores e substancialmente similares. (…) A eficácia vinculante dos precedentes administrativos decorre dos princípios da igualdade, segurança jurídica, boa-fé e eficiência (…) Para que um precedente administrativo possa ser invocado e aplicado é preciso o preenchimento de alguns pressupostos: identidade subjetiva da Administração Pública; identidade objetiva essencial entre os casos; identidade das normas jurídicas superiores incidentes; e a legalidade do ato administrativo do qual se extrai o precedente administrativo. (…) Apesar de alguns autores estrangeiros sustentarem que a reiteração é requisito necessário para a configuração de um precedente administrativo, julgamos que ela não é necessária.”[29]
Outros doutrinadores posicionam-se no sentido de ser necessária a reiteração: “Entende-se por precedentes administrativos o conjunto de reiteradas decisões de uma mesma entidade da Administração Pública em um mesmo sentido que, por dever de coerência, devem ser novamente adotadas em casos posteriores idênticos, exceto se houver a necessidade de superação do precedente.” É diante de um conjunto reiterado de decisões que se define o precedente administrativo sob esse prisma doutrinário, e a ele se reconhece a possibilidade de ter força suficiente para, por si só, autovincular a Administração e determinar sua obediência em casos vindouros. No direito comparado, juristas como o espanhol Luis Maria Diez-Picazo sustentam que precedentes são uma forma de atuação, munida de força vinculante, que, ao ser adotada pela Administração Pública, é capaz de condicionar suas atuações futuras, exigindo, desta, o mesmo posicionamento em casos análogos. Por outro lado, advertem que não significa que os entendimentos, uma vez proferidos tornem-se imutáveis, visto que a superação do precedente anterior e adoção de novo entendimento possível.[30]
Para enfrentar a questão da superação dos precedentes, aspecto essencial inclusive quando se trata da evolução dos precedentes administrativos em razão de alteração da jurisprudência dos Tribunais, com repercussão na realidade administrativa do Estado, é preciso, antes, reconhecer que os precedentes na Administração Pública podem surgir de formas diversas, enquanto na esfera judicial resultam do trâmite processual regular:
“Os precedentes administrativos podem se dar de diferentes formas, enquanto no Judiciário só são possíveis estritamente em uma decisão em sentido próprio e específico. A Administração Pública, porém, pode dar respostas em decisões em processos administrativos e respostas a consultas. Quando se soluciona uma lide administrativa, ou se resolve uma questão incidente, ou, ainda, quando se responde a consultas, são enfrentados os enunciados normativos, em conjunto ou isoladamente, à luz das indagações formuladas na consulta ou dos argumentos dos interessados envolvidos no processo, em consideração a uma situação realmente existente. Isso permite a obtenção de sentidos que não seriam possíveis de serem obtidos em uma análise abstrata.”[31]
Atentando para as formas diversas de surgimento do precedente na seara administrativa, tem-se a advertência doutrinária no sentido de que “Um precedente, ou seja, uma resposta institucional a um caso que cause ganho hermenêutico, terá uma força de vinculação variável, determinada por razões formais e materiais, relacionadas à integridade, coerência e justificação (relacionadas à fundamentação). O precedente administrativo se insere nesse conceito pelo fato de ser uma resposta da Administração Pública que apresenta todos os demais elementos característicos. Diferencia-se do precedente judicial justamente em razão dos elementos formais e materiais que lhe são característicos.” Sob esse ponto de vista e considerando o aspecto formal, os precedentes administrativos dividem-se em dois grupos: a) os oriundos de decisões em processos administrativos (incidência contraditório e ampla defesa); b) as respostas a consultas e pareceres jurídicos em procedimento administrativo (respostas institucionais, não incidem contraditório e ampla defesa). Até mesmo em se considerando a diversidade de origem de precedentes, apontam-se especificidades no seu grau de vinculação:
“Um precedente, ou seja, uma resposta institucional a um caso que cause ganho hermenêutico, terá uma força de vinculação variável, determinada por razões formais e materiais, relacionadas à integridade, coerência e justificação (relacionadas à fundamentação). O precedente administrativo se insere nesse conceito pelo fato de ser uma resposta da Administração Pública que apresenta todos os demais elementos característicos. Diferencia-se do precedente judicial justamente em razão dos elementos formais e materiais que lhe são característicos.”[32]
Considerando a perspectiva subjetiva, especificam-se limites à sua força vinculante, restringindo-a à “estrutura federativa” em que foi exarado:
