1. Ponderações conceituais sobre licitação e competência legislativa
Para fins de adequado enquadramento jurídico, entende-se irrelevante o nome formalmente utilizado para designar o vínculo firmado entre um ente ou uma entidade pública e uma empresa privada: se há um acordo com obrigações recíprocas previstas para ambas as partes, tem-se um contrato que, sujeito ao regime administrativo, deve obediência ao ordenamento constitucional e legal de regência.
Em assim sendo, é mister fixar que o procedimento licitatório caracteriza-se como um meio apto a viabilizar que as necessidades públicas sejam atendidas, antecedendo a prestação de serviços, a aquisição de bens móveis e imóveis e a realização de obras públicas. Licitar consiste num dever que, no Brasil, decorre de expressa determinação constitucional (artigo 37, XXI da CR) e legal (Leis Federais nº 8.666, 10.520, 13.303, dentre outras), antes de serem firmados os contratos administrativos. É pacífico o entendimento de que, se a licitação é cabível e necessária, tem-se como essencial a sua realização[1]. Confira-se, nessa linha de raciocínio, o entendimento dos órgãos de controle externo:
“13. Com razão, a previsão constitucional da realização de licitações públicas busca garantir que as contratações efetuadas com recursos públicos ocorram de acordo com os princípios constitucionais pertinentes (moralidade, impessoalidade, isonomia, economicidade, dentre outros) , tutelando a lisura das contratações públicas.
- Assim, o melhor entendimento que busca concretizar a vontade da lei e impedir o seu desvirtuamento é aquele que entende o termo ‘licitação’ como o conjunto de todos e quaisquer procedimentos praticados pela administração pública que importem contratação, garantindo que as contratações públicas ocorram de acordo com os princípios constitucionais aplicáveis.”[2]
Em mais de uma oportunidade já se invocou o artigo 22, XXVII da CR que, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998 (publicada em 05.06.98), prevê a competência privativa da União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III”.
A despeito das dificuldade conceituais, considerando a noção predominante de “normas gerais”, não há como negar que definir os casos em que a licitação se impõe conforme uma das modalidades consagradas no ordenamento e as hipóteses em que se admite contratação direta (seja um caso de inexigibilidade de licitação, seja um caso de dispensa de licitação) consubstancia aspecto fundamental do instituto, merecedor de tratamento homogêneo e uniforme em todos os níveis da federação (União, Estados, Municípios e DF). Assim sendo, é preciso observar a competência legislativa federal para editar normas gerais sobre a matéria, sendo inviável que Estados ou Municípios extrapolem os limites da sua atuação legislativa, invadindo esfera atribuída à União pelo artigo 22, XXVII da CR.
Denota-se do ordenamento (ainda) vigente que, no caso das contratações diretas, a serem realizadas sem a observância das modalidades licitatórias (concorrência, tomada de preços, convite, concurso, leilão e pregão), tem-se dispositivos federais diversos que regulamentam as hipóteses em que é legítima a dispensa de licitação, inexigibilidade ou licitação dispensada (artigos 24, 25 e 17 da Lei Federal nº 8.666, artigo 6º da Lei Federal n.º 10.847/2004, artigo 30, da Lei Federal nº 13.303/16 v.g.). Especificamente em relação à contratação direta, tem-se norma geral federal expressa nos incisos do artigo 24 da Lei Federal nº 8.666 em vigor (enquanto não aprovado o novo Estatuto de Licitações, por hora em trâmite no Congresso Nacional). Outrossim, se a competição é inviável, tem-se a figura da inexigibilidade de licitação consagrada no artigo 25 da Lei Federal nº 8.666. Por fim, destaca-se que o artigo 26 da Lei Federal nº 8.666/93 estabelece o procedimento a ser observado nos casos de dispensa e de inexigibilidade de licitação, fixando alguns dos aspectos formais necessários antes de se ultimar a contratação direta. Observe-se que os marcos conceituais do Estatuto Licitatório de 1993 vêm sendo observado na legislação superveniente, como, p. ex., o conceito de inexigibilidade preservado no “caput” do artigo 30 da Nova Lei das Estatais e a noção de licitação dispensável mantida no artigo 29 da mesma Lei Federal nº 13.330/16.
