1. Introdução
O primeiro aspecto a ser analisado quando nos deparamos com notícias relativas ao excessivo número de cargos em comissão e de funções comissionadas em órgãos diversos de entes federativos diferentes refere-se à compreensão dos conceitos mencionados no artigo 37, V da Constituição da República. É preciso atentar para o regime jurídico constitucional e para os limites incidentes em cada situação, a fim de evitar prejuízos graves ao exercício de competências basilares nos diversos Poderes do Estado.
2. Cargos em comissão
No direito brasileiro, os cargos comissionados, também chamados de cargos de confiança são unidades de competências que, reunidas, definem-se como sendo de “livre nomeação” e de “livre exoneração”. Recebem denominação própria na estrutura das pessoas de direito público federativas (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) e administrativas (autarquias e fundações públicas) e enfeixam atribuições de direção, chefia e assessoramento (artigo 37, V da CR), donde se entende justificada a liberdade para designação do servidor que exercerá tais responsabilidades.
Com efeito, a natureza das atividades que podem integrar as competências imputadas a um cargo comissionado – direção, chefia e assessoramento – têm pertinência com a confiança que deve existir entre a autoridade nomeante e o servidor público. Daí a doutrina afirmar que a transitoriedade é uma vocação desse tipo de cargo, sendo indispensável liberdade no momento da nomeação, bem como quando da exoneração do servidor. A possibilidade de exoneração a qualquer momento implica o não reconhecimento de estabilidade ao servidor comissionado (artigo 41 da CR). Afinal, a confiança que exista e justifique a presença de um servidor no exercício de uma função de direção, assessoramento e chefia em um dado momento não pode obrigar a autoridade nomeante a manter o mesmo juízo indefinidamente, sendo cabível a sua alteração, inclusive desaparecimento, de modo a justificar o fim do exercício das atribuições. É desse contexto que advém o entendimento doutrinário segundo o qual a precariedade e a temporariedade são características do cargo comissionado.
Quanto à liberdade para nomeação, é certo que o artigo 37, II da Constituição excluiu a exigência do concurso público como procedimento anterior indispensável ao provimento originário no cargo de confiança. Assim sendo, o exercício das funções a ele afetas não depende da prévia aprovação em concurso público, mas resulta do juízo de confiança a ser exercido pela autoridade com competência para levar a efeito a nomeação.
É Edmir Netto de Araújo quem afirma que “Os cargos podem ser providos em comissão ou confiança, que, para nós, não deixam de ser sinônimos, no Direito Administrativo. Um dos significados do verbo cometer é exatamente o de confiar, e o de comissão é o de preenchimento de cargo por ocupante exonerável ‘ad nutum’, que quer dizer ‘à vontade de quem nomeia’.” Frisando a transitoriedade do ocupante do cargo comissionado, o administrativista sustenta que “Não é necessária a aprovação em concurso público para a nomeação em comissão (CF, art. 37, II), nem a prática de infração disciplinar, apurada em processo administrativo ou judicial, para seu desligamento.”[1] A doutrina vem insistindo que “Os cargos de confiança (…) só se justificam para o desempenho de atividades de direção, chefia e assessoramento, logo, incompatível com atribuições de natureza eminentemente técnica, que condicionam a realização do concurso para o seu provimento, sob pena de representar ofensa ao artigo 37, inciso II, da Constituição Federal.”[2] Referida cautela ao interpretar a figura do cargo comissionado é essencial na medida em que a liberdade quanto ao início e fim do provimento dos cargos afasta a regra geral do concurso público e a da estabilidade que incidem relativamente aos cargos efetivos.
2.1. Natureza das atribuições: limite constitucional
No que tange à amplitude da liberdade para provimento do cargo comissionado, há limites à discricionariedade fixados no próprio texto constitucional. Primeiro, tem-se especificadas as atribuições que o justificam: somente direção, assessoramento e chefia (art. 37, V da CR). A esse propósito, a doutrina adverte:
“Fora dessas atribuições, o provimento do cargo é efetivo e deve se submeter ao prévio concurso público.