“Contudo, é possível destacar um âmbito mais amplo dessa dimensão subjetiva: os precedentes só possuem vinculação formal dentro da mesma estrutura administrativa, entendida esta a estrutura federativa pertinente. Assim, as decisões e os pareceres da União só podem ter alguma relevância formal em face dos órgãos e entidades federais. O mesmo se dando em relação aos Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios.”[33]
À obviedade, além das discussões sobre a força coercitiva do precedente, sob o ponto de vista subjetivo e considerando as especificidades de sua origem, tem-se como relevantes, para a hipótese de mutação jurisprudencial dos Tribunais a repercutir na esfera administrativa, aspectos relativos à superação da orientação prévia. A esse propósito, Gustavo Marinho adverte para a necessidade de alta carga argumentativa que viabilize a superação de um precedente, sublinhando que “É preciso demonstrar a superioridade das razões para a superação do precedente”. Ademais, “A eficácia da superação de um precedente administrativo é prospectiva, ou seja, atinge apenas os casos futuros. [34] Aquiesce-se com a posição de Juraci Mourão Lopes Filho e Fayga Silveira no sentido de que, para assegurar coerência entre julgamentos administrativos, tem-se proibição de aplicação retroativa de nova interpretação. Nessa linha de raciocínio, a mudança de entendimento na linha de precedentes só pode ser aplicada para casos futuros, assegurando segurança jurídica qualificada em termos hermenêuticos (a regra geral corresponde à prospective overruling).[35]
Sem aprofundar em aspectos complexos relativos à teoria dos precedentes, como a sua operatividade e peculiaridades na vinculação deles resultante, mas dando primazia aos aspectos relevantes para a matéria ora em discussão, frisa-se que superar um precedente administrativo anterior, inclusive em razão de nova orientação jurisprudencial dos Tribunais, exige motivação sólida e atenção à exigência de irretroatividade como regra. Afinal, está-se a alterar o modo pelo qual os textos normativos transmutam-se, mediante interpretação, em normas vinculantes das condutas públicas privadas. É preciso indicar os novos fundamentos capazes de embasar um novo significado normativo vinculante, evitando, como regra, que tal superação atinja situações pretéritas e, assim, implique em insegurança jurídica e ofensa à boa-fé.
Entende-se que nova jurisprudência dos Tribunais superveniente ao precedente administrativo pode consubstanciar, sim, lastro para uma nova orientação ou decisão administrativa. Para tanto, repita-se, é indispensável indicar as razões da mudança (com evidência de equivalência entre a situação delineada nos novos acórdãos dos Tribunais e as situações futuras enfrentadas pela Administração Pública), respeitando-se os comportamentos anteriores à alteração do entendimento administrativo fundada na mutação jurisprudencial.
Mais uma vez, são cabíveis as lições de Gustavo Marinho no sentido de que a superação dos precedentes administrativos, que nada mais é do que o overruling do sistema de common law, aplicável originariamente para os precedentes judiciais, é uma técnica de superação por meio de que “oxigenamos a aplicação do direito quando estivermos diante de situações que exijam o aprimoramento das decisões administrativas”, o que pode acontecer de maneira explica (express overruling) ou implícita (implied overruling), sendo necessário na última hipótese que seja possível “depreender da motivação do ato administrativa a superioridade das razões para a superação do precedente”. Segundo o citado autor, “a alta carga argumentativa é necessária, pois todos aqueles que irão se submeter ao novo precedente precisam conhecer as razões de fato e de direito que justificaram a superação do precedente anterior”, ao que acrescenta:
“Em nosso entendimento, o posicionamento que pode ser extraído da legislação infraconstitucional é o mais correto e compatível com os princípios da segurança jurídica e da boa-fé, pilares dos precedentes administrativos. Deveras, se os precedentes administrativos servem justamente para complementar a previsibilidade que se espera das atuações da Administração Pública, é induvidoso que a superação de um precedente só poderia produzir efeitos para casos futuros (= efeitos prospectivos), pois se assim não fosse, além de não observar o mencionado princípio da segurança jurídica, cairia por terra uma das funções mais relevantes dos precedentes administrativos, qual seja: a previsibilidade das ações estatais.”[36]
7. Enfim, a LINDB
Resulta claro da longa explanação realizada, que no ordenamento brasileiro já havia lastro suficiente para se falar em irretroatividade de nova interpretação administrativa, com imposição de um regime de transição em situações de mutação, nos termos em que introduziu a Lei Federal nº 13.655/2018 na LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro):
“Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.”