Frise-se que, no Brasil, a regra para as contratações públicas é a de que os acordos administrativos sejam firmados após regular procedimento licitatório que observe a modalidade adequada. A jurisprudência e a doutrina insistem na obrigatoriedade de licitar como um dever inafastável à luz da CR/88 e da legislação infra-constitucional. Com efeito, sempre que cabível a licitação, é essencial a sua realização[3]. Confira-se o seguinte julgado do TCU:
“7.6. A regra, portanto, é a obediência ao devido procedimento concorrencial, visando ao atendimento de dois outros princípios relevantes nas relações encetadas entre o Estado e os administrados, a saber: o princípio da isonomia e o da indisponibilidade do interesse público. O primeiro expressa o direito que todos têm de ofertar bens e serviços ao Estado. O segundo revela que a contratação deve proporcionar maior vantagem para a Administração.
7.7. Se a regra é a disputa entre os diversos interessados em fornecer bens e serviços ao ente estatal, a exceção há de estar autorizada na norma regente do procedimento. A Lei n. 8.666/1993, art. 25, especifica os casos em que o agente poderá utilizar-se da inexigibilidade licitatória (…)”.[4]
Mesmo novos diplomas legais, já sob influência de um marco flexibilizador do procedimento que antecede os contratos, fixam a obrigatoriedade da licitação como regra, sendo nesse sentido o preceito do artigo 28, “caput” da Nova Lei das Estatais. Atentando ao presente contexto, as recomendações das Cortes de Contas têm sido para os entes federativos e entidades administrativas, quando da análise da pertinência da contratação direta por qualquer das suas espécies, realizarem “planejamento de suas contratações a partir de dados históricos e de estimativas futuras, de modo a permitir a realização de devido procedimento licitatório, na modalidade adequada, com vistas à contratação de serviços, obras e aquisições, evitando o fracionamento das despesas e fuga à licitação, em cumprimento ao art. 37, XXI, da Constituição Federal”. O objetivo é evitar a inobservância das regras dispostas no ordenamento e que fixam pressupostos específicos a serem atendidos para que se possa excepcionalmente firmar o vínculo direto com o particular, sem passar por uma das modalidades licitatórias da legislação vigente.[5]
2. Condições para contratação direta
No atual contexto normativo, as hipóteses de contratação direta (dispensa ou inexigibilidade licitatória) são exceção que, como tal, não admitem interpretação extensiva, nem mesmo ampliação das hipóteses autorizativas em outras esferas da federação ou no exercício do poder regulamentar ou regulatório e muito menos desconsideração do procedimento a ser observado. Deve se observar a máxima exceptiones sunt strictissimae interpretationes segundo a qual disposições especiais devem ser interpretadas restritivamente. Nos termos do lúcio magistério de Carlos Maximiliano, “quando um ato dispensa de praticar o estabelecido em lei, regulamento, ou ordem geral, assume o caráter de exceção, interpreta-se em tom limitativo, aplica-se às pessoas e aos casos e tempos expressos, exclusivamente”.[6] Daí o fundamento para decisões dos Tribunais Superiores assim determinando:
“2. No âmbito das contratações pelo Poder Público, a regra é a subordinação do administrador ao princípio da licitação, decorrência, aliás, do art. 37, XXI, da Constituição Federal. Tratando-se, portanto, a inexigibilidade de licitação de exceção legal, é certo que sua adoção, pelo gestor público, deverá revestir-se de redobrada cautela, em ordem a que não sirva de subterfúgio à inobservância do certame licitatório.”[7] A cautela é reiteradamente invocada pela jurisprudência do país:
“2 – A contratação de serviços pela Administração Pública deve ser precedida de licitação, ressalvados os casos especificados na legislação (art. 37, XXI, CF). 3 – A opção de dispensa ou inexigibilidade de licitação há de ser feita com cautela e observância das regras e princípios a que se sujeitam a Administração Pública, pena de contratações inadequadas e nocivas ao interesse da coletividade.”[8]
As situações em que é cabível dispensa de licitação ou licitação inexigível tornam imperiosa expressa previsão legal em dispositivo federal de âmbito nacional, não sendo lícito ignorar as exigências procedimentais veiculadas nas normas gerais, exatamente por se tratar de situação excepcional e que se relaciona com o aspecto básico da contratação, exigindo tratamento uniforme na Administração direta e indireta da União, dos Estados, do DF e dos Municípios.
