1.Da legitimidade de reorganização de carreiras no âmbito da Administração Pública
Na tentativa de aperfeiçoar a atuação de órgãos públicos, não é raro que entes federativos promovam reestruturação de carreiras, valendo-se do seu poder impositivo, mediante a criação e extinção de cargos, sua transformação, estabelecimento de classes, transposição de cargos para novo quadro estrutural e fixação de nova política remuneratória. O fundamento normativo para tais providências encontra-se no artigo 48, X da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32/01. Segundo o referido dispositivo, cabe ao Poder Legislativo, com a sanção do chefe do Executivo, dispor sobre a criação, transformação e extinção dos cargos empregos e funções públicas.
A transcrita norma constitucional, que em razão do princípio da simetria vincula todos os níveis da federação, fixa depender de lei a formação de novos cargos na estrutura funcional, sua eliminação ou sua transformação, ressalvada apenas a hipótese do art. 84, VI, ‘b’ da CR, dispositivo que permite ao Chefe do Executivo promover a extinção de cargo público vago, por meio de ato administrativo. Afastada a hipótese do artigo 84, VI, ‘b’ da Constituição, a criação, a disciplina, a transformação e a extinção do cargo público fazem-se necessariamente por lei, sendo nesse mesmo sentido o ensinamento de Marçal Justen Filho:
“A criação e a disciplina do cargo público faz-se necessariamente por lei no sentido de que a lei deverá contemplar a disciplina essencial e indispensável. Isso significa estabelecer o núcleo das competências, dos poderes, dos deveres, dos direitos, do modo de investidura e das condições de exercício das atividades. Portanto, não basta uma lei estabelecer, de modo simplista, que ‘fica criado o cargo de servidor público’.
Exige-se que a lei promova a discriminação das competências e a inserção dessa posição jurídica no âmbito da organização administrativa, determinando as regras que dão identidade e diferenciam a referida posição jurídica.”[1]
Com base no discurso que defende a reforma administrativa em busca maior eficiência administrativa em todos os níveis da federação, tem sido comum nas últimas décadas a transformação de cargos efetivos, mediante a extinção de cargos anteriores e simultânea criação de novos, bem como a criação de cargos com competências operacionais e técnicas, instrumentais de atividades estatais, de modo a viabilizar, com tal reestruturação, maior eficiência do Poder Público no exercício dos seus encargos. Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “Tem sido usualmente admitida na Administração a denominada transformação de cargos ‘sem aumento de despesa’, implementada por atos administrativos oriundos de autoridades dirigentes de pessoas e órgãos públicos, através dos quais se extinguem alguns cargos e se criam outros com despesa correspondente à daqueles”, ao que acresce que “o poder de iniciativa para a criação ou reestruturação funcional de cargos e carreiras se aloja no âmbito da discricionariedade de cada titular, cabendo-lhe o exame da conveniência e oportunidade para tomar aquela providência”.[2]
Trata-se, pois, de matéria reservada à decisão do Executivo, no tocante aos cargos inseridos na estrutura que lhe é inerente, com aprovação posterior pelo Legislativo, no exercício da função que lhe é atribuída pela Constituição da República. Na mesma linha de raciocínio, José Maria Pinheiro Madeira aduz:
“Poder Público Estadual, com o escopo de promover a reestruturação orgânica de seus quadros funcionais, com a modificação dos níveis de referências das carreiras para realizar correções setoriais, promulga lei que altera a nomenclatura, as classes e as referências do quadro da Fazenda, de modo a promover reclassificação de cargos na escala funcional. (…)
A Administração pode suprimir, transformar e alterar cargos públicos independentemente da aquiescência de seu titular, uma vez que o Servidor não tem direito adquirido à imutabilidade de suas atribuições, nem à continuidade de suas funções originárias; no entanto, a transformação somente pode se dar para serviços da mesma natureza, entendendo-se mesma natureza os desempenhados por servidores da mesma classe funcional.”[3] Também a jurisprudência tem acentuado que “a Administração Pública, em razão do princípio da mutabilidade do regime jurídico-administrativo vinculado ao regime de remuneração dos servidores que regem o serviço público, pode promover a reestruturação de seus cargos”, sendo esse o entendimento de doutrinadores como Hely Lopes Meirelles, segundo quem “sob o regime estatutário o Estado não firma contrato com seus servidores, mas para eles estabelece unilateralmente um regime de trabalho e de retribuição via estatutária”, pelo que “lícito lhe é, a todo tempo, alterar esse regime jurídico”.[4]
Com fulcro em tais ponderações, infere-se ser lícito a qualquer pessoa federativa dispor sobre a estrutura e organização dos seus órgãos, determinando a reestruturação orgânica dos respectivos quadros funcionais, criando novos cargos de modo a aperfeiçoar a atividade estatal, consoante critérios de conveniência e oportunidade político-administrativos. Trata-se de um instrumento capaz de promover eficiência na organização e aproveitamento nos recursos, inclusive os humanos.