No âmbito federal, o artigo 2º, parágrafo único, XIII da Lei nº 9.784/99 já determinava a observância do seguinte critério nos processos administrativos: “interpretação de norma administrativa de forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”. O Supremo Tribunal Federal já fixara a inaplicabilidade retroativa de súmulas de órgãos de controle, o que consubstancia clara proteção à segurança jurídica mediante a irretroatividade de precedente administrativo pacificado em entendimento sumulado pelo Tribunal de Contas[37].
Como se elucidou, a doutrina brasileira já havia firmado entendimento a propósito da irretroatividade das novas posições e interpretações adotadas pela Administração Pública. A ideia subjacente é a de que atribuir nova interpretação administrativa a um enunciado normativo significa produzir uma nova norma jurídica e a regra, quanto às novas normas, é a sua irretroatividade. Logo, em princípio uma nova interpretação não pode retroagir, sendo essa orientação – já presente na doutrina e, expressamente, em alguns diplomas legais de processo administrativo – agora marco hermenêutico vinculante do direito público em todas as esferas da federação.
A LINDB exige expressamente, na hipótese de se adotar obrigação ou restrição a direito inovadoras, que se preveja um regime de transição. O objetivo desse regime e assegurar o cumprimento da nova orientação sem excessos nem insuficiências, de modo a concretizar a eficiência e proporcionalidade administrativas.
Registre-se que o artigo 23 ainda requer que não haja prejuízo “aos interesses gerais” como condição para o regime de transição . Observe-se, a esse respeito, ser comum no Direito Administrativo Brasileiro, inclusive positivado, o uso da expressão “interesse público”, sendo pouco usual a ideia de “interesse geral” como parâmetro jurídico incidente nas relações jurídico-administrativas. Buscando solucionar as dúvidas hermenêuticas surgidas a partir da LINDB, tem-se o Enunciado nº 09 relativo à “interpretação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB e seus impactos no Direito Administrativo” do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo), aprovado no Encontro de Tiradentes em junho de 2019: “A expressão ‘interesse geral’ prevista na LINDB significa ‘interesse público’, conceito que deve ser extraído do ordenamento jurídico”. Ao transcrito enunciado acresce-se o relevante Enunciado nº 17:
“17.É imprescindível, a partir da ideia de confiança legítima, considerar a expectativa de direito como juridicamente relevante diante do comportamento inovador da Administração Pública, preservando-se o máximo possível as relações jurídicas em andamento. Neste contexto, torna-se obrigatória, sempre para evitar consequências desproporcionais, a criação de regime de transição, com vigência ou modulação para o futuro dos efeitos de novas disposições ou orientações administrativas”.
A esse respeito, autores como Floriano Azevedo Marques Neto reconhecem que o regime de transição consubstancia “ideia já consolidada entre nós de uma modulação dos efeitos e de um diferimento temporal da aplicação da decisão nova.” Além da própria inconstitucionalidade contemplar modulação de efeitos, o administrativista paulista lembra que o Novo Código de Processo Civil também generalizou essa possibilidade para decisões judiciais, sem maiores críticas (art. 525, § 12; art. 927, § 3 – alteração de jurisprudência dominante no STF/tribunais superiores ou oriunda de julgamento de casos repetitivos: pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e da segurança jurídica) [38].