Na prática, o que se percebe em alguns casos é o desvio da função do cargo comissionado, que de comissionado só tem mesmo o nome para servir de pretexto à dispensa do concurso público, mas as suas atribuições destinam-se a atividades corriqueiras da administração, estranhas à afetação constitucional de direção, chefia e assessoramento. Em casos que tais a fraude ao concurso público é latente, de modo que a nomeação deve ser tornada sem efeito.”[3]
2.2. Inconstitucionalidade na criação e número excessivo
Cargos comissionados, uma vez que limitados as atribuições de direção, chefia e direção, são compatíveis com a instabilidade do regime constitucional de “livre nomeação e exoneração”. À obviedade, a discricionariedade presente nessa realidade não é compatível com o exercício de atribuições técnicas, contínuas, inseridas na atividade-fim dos órgãos públicos e necessidades administrativas. Quando se trata das atribuições inseridas no próprio planejamento, controle, prestação de serviço público, exercício de poder de polícia e outras competências típicas imputadas, pelo ordenamento, ao Estado, não é razoável admitir a instabilidade do vínculo que a qualquer momento, sanzonalmente e sem critérios fixos permita o encerramento da relação funcional. Destarte, sequer faz sentido reunir sob a estrutura de cargo comissionado um conjunto de atribuições que não são de assessoramento, chefia, nem direção, mas sim competências típicas, técnicas e finalísticas do órgão público e da entidade administrativa.
Identifica-se, no Estado brasileiro, verdadeira obsessão com a criação de cargos comissionados, revestindo de instabilidade atividades não compatíveis com a mutação casuística dos servidores públicos. Evitar a perda do conhecimento técnico essencial ao cumprimento de atividades públicas dotadas de especificidades e afastar a possibilidade de alteração do quadro de pessoal a cada nova eleição ou alternância de poder consubstancia um dos aspectos que justificou a regra do artigo 37, V da Constituição da República. Soa absurdo que determinados órgãos tenham milhares de cargos comissionados e menos de uma centena de cargos efetivos, quando a maior parte das atribuições é de natureza pública, técnica e constante na estrutura do Poder em questão.
Advirta-se que o fato de a criação dos cargos se dar por lei não significa isenção quanto ao cumprimento das exigências constitucionais, destacando-se a natureza de direção, assessoramento e chefia admitidas, de modo exaustivo, para as atividades dos cargos comissionados. Em pleno século XXI, não há que isentar a discricionariedade política presente no poder de legislar dos diversos limites que condicionam seu exercício, em especial os previstos, de modo expresso, na própria Constituição. Destarte, quando da criação de cargos comissionados, é preciso evidenciar a necessidade da sua instituição e o cumprimento de normas como a do inciso V do artigo 37 da CR.
O Supremo Tribunal Federal vem declarando a inconstitucionalidade de cargos comissionados criados sem relação com atribuições de chefia, assessoramento e direção:
“Os cargos em comissão criados pela Lei nº 1.939/1998, do Estado de Mato Grosso do Sul, possuem atribuições meramente técnicas e que, portanto, não possuem o caráter de assessoramento, chefia ou direção exigido para tais cargos, nos termos do art. 37, V, da Constituição Federal. 3. Ação julgada procedente.”[4]
Mais do que isso, o STF tem demonstrado preocupação com o equilíbrio entre o número de cargos comissionados e cargos efetivos, excluindo a razoabilidade do número de cargos em comissão superar o de cargos efetivos, senão vejamos:
“ADI e Criação de Cargos em Comissão – 1
O Tribunal julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB para declarar a inconstitucionalidade do art. 5º, caput, e parágrafo único; art. 6º; das Tabelas II e III do Anexo II e das Tabelas I, II e III do Anexo III; e das expressões “atribuições”, “denominações” e “especificações” de cargos contidas no art. 8º da Lei tocantinense 1.950/2008, que, ao dispor sobre a organização da estrutura básica do Poder Executivo, criou mais de 35 mil cargos em comissão. Entendeu-se que a norma impugnada teria desrespeitado os princípios da proporcionalidade, ante a evidente desproporção entre número de cargos de provimento em comissão e os de provimento efetivo, e da moralidade administrativa, além de não observar o disposto no art. 37, V, da CF, haja vista que grande parte dos cargos criados referir-se-ia a áreas eminentemente técnicas e operacionais, não se revestindo de natureza de chefia, direção ou assessoramento, o que estaria a burlar, por conseguinte, a exigência constitucional do concurso público (CF, art. 37, II).”[5] Também afastando a criação de cargos em comissão em quantidade desproporcional, tem-se decisão do STJ.[6]
De fato, é preciso que órgãos de controle de juridicidade que atuam preliminarmente (como as consultorias jurídicas da advocacia pública) e aqueles que intervém posteriormente (como o Poder Judiciário) insistam na inadmissibilidade da criação excessiva de cargos comissionados fora das hipóteses constitucionalmente admitidas, sob pena de se ensejar custoso processo de judicialização e desgaste reiterado à imagem da estrutura do Estado, com redução de credibilidade social e prejuízos flagrantes ao interesse público.