Especificamente quanto às competências públicas, cabe aferir se há, ou não, no texto da Constituição da República qualquer reserva de poderes específica para a carreira em questão. Situação de exclusividade ocorre com a representação judicial e extrajudicial da União e dos Estados-membros, em razão do que determina o artigo 131 e 132 da CR. No caso de boa parte das competências estatais, diversamente do que ocorre com as carreiras dos Procuradores do Estado e dos Advogados da União, não se identifica exigência de privatividade com status constitucional, o que implica clara discricionariedade política em favor dos que podem intervir no processo legislativo, desde a sua iniciativa até a publicidade final.
Não se pode ignorar a legitimidade de se alterar o regime jurídico em que se inserem os cargos de provimento efetivo e os respectivos servidores, uma vez que a própria mutabilidade inerente ao regime estatutário evidencia a juridicidade das alterações realizadas, mormente quando o objetivo principal é o aperfeiçoamento na execução das competências públicas com a melhoria na organização das estruturas estatais. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar os Embargos Infringentes na ADI nº 1.591-ES invocou a necessidade de se dar espaço a soluções de racionalização na Administração Pública como fundamento para entender legítima a criação de nova carreira fazendária estadual, com incorporação de outras carreiras então em extinção[5]. Não foi outro o entendimento exarado ao final da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.713-DF no bojo da qual se considerou constitucional a transformação dos cargos, mediante unificação de carreiras de idênticas atribuições.[6] Confira-se, cumulativamente, o seguinte julgado do Plenário do STF:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Complementar nº 189, de 17 de janeiro de 2000, do Estado de Santa Catarina, que extinguiu os cargos e as carreiras de Fiscal de Tributos Estaduais, Fiscal de Mercadorias em Trânsito, Exator e Escrivão de Exatoria, e criou, em substituição, a de Auditor Fiscal da Receita Estadual. 3. Aproveitamento dos ocupantes dos cargos extintos nos recém criados. 4. Ausência de violação ao princípio constitucional da exigência de concurso público, haja vista a similitude das atribuições desempenhadas pelos ocupantes dos cargos extintos. 5. Precedentes: ADI 1591, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 16.6.2000; ADI 2713, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 7.3.2003. 6. Ação julgada improcedente”.[7]
Conclui-se, por conseguinte, ser admissível, nos termos da Constituição e da orientação jurisprudencial da Corte Suprema, que um ente federativo, mediante iniciativa do Chefe do Executivo, exerça a atribuição de avaliar a oportunidade e conveniência de iniciar o processo legislativo com vistas a reestruturar o quadro de órgãos e funcional que lhe integram. Cumpre que, no referido processo, sejam observados os limites formais e materiais expressos na própria Constituição e no ordenamento infra-constitucional, em face da realidade específica em que tal reestruturação ocorrerá.
Eventual reformulação que transforme dois cargos distintos, já existentes, e que crie um novo cargo reunindo as atribuições dos mesmos, sem ofensa a qualquer dispositivo constitucional, implica regularidade da atividade do Estado. A discricionariedade política que, exercida nos limites constitucionais da eficiência, moralidade e razoabilidade pode conduzir a uma nova e aperfeiçoada estrutura orgânica do Estado.