O que fez a LINDB, assim, foi integrar o CPC ao cotidiano da Administração Pública, conforme lúcido ensinamento de Egon Bockmann Moreira e Paula Pessoa Pereira. Afinal, a legislação processual, ao prescrever dever de justificação das decisões judiciais com observância da racionalidade (art. 489 do CPC/2015), bem como de desenvolvimento coerente e estável do Direito (arts. 926 e 927 do CPC/2015), deu falsa impressão que o Direito Público e órgãos/entidades da Administração Pública estavam alheios a essa postura decisória, pelo simples fato da alocação da regra em corpo legislativo processual civil. Nada mais errado, escrevem os dois autores, explicitando que a LINDB acaba com uma falsa polêmica sobre a matéria. [39]
Assim, tanto no direito processual como no cotidiano do direito administrativo, é preciso atentar para a segurança jurídica como uma exigência que indica a regra da irretroatividade das novas interpretações e orientações administrativas, o que se impõe tanto ao gestor como ao controlador público, os quais precisam se convencer da efetividade das normas vigentes.
8. Advertência final
É preciso deixar claro que a preservação dos atos ou de comportamentos omissivos adotados, com base na irretroatividade da nova interpretação, não significa que a Administração Pública está livre da obrigação de invalidar os atos praticados com vícios insanáveis, assegurando a retroatividade destrutiva e construtiva do ato que decreta a nulidade, observada a ampla defesa e contraditório prévios. A regra geral permanece: excluída a hipótese de decadência (artigo 54 da Lei Federal nº 9.784 e dispositivos da legislação estadual ou municipal como o artigo 65 da Lei Mineira nº 14.184/2002), diante de um vício grave e inconvalidável, é dever do Poder Público suprimir retroativamente o ato contaminado, destruindo os efeitos dele decorrentes e construindo a realidade que deveria ocorrido se não presente o ato ilícito. Tal conclusão prevalece quando o gestor público identifica o vício insanável e, principalmente, quando tal vício é indicado em parecer jurídico sobre a matéria, com garantia, sempre, de ampla defesa e de contraditório.
Para que não remanesça qualquer dúvida a propósito da controversa questão, não se admite que a confiança legítima e a boa fé sejam abstratamente invocadas para afastar o dever de invalidar atos administrativos com vícios insanáveis antes de ultimada a decadência, nem mesmo para afastar genericamente os efeitos retroativos da invalidação em se tratando de atos ampliativos de direito. Não pode o ordenamento ser interpretado para solidificar um “direito adquirido à ilegalidade” antes da estabilização pelo tempo indicado em lei como prazo de decadência e de prescrição. Muito menos se coaduna com a análise da boa-fé exclusivamente sob o ponto de vista subjetivo, tendo em vista a dificuldade de colacionar elementos que formem um juízo seguro de eventual má-fé subjetiva daquele que se relaciona com a Administração. Investigar somente o aspecto anímico do agente, vale dizer, a sua intenção seria restringir o reconhecimento da má-fé subjetiva a situações raríssimas, visto que não é comum ter-se elementos que a demonstrem de forma coesa, robusta e convincente. Na prática, a regra passaria a deixar incólume todas as consequências de ilegalidades graves com flagrante prejuízo dos interesses, inclusive econômicos, da sociedade. Não se pode realizar hermenêutica administrativa que culmine em sacrifício o interesse público primário, sendo necessária cuidadosa interpretação que considere os aspectos da realidade administrativa, bem como as normas principiológicas e regras legais vigentes.
O que se afirma aqui é que, em determinadas circunstâncias, a Administração depara-se com situações empíricas em que a natureza do direito atingido por mudanças de entendimento, a boa-fé dos envolvidos, um significativo número de comportamentos administrativos anteriores em sentido diverso, a existência de dispositivo legal ou de precedente que servia de amparo e a ausência de segura orientação pacífica doutrinária e jurisprudencial prévia indicam a necessidade de fazer prevalecer a confiança legítima e a boa-fé de quem se relaciona com a Administração, respeitadas as suas expectativas legítimas diante de praxe administrativa originária, mesmo que diversa de conclusão técnico-jurídica superveniente. Trata-se de um contexto específico em que é razoável afastar a retroatividade da análise jurídica superveniente que trouxe interpretação fundada e solução embasada para determinada matéria. Nessa situação, afigura-se admissível que não se promova a invalidação com eficácia destrutiva e retroativa dos atos ainda não atingidos pela decadência administrativa, tendo em vista a repercussão da segurança jurídica, em especial da confiança legítima, da boa-fé e da moralidade na juridicidade a ser observada na espécie.