Cumpre sublinhar que o fato de se falar em “contratação direta” como nas hipóteses previstas no artigo 24 da Lei nº 8.666 ou em “inexigibilidade” com base no artigo 25 do mesmo diploma não significa que as partes podem diretamente firmar um acordo veiculador de obrigações recíprocas. Há um procedimento preliminar a ser observado, de modo que sejam asseguradas cautelas mínimas protetivas do interesse público. Nessa mesma linha de raciocínio, Marçal Justen Filho ensina:
“Nas etapas iniciais, a atividade administrativa será idêntica, seja ou não a futura contratação antecedida de licitação. Em um momento inicial, a Administração verificará a existência de uma necessidade a ser atendida. Deverá diagnosticar o meio mais adequado para atender ao reclamo. Definirá um objeto a ser contratado, inclusive adotando providências acerca da elaboração de projetos, apuração da compatibilidade entre a contratação e as previsões orçamentárias. Tudo isso estará documentado em procedimento administrativo, externando-se em documentação constante dos respectivos autos.”[9]
A doutrina tem assentado que mesmo não sendo caso de observância das especificidades procedimentais inerentes às modalidades licitatórias, “a contratação direta deve obediência aos princípios do Direito Administrativo, exigindo, por exemplo, a realização de um procedimento formal, destinado a justificar a escolha de tal contratação e delineamento de seus parâmetros e objetivos”[10]. Com efeito, é preciso cumprir uma fase instrutória comum na etapa preliminar do procedimento de contratação direta. O professor Jessé Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti asseveram que “peças e documentos devem ser entranhados nos autos pela Administração que especifiquem o objeto contratado, estimando-lhe o valor de mercado e compromissando esse valor em correspondência às disponibilidades orçamentárias, além da autorização a ser colhida da autoridade competente.”[11]
Fica clara a necessidade de observar inúmeros trâmites antes da contratação direta, uma vez que, segundo o artigo 26, “caput” da Lei Federal nº 8.666, com a redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.05.98, as dispensas previstas nos incisos III e seguintes do art. 24 e as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, devem ser necessariamente justificadas e comunicadas dentro de três dias a autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de cinco dias, como condição para eficácia dos atos. Outrossim, do parágrafo único do artigo 26 destacam-se as exigências de que a contratação direta seja instruída com a razão da escolha do fornecedor ou executante (inciso II) e justificativa do preço (inciso IV).