2. Do limite à reestruturação de carreiras: vedação ao provimento derivado
A principal limitação à reestruturação de carreiras vincula-se à inadmissibilidade de, por meio dela, se realizar provimento derivado. Isso porque a Constituição não comporta a nomeação para outro cargo, independentemente de concurso, ao argumento falacioso de reestruturação de carreiras públicas, por força da regra do artigo 37, II. Portanto, a reestruturação deve sempre observar circunstâncias especiais, como a estrita correlação das atribuições do cargo até então exercido pelos servidores, cujas aptidões foram aferidas em concurso público prévio, e das funções reunidas no novo cargo. É inadmissível o desprezo de quaisquer das razões que informaram a redação do artigo 37, II da Constituição da República.
Para compreender adequadamente referida limitação, cumpre levar a efeito alguns esclarecimentos a propósito da figura do provimento derivado.
2.1. Provimento derivado: caracterização
No direito administrativo pátrio, define-se o provimento como o ato pelo qual se efetua o preenchimento do cargo público, mediante a designação de alguém para titularizar o mesmo; por esse ato o servidor é investido no exercício das atribuições públicas que exercerá.
Segundo Carmen Lúcia Antunes Rocha, o provimento tem dupla face: “pelo lado do agente, traduz ou determina a outorga que lhe é feita de desempenhar o conjunto de atribuições inerentes ao cargo, função ou emprego público; vislumbrando-se a partir do cargo ou do emprego, significa a definição administrativa daquele agente que o titulariza, quer dizer, que se põe como seu titular para o desenvolvimento das atividades que lhe são inerentes na forma da lei.” Sob essa perspectiva, o provimento tem múltiplos efeitos, porquanto “a) define a condição do cargo, que passa a ser titularizado pelo agente nomeado ou contratado, conforme o caso; b) define o titular que é investido nessa condição; c) a partir daquela definição, outorgam-se-lhe as atribuições inerentes ao cargo e que lhe são conferidas e postas à sua atuação competente e à sua responsabilidade.”[8]
Se num sentido jurídico genérico prover significa adotar uma providência para atender a uma necessidade ou pedido (ex: prover um apelo judicial) ou suprir (no sentido de atender) uma demanda social específica, o provimento de cargo público implica suprimento formal de uma necessidade pública (demonstrada pela vacância do cargo), conferindo-se a alguém a condição de titular responsável pelo desempenho das atribuições que lhe são inerentes. A partir de um procedimento tem-se um ato pelo qual se efetua o preenchimento do cargo mediante designação de alguém para titularizá-lo. Sendo assim, o provimento de fato define a condição do cargo, que passa a ser titularizado, e também define o titular que é investido, outorgam-se-lhe atribuições inerentes ao cargo.
A redação do artigo 37, II da Constituição da República determinada pela Emenda Constitucional nº 19/98 estabelece que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. Na verdade, já a redação original do referido dispositivo havia suprimido a qualificação “primeira investidura” da regra que impõe a realização de concurso público, fixando que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. Sendo assim, desde 1988, sem qualquer alteração após 1998 quando da Emenda Constitucional nº 19, tem-se na Constituição da República a exigência de concurso público prévio não apenas à “primeira investidura” em cargo público, mas antes da investidura em cargos e empregos públicos, ressalvando-se somente os cargos comissionados. Daí a doutrina proclamar terem sido afastadas as formas de provimento derivado, desde a redação original da Constituição da República.
Para se compreender propriamente tal conclusão, esclareça-se que provimento originário é aquele que vincula inicialmente o servidor ao cargo ou emprego público. Neste caso, não há vinculação jurídica anterior, ou seja, o titular do cargo ou emprego público não pertencia àquele serviço público antes. Sendo assim, o provimento originário não guarda relação com a anterior situação do provido, motivo pelo qual se diz autônomo ou originário. Quando se trata de cargo público, o provimento originário ocorre pelo ato de nomeação e se dá por ato administrativo unilateral e executório. Sobre essa matéria, confira-se o ensinamento de Cármen Lúcia Antunes Rocha:
“O provimento originário é aquele que se dá quando, vago o cargo (ou porque vem de ser criado ou porque o seu titular anterior dele se afastou definitivamente), vem a ser suprido por ato administrativo unilateral e auto-executório, pelo qual se confere a alguém a condição de titular do cargo indicado, sendo que tal cometimento independe e não deriva de qualquer relação jurídico-funcional havida antes pelo agente como membro da carreira correspondente ou de qualquer cargo isolado.