Certo é que realidades dessa natureza requerem motivação específica e sólida, acompanhamento diligente da hierarquia superior a fim de evitar extensões indevidas, além de atenção de quem se pronuncia quando da orientação técnica e jurídica, bem como de quem exerce a atividade de controle. O maior desafio é não transformar a confiança legítima e a boa-fé em uma panaceia que termine por incentivar futuras ilegalidades, o que é intolerável em um Estado Democrático de Direito, e, simultaneamente, não incutir naqueles que exercem suas competências administrativas um receio exagerado que impede o cumprimento das suas funções, implantando uma cultura persecutória que faz presente o medo imobilizador do Estado ou que induz ao cometimento de injustiças exclusivamente em razão do pânico de errar e de ser responsabilizado pessoalmente. Quem atua em procedimentos que resultam em atos de ampla repercussão precisa ter a lucidez de combater ao máximo as ilegalidades, principalmente as que conduzem a improbidades merecedoras de rechaçamento absoluto; deve fazê-lo sem impedir o atingimento razoável e ponderado das finalidades públicas logicamente amparadas no ordenamento jurídico, nem mesmo viabilizando o resultado da petrificação de uma dada realidade administrativa. É exatamente buscando o atingimento de ambas as finalidades e uma incidência razoável das regras da ordem jurídica vigente que se ponderou sobre os múltiplos aspectos presentes no referido contexto, com claro objetivo de viabilizar o aprofundamento do debate e a indicação de parâmetros seguros para a atividade administrativa do Estado.
[1] A análise foi realizada no Parecer nº 15.302, de 27.12.2013, da consultoria jurídica da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais, sendo os argumentos ali delineados a base do raciocínio aqui aprofundado e atualizado.
[2] MEDAUAR, Odete. Segurança jurídica e confiança legítima “in” ÁVILA, Humberto et al. Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. Org. Humberto Ávila. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 115.
[3] MOTTA, Fabrício. Função Normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 104-106.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. O princípio da segurança jurídica diante do princípio da legalidade “in” Princípios de direito administrativo. Org. Thiago Marrara. São Paulo: Atlas, 2012, p. 14.
[5] CARVALHO, Osvaldo Ferreira. Segurança jurídica e a eficácia dos direitos sociais fundamentais. Curitiba: Juruá, 2011, p. 255.
[6] LOPES, Pedro Muniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa. Lisboa: Almedina, 2011, p. 354.
[7] MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. Nova Organização Administrativa Brasileira. 2ª edição, Belo Horizonte, Fórum, 2010, p. 131.
[8] MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa, op. cit., p. 134.
[9] MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos “in” ÁVILA, Humberto et al. Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. Org. Humberto Ávila. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 130-131.
[10] NORAHA, Irene Patrícia. Ensaio sobre a ambivalência da segurança jurídica nas relações do Estado: da realização de justiça à faceta perversa do argumento. In Princípios de Direito Administrativo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo: Atlas, 2012, p. 84.
[11] MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos “in” ÁVILA, Humberto et al. Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. Org. Humberto Ávila. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 144-145.
[12] MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos “in” ÁVILA, Humberto et al. Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva, op. cit., p. 132-133.
[13] FERRAZ, Luciano. Segurança jurídica positivada: interpretação, decadência e prescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte: Fórum, ano 8, n. 30, p. 19-42, jul./set. 2010.
[14]GIACOMUZZI, José Guilherme. Nunca confie num burocrata. A doutrina do ‘estoppel’ no sistema da ‘common law’ e o princípio constitucional da moralidade administrativa (art. 37 da CF/88). Fundamentos do estado de direito: estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. Org. Humberto Ávila. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 417-418; 426.
[15] COVIELLO, Pedro José Jorge. La protección de la confianza del administrado. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2004. p. 392;458-459.
[16] VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo, Malheiros, 2010, p. 122.
[17] MS nº 24.268-MG, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, Pleno do STF, julgamento em 15/03/2004, Informativo 343 do STF.