Daí se concluir ser inviável afirmar que a contratação direta exclui um procedimento licitatório, sendo certo que casos de dispensa como as hipóteses do artigo 24 da Lei Federal nº 8.666 e de inexigibilidade do artigo 25 do mesmo Estatuto envolvem, na verdade, um procedimento especial e simplificado para seleção do contrato mais vantajoso para a Administração Pública. Também assim leciona Luiz Manoel Gomes Júnior ao lembrar que “não basta que haja a afirmativa de que seria possível a dispensa ou inexigibilidade. Há necessidade de um plus, no caso, uma justificativa plausível (…)”. Indispensável um prévio procedimento administrativo justificando as razões da inexigibilidade ou da dispensa e a escolha do contratado.[12] O Tribunal de Contas da União segue insistindo que as justificativas para dispensa de licitação devem “estar circunstancialmente motivadas, com a clara demonstração de ser a opção escolhida, em termos técnicos e econômicos, a mais vantajosa para a administração, consoante determina o art. 26, parágrafo único, da Lei 8.666/1993”.[13]
Tem-se manifesta, por conseguinte, a necessidade de um rito procedimental em que os pressupostos enumerados para que a dispensa ou para a inexigibilidade ocorra sejam evidenciados, ao que se acresce a justificativa de escolha das condições de contratação e daquele que será o contratado, com evidência de que o preço se mostra adequado, porquanto indispensável a vantajosidade do negócio. Nesse sentido, tem-se inúmeros acórdãos reiterando a necessidade de justificativa do preço e do contratado[14], inclusive das Cortes de Contas:
“9.8. A contratação direta pressupõe o cumprimento de todas as etapas e formalidades previstas na Lei 8.666/93. O orçamento detalhado dos serviços é necessário para orientar o administrador público na compatibilização das disponibilidades orçamentárias e financeiras e na formação dos preços dos serviços objeto da futura contratação. Na contratação em questão, o projeto básico elaborado pela Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético/MME (fls. 04/18) apresentou apenas uma descrição sumária dos estudos a serem desenvolvidos, sem a respectiva estimativa de custos, contrariando a Lei de Licitações e Contratos (art. 7º. § 2º , inciso II, c/c § 9º) que determina a elaboração de um levantamento minucioso acerca dos serviços a serem contratados e a apresentação de orçamento detalhado em planilhas que demonstrem a composição unitária, no menor nível possível, de todos os componentes envolvidos, de modo a configurar a razoabilidade do valor da contratação. (…)”[15]
O Superior Tribunal de Justiça, a propósito, já decidiu:
“A contratação de prestação de serviço sem exigência de licitação é permitida pela Lei 8.666/93, devendo-se observar, para tanto, o disposto no art. 25, II, conjugado com o art. 26, os quais exigem seja a contratação precedida do processo de dispensa instruído, no que couber, com: I) a caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso; II) a razão da escolha do fornecedor ou executante; III) justificativa do preço; e IV) documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.”[16]
A incidência do artigo 38 da Lei Federal nº 8.666 não vem sendo excluída nos procedimentos de contratação direta. Segundo o citado dispositivo o procedimento de licitação será “iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente: VI – pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade.” Daí resulta necessária a formalização da dispensa de licitação ou da inexigibilidade em processo administrativo próprio, contendo os elementos necessários à demonstração da hipótese incidente em cada realidade.
3. Procedimentos e etapas necessárias à contratação direta
Observando-se as lições doutrinárias sobre a matéria, pode-se afirmar que a contratação direta implica a existência de requisição do objeto, com sua descrição, seguindo-se a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo o ato de designação da comissão de licitação, a autorização respectiva para o serviço (art. 38, “caput”). Também é preciso que haja elaboração da minuta do contrato a ser firmado. A esse propósito, sublinha-se que, além do parecer técnico específico para o caso em questão, é mister seja exarado parecer jurídico diante da minuta de contrato em que conste: 1) justificativa da dispensa (art. 26, “caput”), 2) razão da escolha do fornecedor (art. 26, II), 3) justificativa do preço (art. 26, III). A decisão sobre a contratação direta, pela autoridade competente, deve ser motivada, comunicando-se à autoridade superior (art. 26, “caput”). Uma vez ratificada a dispensa ou inexigibilidade (artigo 26, “caput”), cumpre publicar a decisão ratificadora (art. 26, “caput”). Além disso, é preciso colacionar prova da regularidade fiscal junto ao FGTS e à Seguridade Social, por força de exigência constitucional. Só então tornar-se-á possível a assinatura do termo do contrato, nos termos do art. 38, X da Lei Federal nº 8.666.