O ato de provimento originário é, normalmente, o de nomeação para cargo público. Para emprego público aquele provimento aperfeiçoa-se mediante contrato.”[9]
Já o provimento derivado depende de um vínculo anterior do servidor com a Administração, ou seja, o cargo é preenchido por alguém que já tenha vínculo anterior com outro cargo sujeito ao mesmo estatuto (e no vínculo anterior radica a causa do provimento ulterior). Essa a lição da já citada constitucionalista Cármen Lúcia segundo a qual “O provimento derivado é aquele que ocorre quando, vago o cargo por qualquer causa, vem a ser suprido por agente que o titulariza por direito que lhe advém de relação havida anteriormente com a entidade estatal de cujos quadros faz parte.”[10]
Em face do que determina o mencionado artigo 37, II da Constituição da República, entende-se, como regra geral, que foram banidas formas de provimento derivado. Contudo, é preciso cautela ao interpretar referida prescrição. Isso porque há exceções à proibição de provimento derivado na própria Constituição que trata de matérias as quais trazem ínsita a necessidade de manutenção de algumas formas de provimento derivado. Assim ocorre com a promoção, a readaptação, o aproveitamento, a reintegração e a recondução. Esses institutos, formas de provimento derivado, ou são mencionados expressamente no texto constitucional ou são essenciais para a operacionalização de regras constitucionais. Nesse sentido, tem-se decisões do próprio STF[11] e do STJ[12]. O mesmo não ocorre com outras formas de provimento derivado, admitidas anteriormente à Constituição de 1988 e agora sujeitas à regra geral proibitiva que decorre do artigo 37, II da CR, como é o caso da ascensão, transferência e reversão. Também sobre essa matéria o STF já se pronunciou em mais de uma oportunidade[13]. Conforme a Súmula 685 do STF e a Súmula Vinculante 43 também do STF, é inconstitucional a modalidade de provimento que propicie o servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido. Vem se mantendo a orientação segundo a qual “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de não reconhecer qualquer espécie de provimento derivado a cargo público”[14]. De tais manifestações resulta que o STF, ao interpretar a norma que exigiu que a vinculação a cargo público se faça mediante concurso público, baniu ascensão, transferência e reversão a pedido, mantendo-se somente promoção, readaptação, aproveitamento, reintegração e recondução, porquanto essenciais à operacionalização do matérias de assento constitucional.
Diante dessas premissas, é preciso, em cada realidade na qual se busque a extinção de determinados cargos com a sua transformação em outros, aferir o quantitativo dos cargos anteriores que se pretende extinguir e, principalmente, se se caracteriza, ou não, provimento derivado na espécie. Cumpre examinar se a reorganização da carreira, em que se faça, por exemplo, a transformação de dois tipos de cargos em um outro, com atribuições especificadas em anexo, caracteriza, ou não ascensão, transferência, acesso, reversão a pedido ou mesmo de outro instituto que, com nomenclatura diversa, vincule um servidor que detinha relação jurídica prévia a funções públicas distintas e específicas, em novo cargo. Em caso negativo, afastam-se as alegações pertinentes ao artigo 37, II da Constituição da República, em especial no tocante a eventual ofensa à proibição de provimento derivado. Em caso positivo, cumpre estabelecer os parâmetros dentro dos quais a reorganização administrativa pode se dar, de modo que não haja qualquer ofensa ao texto da Constituição da República.
2.2. Projeto de reorganização de carreira em face do artigo 37, II da Constituição da República (exigência de concurso público)
Já se elucidou que no provimento derivado tem-se um ato legislativo ou administrativo por meio de que um servidor, que possui uma relação funcional prévia com a Administração Pública, é vinculado a outro cargo público, com atribuições e pressupostos diversos do primeiro.