[18] Ag. Reg. no nº RE 359.043-AM, rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma do STF, DJU de 03.10.06.
[19] VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. op, cit., p. 122.
[20] Ag. Regimental no REsp nº 1.263.480-CE, rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma do STJ, DJe de 09.09.2011
No mesmo sentido Agravo Regimental no Agravo em REsp nº 144.877-CE, rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma do STJ, DJe de 29.05.2012.
[21]“AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. ÍNDICES DE RECOMPOSIÇÃO SALARIAL. DEVOLUÇÃO DE PARCELAS RECEBIDAS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DA SEGURANÇA JURÍDICA. 1. Quando do julgamento do MS 25.430, o Supremo Tribunal Federal assentou, por 10 votos a 1, que as verbas recebidas em virtude de liminar deferida por este Tribunal não terão que ser devolvidas por ocasião do julgamento final do mandado de segurança, em função dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (Agravo Regimental no MS nº 28.821-segundo-DF, rel. Min. Edson Fachin, 2ª Turma do STF, DJe de 28.03.2017).
[22] Assim, a confiança legítima não equivale à chamada “Teoria dos atos próprios” que requer compreensão de como o venire contra factum propium incorpora-se no Direito Administrativo. Em regra, mencionam-se três requisitos: a) identidade subjetiva e objetiva (ato anterior e ato posterior emanam da mesma Administração e são produzidos no âmbito da mesma relação jurídica); b) conduta anterior é válida e unívoca, capaz de gerar a confiança (expectativa legítima) na outra parte da relação jurídica; c) atuação contraditória (incompatibilidade do ato posterior com o ato anterior). Não se esqueça a orientação clássica do Direito Comparado, como a de González Pérez, no sentido de que a teoria dos atos próprios pressupõe a legalidade do ato anterior vinculante. No caso de atos inválidos, eventual estabilização decorre exatamente da proteção da confiança legítima e de institutos como decadência e prescrição. Segundo Paulo Modesto, a ninguém é lícito ir contra os próprios atos, pois seria deslealdade com a contraparte criar uma aparência, mobilizar a contraparte a agir congruentemente com esta aparência, e depois quebrar a confiança com comportamentos ou atos contraditórios na mesma relação jurídica. Destarte, cabe tutelar a confiança do particular e a coerência dos atos públicos. “Mas, na espécie, a invocação de casos análogos é desnecessária. Basta que o ato, base da proteção da confiança legítima, tenha sido adotado perante o sujeito lesado e suscite ou suceda posterior pretensão contraditória. Para a invocação da proibição de ir contra atos próprios bastam duas decisões ou comportamentos de uma mesma entidade ou pessoa administrativa, lícitos em si, diferidos no tempo, em contradição em face de determinado sujeito.” Nesse contexto, o fundamento da proibição de ir contra atos próprios é a segurança jurídica e moralidade administrativa. (MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa MODESTO, Paulo Coordenador. Nova Organização Administrativa Brasileira, op. cit., p. 137-139.
Diferenciando a teoria dos atos próprios da teoria dos precedentes administrativos, analisada no item 6 do presente artigo: “Por fim, impõe-se dizer que a teoria dos precedentes administrativos é diferente da teoria dos atos próprios (venire contra factum propium). A proibição do comportamento contraditório tem sua aplicação reservada a uma mesma relação jurídica, protegendo o administrado que confiou legitimamente no ato da Administração. que, por sua vez, depois, atua de forma incompatível com a postura anterior, traindo a confiança do administrado.
A teoria dos precedentes administrativos, por outro lado, opera em relações jurídicas diferentes. O administrado que invoca o precedente não integrou necessariamente a relação da qual se originou o precedente invocado.” (Ticiano Alves e Silva. Liege Cunha Araujo. Teoria dos Precedentes administrativos: uma apresentação. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo, editora Revista dos Tribunais, v. 20, ano 3, set/out 2015, p. 126)
[23] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O princípio do enriquecimento sem causa em direito administrativo. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, FGV, v. 210, p. 25-35, out./dez. 1997.
[24] GONÇALVES, Carlos Roberto. Principais inovações no Código Civil de 2002. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 40-41.