2.3. Percentual mínimo de servidores de carreira, recrutamento amplo e restrito
O artigo 37, V da CR também estabeleceu que a investidura em cargos comissionados deve se dar em favor de “servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei”. Nesse sentido, tem-se a previsão, na Constituição, de lei que venha a disciplinar um mínimo de cargos em comissão seja ocupado por servidores de carreira. Considerando tratar-se de norma de eficácia contida, denota-se que é competência de cada ente federativo aprovar lei específica que estabeleça percentuais e condições de exercício de cargos comissionados por servidores efetivos. O objetivo é impor que parte dos cargos comissionados seja provida mediante “recrutamento restrito” e impedir que o “recrutamento amplo” seja utilizado como a única forma de nomeação para os cargos de confiança.
O “recrutamento restrito” para cargos em comissão ocorre quando o servidor já possuía vínculo anterior com a Administração Pública, estando no exercício prévio e regular de um cargo de provimento efetivo integrante da carreira. Assim ocorre quando o servidor exerce um cargo técnico em determinado órgão e é nomeado para a atividade de chefia no setor. Como estava anteriormente provido em um cargo público efetivo integrado na carreira e é nomeado para um cargo comissionado de chefia, tem-se evidente o recrutamento restrito. Já o “recrutamento amplo” existe independente de qualquer vínculo anterior do servidor com os quadros da Administração. Nessa hipótese, alguém que, por exemplo, preste consultoria em uma empresa do mercado é nomeado para um cargo comissionado de assessoramento na estrutura estatal. Trata-se do recrutamento amplo que apenas depende do atendimento dos requisitos legais vigentes para o cargo de confiança em tese.
De fato, cabe à União, a cada Estado-membro, Município e Distrito Federal especificar os requisitos dos cargos de confiança, tais como grau de escolaridade e idade mínima para o seu exercício, sempre de modo proporcional com a natureza das atribuições em questão. Tanto no caso do “recrutamento restrito” como na hipótese de “recrutamento amplo” tais requisitos devem ser atendidos. Além do atendimento dos requisitos legais, é clara a pertinência dos entes federativos estabelecerem, por lei, percentuais de “recrutamento restrito” em razão de que servidores efetivos, nomeados após aprovação em concurso público, assumirão atribuições de direção, chefia e assessoramento. Em assim ocorrendo, ter-se-á uma quantidade máxima de cargos comissionados preenchidos por pessoas estranhas aos quadros da Administração Pública, o que evitará o uso clientelista e não raras vezes eleitoreiro quando do seu provimento. Não se trata de impedir que pessoas não integrantes dos quadros do Poder Público mereçam o convite para exercer um cargo comissionado. O que se busca é somente assegurar um número mínimo de chefes, assessores e diretores que exerceram, previamente, funções técnicas de um cargo efetivo. Isso significará presença de experiência interna à Administração capaz de viabilizar soluções que sejam pertinentes aos desafios cotidianos do órgão, porquanto ter-se-á na direção, assessoramento e chefia um servidor que trouxe consigo uma compreensão real dos problemas da carreira.
Cumpre advertir que, mesmo na ausência de lei federal, estadual, municipal ou distrital que estabeleça um mínimo de cargos comissionados objeto de provimento mediante “recrutamento restrito”, a doutrina vem advertindo para outros limites quando da nomeação dos cargos comissionados, principalmente aqueles decorrentes da incidência dos princípios constitucionais como a moralidade, impessoalidade e eficiência administrativas. A “livre nomeação” seria limitada não só pelas exigências de habilitação, condições e percentuais fixados em lei, mas também pelas normas principiológicas expressas e implícitas no ordenamento jurídico, em especial no texto constitucional.