O Supremo Tribunal Federal já assentou a inadmissibilidade de se integrar o servidor em outra carreira nas hipóteses em que se pretendeu apenas institucionalizar provimentos derivados inconstitucionais, excluída a reestruturação ou reorganização legitimamente admissíveis.[15] A Súmula Vinculante 43 pacificou o entendimento de que “É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.”.
A cautela é para que não se admita que alguém seja investido na titularidade de um cargo público, com atribuições públicas típicas, sem a prévia aprovação em concurso público. Se não se trata de uma das exceções da Lei Maior e se já preexistia uma relação jurídico-funcional da pessoa e o Estado, é inadmissível que outro vínculo se forme em virtude da mera edição de diploma legal supostamente reestruturador da estrutura do Estado, quando este novo vínculo se estabelece relativamente a atribuições diversas das anteriormente exercidas pelo servidor, mediante exigência de requisitos de habilitação também diferentes.
Não se concebe que o fato de alguém ser titular de um cargo público, de provimento efetivo, possa, validamente, propiciar a aquisição de titularidade de qualquer outro, principalmente se de grupo ocupacional diverso, afastados os riscos e ônus de uma concorrência externa, via concurso público. Em outras palavras, é inadmissível que se abra a possibilidade de transferência de servidores de uma carreira a outra, ou de um cargo isolado a outro, sem mais exigências, como acontecia antes da promulgação da Constituição de 1988, cujo artigo 37, II, ao utilizar a expressão “investidura” colocou fim às discussões anteriores fundadas no emprego anterior da expressão “primeira investidura”.
Assim, atualmente, sempre se caracterizará nova relação jurídico-funcional e, consequentemente, nova investidura, quando o servidor vincula-se a outro cargo isolado ou de carreira profissional diversa da que vinha exercendo, sendo imperiosa a aprovação em concurso público específico e superveniente. O ingresso em outra carreira, mesmo afim, depende de submissão a concurso público de provas ou de provas e títulos, sendo vedada a hipótese de dispensa de sua realização, pena de ofensa ao artigo 37, II da Constituição. Afinal, a Constituição sequer atribuiu ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer, diretamente ou por exclusão, liberalidades no tocante à observância da exigência de concurso público, pelo que é manifesto que não se pode reconhecer tal faculdade ao administrador público.
Repita-se, pois, que o inaceitável, em termos estritamente jurídicos, é valer-se, artificiosamente, da reestruturação de carreiras para se furtar ao cumprimento de exigência de ordem constitucional, levando a efeito provimentos derivados não excepcionados no texto magno da regra da obrigatoriedade do concurso público.[16]
Novos cargos, no bojo dos quais estejam inseridas atribuições diversas daquelas enfeixadas em cargos existentes anteriormente, devem ser providos apenas se se assegurar igual oportunidade a todos os eventuais interessados os quais preencham os requisitos legais. Afinal, a finalidade do concurso público é viabilizar que, em cada caso e em cada cargo, se perquira os requisitos normativos do ordenamento fixados de acordo com a natureza e complexidade da função a ser exercida, atendidos os princípios constitucionais de regência. Não podem ser privilegiados os atuais servidores pelos simples fato de já integrarem o quadro de pessoal do Estado. Ao contrário, ao ente político é imperioso oferecer igual oportunidade de acesso a todos os eventuais interessados que demonstrem a aptidão necessária para o exercício dos novos cargos, garantindo-se, presumivelmente, nos novos e específicos concursos públicos, a admissão do melhor servidor para o exercício das novas funções.