Não só os Tribunais e as Cortes de Contas, mas a doutrina também vem insistindo na realização cautelosa das fases preliminares à contratação direta. Jessé Torres e Marinês Restelatto escrevem que “Todos os passos dados pela Administração objetivando contratação direta, ou seja, sem licitação, devem estar documentados nos autos de um processo administrativo bem instruído e articulado, formando consistente conjunto apto a demonstrar a regularidade da contratação.” Advertem que não se trata de excessivo formalismo, já que o princípio do devido processo legal rege tanto o procedimento licitatório quanto o da contratação direta, donde se infere consubstanciar-se garantia em favor da certeza, segurança e transparência da Administração na gestão e condução dos seus atos e organização. Concluem que se impõe a formalização das situações que tipificam exceção à regra “Tanto que, embora a cabeça do art. 38 não mencione a contratação direta, o seu inciso VI o faz expressamente. O art. 26, parágrafo único, trata inequivocamente, do processo de dispensa e inexigibilidade de licitação.”[17]
Destarte, além de autuar e numerar o procedimento (aspectos formais) tal como se realizou nos autos em anexo, é preciso que se justifique a contratação a se realizar diante dos termos da minuta contratual e seus anexos, com demonstração da situação fática que a enseja, das razões de escolha do prestador do serviço, a viabilidade operacional de execução das fases nos prazos previstos e da razoabilidade do preço pago na espécie.
Confira-se o ensinamento de Vera Lúcia Machado D’Avila ao assentar que a justificativa do preço e as exigências do art. 26 “estão a compor um mínimo exigido da autoridade contratante para dar seguimento e validade ao procedimento administrativo que vise a declarar e justificar a dispensa ou a inexigibilidade de licitação, com o claro comando normativo que demonstra que tais ocorrências (dispensa/inexigibilidade) não são sinônimo de isenção de um procedimento absolutamente formal que deve ser seguido pela Administração, sob pena de nulidade dos atos praticados.”[18]
O enunciado que resulta de decisão do TCU consagra a ideia segundo a qual “A justificativa do preço em contratações diretas (art. 26, parágrafo único, inciso III, da Lei 8.666/1993) deve ser realizada, preferencialmente, mediante: (i) no caso de dispensa, apresentação de, no mínimo, três cotações válidas de empresas do ramo, ou justificativa circunstanciada se não for possível obter essa quantidade mínima; (ii) no caso de inexigibilidade, comparação com os preços praticados pelo fornecedor junto a outras instituições públicas ou privadas.”[19] Especificamente em se tratando de inexigibilidade de licitação, a justificativa do preço “pode ser feita mediante a comparação do valor ofertado com aqueles praticados pelo contratado junto a outros entes públicos ou privados, em avenças envolvendo o mesmo objeto ou objeto similar.”[20]
4. Exigências fiscais e orçamentárias
A necessidade do prévio conhecimento do valor a ser despendido decorre da própria Lei Federal nº 8.666 que no art. 7º, § 2º, II e III exige indicação dos recursos orçamentários e no art. 38 exige, para início do processo licitatório, indicação de recursos próprios o que faz pressupor estudo prévio de estimativa do valor a ser despendido.
Além disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal torna imprescindível a declaração do ordenador de despesa de que a despesa tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias, por força do art. 16, II c/c § 4º (LC nº 101). Registre-se que o § 3º do art. 1º, I, b da LRF determina a incidência desse diploma no tocante à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, incluindo-se as respectivas administrações diretas, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes. Sendo assim, certo é que atinge essas entidades o que dispõe o artigo 16 da LRF, aplicável às licitações e contratos administrativos firmados: a criação (assunção de nova obrigação), a expansão (aumento quantitativo) ou o aperfeiçoamento (aumento qualitativo) da ação governamental deverão ser acompanhados de novos documentos, acrescentados à fase interna do certame licitatório: a) segundo o inciso I do artigo 16, a estimativa do impacto orçamentário-financeiro daquele aumento de despesa no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes (o que objetiva cumprir os cronogramas de redução das despesas e manter o equilíbrio entre as despesas e as receitas); b) nos termos do inciso II, a declaração do ordenador de despesa de que o aumento está compatibilizado às três instâncias básicas do processo orçamentário (Lei Orçamentária, Lei de Diretrizes e Plano Plurianual). A única exceção a essas exigências veiculada no próprio texto da própria LRF é a chamada despesa irrelevante, ou seja, as contratações cujos valores sejam inferiores aos de dispensa de licitação.