Como observa Conceição Jorge Pinto:
“A Constituição Federal previu e autorizou, a título de exceção à obrigatoriedade da aprovação prévia em concurso público, a investidura em cargo em comissão, declarado em lei de livre nomeação e exoneração, e destinado às funções de direção, chefia e assessoramento. A previsão constitucional, no entanto, não declara que esta forma de provimento possa ser realizada em desarmonia com os princípios norteadores da administração pública, ou de outros constantes do texto constitucional. Assim, o que ato de nomeação pode ser declarado nulo por inconstitucionalidade, com a devida responsabilização da autoridade pública da qual emanou, se afrontar disposições e princípios constitucionais, entre estes: da moralidade, da impessoalidade, da eficiência, da legalidade, da isonomia. Essa análise será baseada nas circunstâncias nas quais se deu a nomeação e, principalmente, nas motivações do ato.”[7]
A ideia é a de que o fato de se excluir o concurso público como procedimento seletivo obrigatório e assegurar liberdade para a Administração selecionar aquele que será o servidor comissionado responsável pela chefia, direção ou assessoramento não autoriza descumprimento dos princípios e regras constitucionais, sob pena da discricionariedade transmutar-se em arbitrariedade. Assim sendo, é mister cumprir a exigência constitucional de moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Outrossim, há regras como o art. 84, XIV da CR que outorga competência do Presidente da República para nomear, após aprovação pelo Senado Federal, o Procurador Geral da República, além do Presidente e os diretores do Banco Central. Também prescrições de natureza específica há para os cargos de assessoramento e consultoria jurídicas que, no âmbito federal e estadual, foram reservados pelos artigos 131 e 132 da Constituição aos Advogados da União e aos Procuradores do Estado aprovados em concurso público, excluída a nomeação discricionária para cargos comissionados, consoante orientação jurisprudencial do STF (ADI’s nºs 159, 881, 1.679, 2.581, 2.682 e 4.261). A “livre nomeação” também não afasta a necessidade de cumprimento de normas legais que, em cada esfera da federação, estabeleçam restrições. Se um dispositivo de lei excepcionar uma determinada situação, proibindo que, nela, ocorra nomeação para o exercício de cargos comissionados, o provimento estará vedado nas condições delineadas. Assim, se um artigo de lei municipal impedir o exercício de chefia por parente de primeiro grau de servidores públicos, é imperioso não nomear para o cargo comissionado de chefia alguém que seja pai de um servidor efetivo lotado naquele órgão.
Pode-se afirmar, por conseguinte, que a “livre nomeação”, em se tratando de cargos comissionados, não exclui a necessidade de cumprimento das normas da Constituição e da legislação de regência. O mesmo se afirma em relação às denominadas “funções de confiança” que, com base no artigo 37, V da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98, devem ser exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo.
3. Funções comissionadas
Quanto às funções comissionadas, ainda não se encontram seguros e uníssonos parâmetros conceituais fixados pela doutrina e aptos a defini-la. Atualmente, há quem defenda que a distinção entre cargos em comissão e funções de confiança seria apenas de grau, não existindo diferença ontológica entre tais categorias, eis que ambas estariam destinadas às atribuições de direção, chefia e assessoramento, indistintamente. Assim entendem Márcio Barbosa Maia e Ronaldo Pinheiro Queiroz que asseveram:
“Os cargos em comissão representam as mais elevadas responsabilidades a serem exercidas sob a fidúcia da autoridade nomeante e, em linha de princípio, podem recair sobre quaisquer destinatários, servidores ou não, desde que preencham as condições legais ou regulamentares preestabelecidas pelo Poder Público. Por outro lado, a legislação infraconstitucional deverá contemplar uma reserva de tais cargos para os servidores organizados em carreira (CF/88, art. 37, V).
As funções de confiança, de outra banda, aparecem na estrutura administrativa escalonadas imediatamente abaixo dos cargos em comissão e são exclusivas dos servidores ocupantes de cargo efetivo de qualquer esfera governamental. Note-se que, tanto os servidores ocupantes de cargos organizados em carreira, quanto os ocupantes de cargos isolados, poderão assumir funções de confiança, pois a única exigência constitucional diz respeito, tão-só, à natureza efetiva do respectivo ato de provimento.”[8]
Com maior solidez, tem-se o entendimento de que, quando determinadas tarefas de assessoramento, de chefia e de direção são de tal relevância que se justifica as enfeixar em uma designação única de cargo comissionado, cria-se o cargo por lei, de modo a viabilizar o seu provimento por servidor que já integre, ou não, a carreira. O servidor nomeado assumirá o exercício das atividades do cargo comissionado e receberá a remuneração pertinente ao mesmo, fixada em lei específica. Na hipótese de funções de confiança, as responsabilidades mencionadas caracterizam atribuições diferenciadas das funções inerentes aos cargos de provimento efetivo e serão exercidas por um servidor efetivo já integrante do quadro de pessoal do Estado. Impõe-se esclarecer, contudo, que tais funções não são reunidas e denominadas, com especificidade, em um cargo público criado por lei e, em regra, justificam somente o pagamento de vantagem remuneratória adicional à remuneração prevista para o cargo efetivo ao qual anteriormente já estava vinculado o servidor.