Entendimento em sentido contrário significaria retrocesso de mais de duas décadas, com retorno da balbúrdia estrutural abolida com o advento da Constituição vigente. Na verdade, antes mesmo da CR/88, autores como Márcio Cammarosano já afirmavam “Para efeito de provimento de cargo público, ninguém, pelo simples fato de já ser funcionário, pode ser privilegiado a ponto de se ver livre da concorrência de quaisquer eventuais interessados que preencham os requisitos legais. A reserva de determinados cargos para provimento derivado só é possível se houver razão lógica que a justifique, aferível à luz do interesse público, que o Estado deve perseguir, e que não se confunde com o particular interesse do funcionário em galgar cargos mais elevados, de natureza profissional diversa daquele de que já é titular.”[17]
Na mesma linha de raciocínio, Carlos Gustavo Silva Rodrigues defende que “a regra para provimento de cargos públicos é a do concurso, mas esta regra é mitigada em situações especiais, como é o caso da reestruturação de cargos, com o aproveitamento dos atuais servidores, quando os cargos originais pertençam a carreiras que guardem afinidade de atribuições.” Segundo o citado autor, “a reestruturação de carreiras com o deslocamento de cargos pode ocorrer, nos casos em que os cargos originais pertençam a uma mesma carreira e guardem afinidade de atribuições”, motivo por que conclui: “É constitucional o aproveitamento dos atuais ocupantes dos cargos originários, providos por concurso, quando pertencerem à mesma carreira e guardem afinidade de atribuições.”[18]
Em cada caso concreto, portanto, deve-se promover a análise da reestruturação realizada, de modo a afastar, definitivamente, a possibilidade de se tratar de mal disfarçada burla à regra da necessidade de concurso público. Não se pode, ao argumento da reestruturação de carreiras, da transformação de cargos ou da realocação de servidores, ensejar a transformação de cargo anterior em novo cargo com atribuições diversas do primeiro, nem mesmo promover inclusão de novas atribuições para cujo exercício a competência do servidor não foi aferida, quando originariamente admitido nos quadros de pessoal do Poder Público. A lei que, ao ensejar provimento em choque direto à taxativa recomendação constitucional do artigo 37, II da CR, padecerá de inconstitucionalidade, assim como os atos de provimento nela fundados, o que propiciará reparação judicial nos moldes em que inerente ao Estado Democrático de Direito.
Nas hipóteses em que a reestruturação ocorreu com atenção à afinidade das atribuições das carreiras consolidadas, à necessidade de dar espaço a soluções de racionalização administrativa e com respeito aos anteriores requisitos de habilitação e ao conteúdo das atribuições até então exercidas pelos servidores, tem-se como legítima a atuação pública, excluída qualquer ofensa à exigência de concurso público. Observar tais aspectos, na incorporação de servidores já providos em cargos anteriores da estrutura administrativa, não implica vedação que o Estado, a partir de determinado momento, crie carreira com requisitos de habilitação e competência distintas, mormente se busca aperfeiçoar determinada atividade pública essencial. O que o Poder Público não poderá olvidar é a vedação de provimento derivado quanto aos servidores já providos em cargos anteriores, quando do exercício da discricionariedade política que lhe permite estruturar novas carreiras com requisitos de habilitação e atribuições distintos. Em alguns casos, será adequada a criação de um “quadro funcional em extinção”; em outros, tal medida não se fará imperiosa, tendo em vista a similitude dos pressupostos e das atribuições funcionais.
Cumpre afastar o entendimento de que um ente federativo está proibido de realizar qualquer modificação na legislação e normatização administrativa pertinente às competências das carreiras públicas que integram o seu quadro funcional, depois de aperfeiçoamentos realizados em momentos anteriores, seja uma década atrás ou apenas há menor lapso temporal. Não existe uma camisa de força que proíba o exercício do poder de legislar, regulamentar e regular, de modo adequado, como se exercerá a competência de titularidade da pessoa federativa, mesmo porque a adaptação às novas realidades e o aperfeiçoamento da estrutura das carreiras é imperativo de que o ente político não pode se descurar. Ademais, não existe direito adquirido ao regime jurídico tal como estruturado no início do vínculo entre servidor público e Estado[19], sendo legítimas alterações levadas a efeito sem qualquer vício de inconstitucionalidade. Repita-se, assim, que não existe direito à petrificação do ordenamento que fixa poderes em favor de determinadas carreiras, mormente se ausente qualquer limite específico e restritivo constitucional, afigurando-se razoável buscar melhor estrutura, mediante racionalização administrativa dos órgãos públicos e das atividades as serem exercidas seus agentes.