O Tribunal de Contas da União vem ressaltando:
“Da mesma maneira, para a execução de uma despesa com o mínimo de planejamento, o gestor haveria de considerar todos os recursos necessários a decorrer da obra a ser executada, incluindo os possíveis processos de desapropriação. O art. 38 e o art. 7º, § 2ª, inciso III da Lei de Licitações assim o impõe. A Lei de Responsabilidade Fiscal determina, inclusive, a estimativa de impacto orçamentário-financeiro para os dois exercícios subsequentes àquele da execução da despesa (e isto inclui as despesas decorrentes da execução da obra, como é o caso das desapropriações). A fase interna da licitação se destina, dentre outros aspectos, a definir gastos a serem realizados por ocasião da execução do contrato de obra, compra ou serviço.”[21]
Segundo Mauro Roberto Gomes de Mattos[22], na fase preparatória determinados procedimentos deverão ser cumpridos, para que seja realizada a despesa pública, sem que ocorra penalização para o gestor público. Essas providências novas são impostas, sendo certo que aos incisos I e II do art. 16 da LRF deverão se agregar às exigências já consignadas nos arts. 7, 14 e 38 da Lei nº 8.666.
Tais dispositivos buscam que não se realize atividade pública que importe dispêndio de recursos públicos sem que haja recursos orçamentários para a despesa futura. Também Joel de Menezes Niebuhr explica que “A Administração Pública não pode contratar sem que haja previsão orçamentária para cumprir as obrigações assumidas, o que decorre até mesmo da boa-fé com que se presume sejam travadas as suas relações jurídicas.”[23] Outra não é a lição da doutrina: “Apurada a estimativa do valor do objeto por meio de ampla pesquisa de mercado, segue-se a verificação da previsão de recursos orçamentários para a futura despesa. A autoridade competente deve previamente verificar a disponibilidade financeira e orçamentária sempre que a atividade importe dispêndio de recursos públicos. Por isso que tal não será quando a Administração não assumir obrigação financeira de custeio de atividade, como na hipótese de licitação dispensada do art. 17, § 2º, I, da Lei nº 8.666/93. (…) A regra do art. 60 da Lei nº 4.320/64 impede compra de bens, execução de obra ou prestação de serviço sem o prévio empenho ou provisão orçamentária. Como o empenho é uma dedução do orçamento vigente, a cada empenho tem-se um bloqueio formal da parcela envolvida, que reduz o saldo até então disponível. Infringir essa determinação legal desorienta o controle orçamentário, sujeitando a Administração Pública e seus usuários a riscos e incertezas sobre o futuro pagamento.”[24]
A Constituição da República, em seu artigo 167, determina que são vedados o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual (inciso I) e a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais (inciso II). Em se tratando de serviço que ultrapassa os limites de um exercício financeiro, será sim necessário verificar os planos plurianuais, por força do art. 57 da Lei nº 8.666. A necessidade de que o produto esteja contemplado nas metas do Plano Plurianual de que trata o art. 165 da Constituição decorre também do art. 7º, § 2º, V da Lei Federal nº 8.666.
Há um claro objetivo constitucional e legal de eliminar a possibilidade de contratar objetos não devidamente planejados e para os quais não haja recursos orçamentários previstos. O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais já pontuou:
“(…) é preciso que se demonstre a viabilidade financeira para a assunção da nova obrigação, com a possibilidade real de pagamento das obrigações assumidas durante o exercício financeiro, a fim de evitar o desequilíbrio das contas públicas (…) à Administração é vedado iniciar procedimento licitatório sem prévia dotação orçamentária suficiente para suportar a respectiva despesa, bem como sem verificar a estimativa do impacto orçamentário-financeiro da despesa a ser gerada, no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes, como também se o aumento da despesa tem adequação orçamentária e financeira com a Lei Orçamentária Anual e compatibilidade com o Plano Plurianual e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.”[25]
Vale, ainda, colacionar o seguinte julgado do TCU:
“13. Note-se que o alerta trazido pelo Acórdão 1.067/2011-Plenário refere-se à verificação da regularidade fiscal da contratada em procedimentos de compra direta para que não haja violação ao disposto no artigo 195, § 3º, da Constituição Federal, segundo o qual ‘A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios’.