[25] CARVALHO, Diógenes Faria de; PEREIRA, Paulo Guimarães. A boa-fé objetiva como parâmetro de análise dos contratos administrativos. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, Fórum, a. 2, n. 23, p. 2.894, nov. 2003.
[26] RMS nº 33.606-GO, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma do STJ, DJe de 29.03.2011.
[27]Agravo Regimental no MS nº 17.748-DF, rel. Min. Herman Benjamin, 1ª Seção do STJ, DJe de 20.03.2012.
[28] CARVALHO, Gustavo Marinho de. Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2015, p. 188-190.
[29] CARVALHO, Gustavo Marinho de. Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro, op. cit., p. 191-192.
[30] Ticiano Alves e Silva. Liege Cunha Araujo. Teoria dos Precedentes administrativos: uma apresentação. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo, editora Revista dos Tribunais, v. 20, ano 3, set/out 2015, p. 125-126.
[31] LOPES FILHO, Juraci Mourão ; BEDÊ, Fayga Silveira.A força vinculante dos precedentes administrativos e o seu contributo hermenêutico para o direito. A & C. Revista de Direito Administrativo Constitucional. Belo Horizonte, ano 16, n. 66, out./dez. 2016, p. 243.
[32] LOPES FILHO, Juraci Mourão ; BEDÊ, Fayga Silveira. A força vinculante dos precedentes administrativos e o seu contributo hermenêutico para o direito. A & C. Revista de Direito Administrativo Constitucional, op. cit., p. 247-249.
[33] LOPES FILHO, Juraci Mourão ; BEDÊ, Fayga Silveira. A força vinculante dos precedentes administrativos e o seu contributo hermenêutico para o direito. A & C. Revista de Direito Administrativo Constitucional, op. cit., p. 252.
[34] CARVALHO, Gustavo Marinho de. Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro, op. cit., p. 191-192.
[35] LOPES FILHO, Juraci Mourão ; BEDÊ, Fayga Silveira. A força vinculante dos precedentes administrativos e o seu contributo hermenêutico para o direito. A & C. Revista de Direito Administrativo Constitucional, op. cit., p. 258.
[36]CARVALHO, Gustavo Marinho de. Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro, op. cit., p. 175-178.
Diverge-se da posição do referido autor ao defender que a irretroatividade do novo entendimento da Administração Pública só se aplica no caso de a posição superveniente restringir a esfera jurídica do administrado, sendo possível retroagir no caso de superação ampliativa da esfera jurídica do administrado. (CARVALHO, Gustavo Marinho de. Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro, op. cit., p. 178-179) Com a devida vênia, não se vislumbra fundamentação jurídica para a referida distinção, sendo certo que, ao contrário, a retroatividade é causa de insegurança jurídica apta a justificar a preservação dos precedentes anteriores tanto na hipótese de a superação atingir restritiva ou ampliativamente a esfera jurídica de quem se relaciona com a Administração.
[37] “Na apreciação da legalidade, para fins de registro, de ato inicial concessivo de aposentadoria, a jurisprudência desta Suprema Corte, fundada nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, reputa inviável a aplicação retroativa da interpretação restritiva da Súmula nº 96/TCU assentada por meio do Acórdão nº 2024/2005 do Plenário do Tribunal de Contas da União. Agravo regimental conhecido e não provido.” (Agravo Regimental no MS nº 28.223-segundo-DF, rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma do STF, DJe de 05.04.2017)
[38] MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Art. 23 da LINDB: O equilíbrio entre mudança e previsibilidade na hermenêutica jurídica. Revista de Direito Administrativo, novembro de 2018, p. 106-107.
[39] MOREIRA, Egon Bockmann ; PEREIRA, Paula Pessoa. Art. 30 da LINDB – O dever público de incrementar a segurança jurídica. Revista de Direito Administrativo, novembro de 2018, p. 248.
Muito bom, Raquel, parabéns! Citarei seu artigo em trabalho que estou a escrever sobre a revogada súmula 105 do TCU. Abs!
Que bom, Bruno! Esse artigo tem sido útil em diversas situações jurídicas, sendo citado pelo Judiciário, órgãos de controle e advocacia pública. Obrigada pela gentileza do comentário. Abraços e bom trabalho,