Com efeito, a doutrina pátria entende que a função de confiança consiste na assunção de atribuições diferenciadas e de maior responsabilidade por parte do ocupante de um cargo de provimento efetivo, ao que corresponde o pagamento de uma gratificação pecuniária. Nesse sentido, ela não consiste numa posição jurídica equivalente a um cargo público, mas na ampliação das atribuições e responsabilidades de um cargo de provimento efetivo, mediante uma gratificação pecuniária. Não se admite o conferimento de tal benefício ao ocupante de cargo em comissão, na medida em que a remuneração correspondente abrange todas as responsabilidades e encargos possíveis.[9]
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a instituição de funções comissionadas no âmbito da União, decidiu que somente podem ser exercidas por servidores providos em cargos efetivos. O Ministro Relator Sepúlveda Pertence frisou a irrelevância de funções comissionadas terem sido designadas, por dispositivo de lei federal, como cargos em comissão de modo a permitir que fossem conferidas tanto a servidor de carreira quanto a pessoas sem vínculos com a Administração. Fixou, ainda, a inadmissibilidade de se burlar o artigo 37, V da Constituição cujo objetivo é garantir o acesso dos servidores de carreira às altas atividades dos quadros funcionais da Administração Pública.[10]
A própria doutrina nacional já havia advertido que a regra do artigo 37, V da CR tinha por objetivo evitar que a instituição de funções de confiança para dedicarem-se a amigos – afilhadismo. Referida cautela prevista na Constituição afigura-se necessária, considerando-se que a “Função de confiança é aquela que se caracteriza por ser destinada ao provimento de agentes que atendem a uma qualidade pessoal que o vincula, direta e precariamente, a determinadas diretrizes políticas e administrativas dos governantes em determinado momento.[11]
Denota-se, assim, que a designação de servidor efetivo para o exercício função comissionada e a nomeação para cargos de confiança devem obediência às normas constitucionais, quer tenham natureza principiológica, quer se trate de regra disposta no texto da CR. Isso afigura-se especialmente relevante quando se trata do momento inicial em que se vincula o servidor a um cargo de confiança ou função comissionada. Afinal, o modo de seleção de um agente público está intrinsecamente ligado à própria efetividade da atividade da Administração Pública. Uma escolha que permite a designação de alguém que não detém capacidade meritória suficiente para o exercício de atividades tão importantes como assessoramento, direção e chefia coloca em risco a própria estrutura do Estado.
4. A importância da constitucionalidade na formação do quadro de pessoal de direção, assessoramento e chefia
No direito comparado, Rafael Entrena Custa lembra que, se o êxito ou o fracasso de uma Administração vem determinado não somente pelas leis que a regulam, senão, fundamentalmente, pela qualidade do pessoal que a ela se integra, está claro que poucos aspectos de uma política da função pública revestirão na prática tanta importância como a seleção dos funcionários públicos e sua preparação e aperfeiçoamento para que em cada momento possuam os conhecimentos e a experiência necessários para o adequado desenvolvimento das tarefas que se lhes encomendam.[12] Com efeito, é preciso que se respeite a juridicidade, que sejam assegurados transparência, publicidade e mérito nos modos de seleção para determinar a idoneidade na função a ser cumprida[13]. Isso nas atividades mencionadas no artigo 37, V da CR consubstancia necessidade inarredável e desafio do ponto de vista da exeqüibilidade. Afinal, a liberdade quando da nomeação para o cargo comissionado e designação de servidor efetivo para função comissionada é necessária em face da confiança que deve existir entre a autoridade nomeante e o servidor. Simultaneamente, é preciso definir os contornos que limitam tal discricionariedade, a fim de que sejam evitados desvios que comprometam a própria eficácia administrativa. Como bem observa Luís S. Cabral Moncada,
“O modo como está organizada a Administração e o teor (técnico) da respectiva actividade material, numa perspectiva objectiva, são vitais para a efectividade dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, e repercutem-se imediatamente no todo social e não apenas nas esferas jurídicas individuais.”[14]
No Brasil, um dos maiores desafios refere-se a assegurar, quando da incorporação de um servidor aos quadros da Administração, que o mesmo satisfaça o mínimo necessário ao exercício das atividades, excluindo vícios como nepotismo, corrupção, desvio de finalidade, excessos ou insuficiências. Inconstitucionalidades precisam ser combatidas e isso se faz com segurança jurídica e apreço técnico às exigências do ordenamento em vigor.