- Nem a Lei 8.666/1993 nem o regulamento dos serviços sociais autônomos ou de empresas estatais pode contrariar o disposto na Constituição Federal. Observe-se o disposto no Acórdão 3.146/2010-1ª Câmara:
‘Por força do disposto no art. 195, § 3º, da Constituição Federal, que torna sem efeito, em parte, o permissivo do art. 32, § 1º, da Lei 8.666/1993, a documentação relativa à regularidade fiscal e com a Seguridade Social, prevista no art. 29, inciso IV, da Lei 8.666/1993, é de exigência obrigatória nas licitações públicas, ainda que na modalidade convite, para contratação de obras, serviços ou fornecimento, e mesmo que se trate de fornecimento para pronta entrega; essa obrigatoriedade é aplicável igualmente aos casos de contratação de obra, serviço ou fornecimento com dispensa ou inexigibilidade de licitação ex vi do disposto no § 3º do art. 195 da CF, citado.’
- Por isso, deverá ser verificada a regularidade fiscal para com a União, que administra os tributos relativos à Seguridade Social, nos termos do artigo 29, incisos I, III, e IV da Lei 8.666/1993. (…)
- Observe-se, ainda, que os atestados de regularidade fiscal e previdenciária podem ser facilmente obtidos junto aos órgãos federais responsáveis pela arrecadação, em suas páginas digitais. (…)
- A vedação à contratação de empresa em débito com a seguridade social é norma constitucional, da mesma forma que a norma que limita a habilitação às exigências técnicas e econômico-financeiras. (…)
- A exigência de regularidade fiscal não é postura que diminua a concorrência entre os fornecedores da Administração Pública, pelo contrário. Se o sistema constitucional brasileiro veda a contratação administrativa de empresas em débito com a seguridade social, o faz não só pelos danos causados às finanças públicas, mas sim para vedar a prática de custos indevidamente reduzidos, de forma desleal aos que cumprem as obrigações fiscais e sociais.”[26]
Uma vez analisados tais aspectos orçamentários, com as providências administrativas indispensáveis, e proferida a decisão pela contratação direta, é condição exigida na Lei 8.666 que haja: a) comunicação em 3 dias, à autoridade superior à que competente para autorizar a contratação direta; b) ratificação, nos 5 dias subsequentes à comunicação referida, pela aludida autoridade superior, da contratação direta. Uma vez feita a ratificação, no prazo de 5 dias promover-se-á a publicação do ato ratificador. Após a publicação, autorizada está a eficácia do ajuste, estando autorizados os seus atos de execução.
Todos esses atos que devem se realizar antes de qualquer contratação direta. Tem-se atividade de consultoria jurídica a desafiar opinião técnica que, previamente à decisão do gestor público, oriente qual melhor alternativa viável diante do contexto técnico e das normas do ordenamento. Ou seja, é preciso definir como atender a demanda inafastável de vínculo entre o Poder Público e a empresa privada, dentro dos estritos limites da ordem jurídica e sem comprometimento do interesse público.
Como bem já esclareceu o STJ, “A existência de licitação pública em descompasso com as disposições constitucionais e legais aplicáveis à espécie é ato que se reveste de finalidade contrária ao interesse público, na medida em que impede que o Poder Público faça uso de todos os mecanismos legais necessários à obtenção da melhor proposta para a prestação dos serviços ou obras a serem contratados”.[27] Referido desvio deve ser evitado em todos os procedimentos, principalmente naqueles em que o vínculo se estabelece diretamente, sem etapas de disputa típicas das modalidades licitatórias.