Por outro lado, já se advertiu que referida discricionariedade, amplamente necessária, não pode ser exercida de modo a ofender claros limites constitucionais, como é o caso do inciso II do artigo 37 da CR, o qual proíbe as formas de provimento derivado que não tenham fundamento no próprio texto constitucional. Reitera-se que, do ponto de vista material, a mera junção das atribuições de duas ou mais carreiras cujos cargos, extintos, serão transformados em cargos integrantes de uma nova carreira, com competências correspondentes às anteriores, não implica provimento derivado contrário ao artigo 37, II da CR.
Reestruturar carreiras é possível, respeitados os limites da Constituição, malgrado eventual inconformismo dos servidores integrantes das carreiras existentes. Isso principalmente em se considerando o respeito ao inciso II do artigo 37 da CR, ausente provimento derivado decorrente transformação de cargos, e a concretização dos comandos principiológicos constitucionais.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 494-495.
[3] MADEIRA, José Maria Pinheiro. “Servidor Público na Atualidade”. 3ª ed. Rio de Janeiro, América Jurídica, 2005, p. 60.
[4]Apelação Cível nº 1.0024.08.135420-1/002, rel. Desembargador Caetano Levi Lopes, 2ª Câmara Cível do TJMG, DJMG de 07.10.2009.
[5] ADI nº 1.591-ES, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno do STF, Informativo 292 do STF.
[6] ED-ADI nº 2.713-DF, rel. Min. Ellen Gracie, Pleno do STF, Informativos nº 306, 331 e 335 do STF.
[7] ADI nº 2.335-SC, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, Pleno do STF, julgamento em 11.06.2003.
[8] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 170
[9] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 193
[10] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 192
[11] STF: Ag. Regimental no RE 461.792-MA, ADI nº 1.757-ES, Ag. Regimental no RE nº 560.464-DF, MS 22.492-DF e MS nº 23.577-DF
[12] STJ: ROMS nº 2.102-PA, Agravo Interno no ROMS nº 53.577-MG.
[13] ADI nº 1.329-AL, MS nº 22.148-DF, ADI nº 656-RS, ADI nº 1.345-ES; ADI nº 3030-AM, ADI nº 785-DF, ADI nº 186-PR, RE nº 172.531-SC
[14] Agravo Regimental no RE com Agravo nº 787.009-SP, rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma do STF, DJe de 28.03.2018
[15] ADI nº 1.350, rel. Min. Celso de Mello, julgada em 24.02.2005, Plenário do STF, Informativo 377 do STF e ADI-Med. Cautelar nº 1.476-PE, rel. Min. Carlos Velloso, Pleno do STF, DJU de 01.03.02, p. 30 e Súmula 685 da Corte Suprema: “É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido”.
[16] Confira-se decisão do STF em que não se admitiu transformação, por lei, de celetistas em estatutários, exatamente com base na regra que exige concurso público: ADI nº 3.221-ES, rel. Min. Celso de Mello, Pleno do STF, DJe de 29.08.2018.
[17] CAMMAROSANO, Márcio. Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 107.
[18] RODRIGUES, Carlos Gustavo Silva. A reestruturação de carreiras em face dos princípios da eficiência e do concurso público. Jus Navigandi. Teresina: ano 12, n. 1806, 11 jun. 2008.
[19] Sobre a ausência de direito adquirido a regime jurídico: Agravo Interno no REsp nº 1.439.251-PR, rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma do STJ, DJe de 30.08.2018; Agravo Regimental no RE nº 610.503-SE, rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma do STF, DJe de 13.03.2017 e RMS 52.971-GO, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma do STJ, DJe de 25.04.2017
Bomdia. Gostei muito do artigo, porém tenho uma dúvida que gostaria de sanar.
Aqui no Rio Grande do Sul o cargo de oficial de justiça está dividido em primeira e segunda instância. Início do ano foi realizado concurso para o cargo de segunda instância. Agora estão encaminhando um projeto para unificar o cargo em um só, passando a se chamar Oficial de Justiça Estadual. A minha duvida é como fica o concurso vigente realizado para a segunda instância? Os cargos unificados ( inclusive que eram de primeira instância poderam ser supridos por esse concurso? Desculpa incomodar!