[1] ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 303-304.
[2] ZIMMER JÚNIOR, Aloísio. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Método, 2009, p. 424.
[3] MAIA, Márcio Barbosa e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 69.
[4] ADI n. 3706-MS, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno do STF, DJe de 04.10.2007.
“É inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuem caráter de assessoramento, chefia ou direção e que não demandam relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico, tais como os cargos de Perito Médico-Psiquiátrico, Perito Médico-Clínico, Auditor de Controle Interno, Produtor Jornalístico, Repórter Fotográfico, Perito Psicológico, Enfermeiro e Motorista de Representação. Ofensa ao artigo 37, II e V da Constituição federal.
Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos incisos XI, XII, XIII, XVIII, XIX, XX, XXIV e XXV do art. 16-A da lei 15.224/2005 do Estado de Goiás, bem como do Anexo I da mesma lei, na parte em que cria os cargos em comissão mencionados.” (ADI nº 3.116-AP, rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno do STF, noticiado no Informativo 623, Informativo 630 do STF)
Confira-se, também: ADI 1.269-GO, rel. Min. Celso de Mello, Pleno do STF, DJe de 27.08.2018
[5] ADI e Criação de Cargos em Comissão – 2
Por fim, tendo em conta que os cargos criados pela Lei 1.950/2008 constituem mais da metade dos cargos da Administração Pública do Estado do Tocantins, sendo que alguns se referem a atividades estatais essenciais aos cidadãos, que não poderiam ser onerados pela ausência da prestação em setores sensíveis como os da educação, da saúde e da segurança pública, fixou-se o prazo de 12 meses, a contar da data deste julgamento, a fim de que o Poder Executivo reveja as nomeações feitas quanto aos cargos criados pelas normas declaradas inválidas, desfazendo-as e substituindo-as pelo provimento dos cargos de igual natureza e de provimento efetivo vagos, mediante realização de concursos públicos ou pela criação de novos cargos, de provimento efetivo, para o desempenho das funções correspondentes às entregues a ocupantes de provimento comissionado com base na lei impugnada. Determinou-se, também, a remessa de cópia do processo e do acórdão ao Ministério Público estadual e ao Conselho Nacional do Ministério Público. Vencidos, no ponto, os Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, que não fixavam nenhum prazo. Alguns precedentes citados: ADI 2551 QO-MC/MG (DJU de 20.4.2006); RE 365368/SC (DJU de 29.6.2007); ADI 3706/MS (DJE de 5.10.2007); ADI 3233/PB (DJU de 14.9.2007); ADI 2661 MC/MA (DJU de 23.8.2002); ADI 3232/TO (DJE de 3.10.2008); ADI 3983/TO (DJE de 3.10.2008); ADI 3990/TO (DJE de 3.10.2008)” (ADI nº 4.125-TO, rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno do STF, Informativo 590 do STF).
[6] No caso, o acórdão tem a decisão final firmada em aspectos processuais, com menção ao mérito do julgamento de origem: (Agravo Interno no Agravo em REsp n. 254.890-SE, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1@ Turma do STJ, DJe de 30.10.2018).
[7] PINTO, Conceição Jorge. Cargos em comissão. Da contratação motivada pela capacitação técnica ao nepotismo e ao clientelismo. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2122, 23 abr. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12682>. Acesso em: 07 maio 2010 ,sem destaque no original.
[8] MAIA, Márcio Barbosa e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 51.
[9] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 594.
[10] MS nº 25.282-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno do STF, julgamento em 15.12.2006.
[11] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 177-178.
[12] CUESTA, Rafael Entrena. Curso de derecho administrativo. v. 1/2. 11ª ed. Reimp. Madrid: Editorial Tecnos, 1996, p. 272-273.
[13] COMADIRA, Julio R. Derecho administrativo: acto administrativo. Procedimento administrativo. Otros Estudios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2003, p. 632.
[14] MONCADA, Luís S. Cabral. A relação jurídica administrativa: Para um novo paradigma de compreensão da actividade, da organização e do contencioso administrativos. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 549.
Ótimo artigo!
Parabéns pelo trabalho!