[1] ROMS nº 5.532-PR, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, 2ª Turma do STJ, DJU de 23.04.01, p. 123; REsp nº 529.102-PR, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJU de 10.04.06, p. 128 e Agravo de Instrumento nº 146.047, rel. Des. Antonio Cruz Netto, 5ª Turma Especializada do TRF 2ª Região, DJU de 06.03.2008
[2] Acórdão nº 1.172/2019, rel. Min. Bruno Dantas, Pleno do TCU, julgamento em 22.05.2019
[3] ROMS nº 5.532-PR, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, 2ª Turma do STJ, DJU de 23.04.01, p. 123
[4] Acórdão nº 4.034/2009, Processo nº 031.017/2007-0, rel. Min. Marcos Bemquerer Costa, 1ª Câmara do TCU
[5] Acórdão nº 3.533, 1ª Câmara do TCU, rel. Min. Bruno Dantas, julgamento em 30.04.2019
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 234
[7] REsp nº 1.275.469-SP, rel. p/ o acórdão Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma do STJ, DJe de 09.03.2015
[8] Acórdão nº 813167, relator Desembargador Jair Soares, 6ª Turma Cível do TJDF, DJE de 26.08.2014
[9] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, p. 283
[10] CHARLES, Ronny. Leis de Licitações Públicas Comentadas. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 105
[11] PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres e DOTTI, Marinês Restelatto. O devido processo legal da contratação direta: das normas gerais às regras da cotação eletrônica e do cartão corporativo – 1ª parte. Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte: Fórum, a. 7, n. 81, p.10-11, set. 08
[12] Revista dos Tribunais, v. abril de 2002, p. 172
[13] Acórdão nº 1.241, rel. Min. Marcos Bemquerer, Pleno do TCU, julgamento em 29.05.2019
[14] Apelação Cível nº 1997.37.00.001112-8-MA, 5ª Turma do TRF 1ª Região
[15] Processo nº 008.386/2005-9, Acórdão nº 2837/2008, rel. Min. Raimundo Carreiro, Plenário do TCU, DOU de 09.12.2008
[16] REsp nº 842.461-MG, rel. Min. Eliana Calmon , 2ª Turma do STJ, DJU de 11.04.07
[17] PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres e DOTTI, Marinês Restelatto. O devido processo legal da contratação direta: das normas gerais às regras da cotação eletrônica e do cartão corporativo (1ª parte). Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, Fórum, a. 7, n. 81, p. 10-12, set. 08
[18] D’AVILA, Vera Lúcia Machado. Dispensa e inexigibilidade. Formalidades exigidas. – livro. – pergunta 38 – PIETRO, Maria Sylvia Zanella di et al. Temas polêmicos sobre licitações e contratos, 3. ed. São Paulo, Malheiros
[19] Acórdão nº 1.565/2015, rel. Min. Vital do Rêgo, Plenário do TCU, julgamento em 24.06.2015
[20] enunciado a partir do Acórdão nº 2.993, rel. Min. Bruno Dantas, Plenário do TCU, julgamento em 12.12.2018
[21] Acórdão nº 3.218/2010, rel. Min. Benjamin Zymler, Pleno do TCU, DOU de 14.12.2010
[22] Revista de Direito Administrativo, v. 230, p. 374
[23] NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. São Paulo: Dialética, 2003, p. 74
[24] PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres e DOTTI, Marinês Restelatto. O devido processo legal da contratação direta: das normas gerais às regras da cotação eletrônica e do cartão corporativo (1ª parte). Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, Fórum, a. 7, n. 81, p. 29-30, set. 08
[25] Consulta 706745, rel. Conselheiro Antônio Carlos Andrada, TCEMG Sessão do dia 28.02.2007
[26] Acórdão nº 2898/2017, rel. Ministro José Múcio Monteiro, Pleno do TCU, julgamento em 12.12.2017
[27] Agravo Interno no REsp nº 1.604.421-MG, rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma do STJ, DJe de 02.08.2018
Devo agradecer. O artigo é MUITO BOM e me deu uma luz técnica sobre o assunto. Buscarei as fontes indicadas para aprofundar no assunto, mas o que está posto aqui é um excelente trabalho!
Muito obrigado.
Que retorno bacana de ler, Filipe. Desejo ótimos estudos e um bom trabalho. Meu abraço,