1. Autonomia política dos entes federados
Em diversas matérias, entra em discussão quem tem competência para legislar sobre determinada matéria: se a União ou se todos os entes da federação (Municípios, DF, Estados e Municípios) privativamente, se a União editando normas gerais com Estados e DF editando normas específicas pelas Assembleias Legislativas ou se a União editando normas gerais com Estados, DF e Municípios editando leis específicas pelos respectivos Legislativos. Em momentos como os de reforma da previdência e mudança nos parâmetros de gestão pública, é fundamental definir de qual órgão do Legislativo poderá resultar a legislação que estabeleça as transformações pretendidas.
Considerando a autonomia política e administrativa que os entes da federação possuem, é certo que a União Federal não tem competência para definir, por lei, estruturas de outra pessoa federativa, a menos que haja competência legislativa específica fixada na Constituição da República em seu favor (como, p.ex., competência privativa para legislar sobre direito comercial ou civil, tendo o Município optado por criar uma entidade da Administração Indireta com personalidade de direito privado). Na ausência de um dispositivo constitucional que dê à União poder para editar lei que vincule Estados, Municípios e DF, as matérias que digam respeito à sua estruturação orgânica, de pessoal e relativa à procedimentalização administrativa, são de competência de cada um deles. No que se refere ao arcabouço subjetivo de cada ente federativo, é daquela pessoa política a competência para legislar e, assim, definir a sua estrutura administrativa, incluída a gestão dos recursos públicos nos limites do ordenamento vigente.
Assim, na Federação brasileira a capacidade de auto-organização das pessoas federativas exige que lhes seja reservada a competência para promulgar estatutos normativos básicos regulamentadores das linhas mestras da sua estrutura orgânica e da consequente atuação administrativa. Em relação aos Estados membros, corrobora tal premissa o princípio clássico do federalismo constitucional, a saber, o dos poderes reservados que promanam das competências não vedadas aos Estados (artigo 25, § 1º da CR/88). A propósito, confira-se o ensinamento do Desembargador e constitucionalista Kildare Gonçalves Carvalho:
A auto-organização dos Estados Federados, consagrada pelo art. 25 da Constituição, revela-se através de Constituição própria elaborada pelo Poder Constituinte Decorrente. Assim, aos Estados são reservados todos os poderes que não lhes sejam vedados pela Constituição (art. 25, § 1º). Verifica-se, pois, que, a autonomia estadual decorre da Constituição Federal, fonte matriz do Poder Constituinte Estadual, que estabelece uma série de princípios e vedações a serem observados pelos Estados federados na sua organização.[1]
A ampliação do campo da legislação estadual e municipal realizada na CR/88 é característica essencial do federalismo de dimensão continental, como o brasileiro, em que as unidades federadas não se apresentam homogêneas e, ao contrário, evidenciam flagrantes disparidades, inclusive de estrutura administrativa. Referidas disparidades justificaram que, na repartição constitucional de competências, o Estado Membro tivesse assegurado o desenvolvimento da sua específica atividade normativa, inclusive no tocante à própria Administração Pública. Nesse sentido, a lição do saudoso professor Raul Machado Horta:
“Ao expedir as normas que configuram a organização federal, a Constituição defere ao Estado o poder de organização própria, designando como fontes do poder autônomo de organização a Constituição e as leis estaduais. Nesse cerne organizatório, situa-se a autonomia do Estado-Membro, que caracteriza e singulariza o Estado Federal, de modo geral, e o Estado Federal Brasileiro, de modo particular, no domínio das formas estatais. A autonomia provém, etimologicamente, de nómos e significa, tecnicamente, a edição de normas próprias.
(…)
É regra comum às Constituições Federais Brasileiras a disposição de que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem no exercício de seu poder de organização e de legislação, com variação de linguagem de uma para outra Constituição, sem afetar, todavia o conteúdo desse poder (…)
Poderes de organização constitucional e de legislação e poderes reservados são as fontes da competência exclusiva dos Estados-Membros, que irão abastecer o ordenamento jurídico estadual com as normas hierarquicamente escalonadas da Constituição e das leis. Demonstra-se, deste modo, que os Estados-Membros, além de partes constitutivas da República Federal, são titulares de personalidade autônoma de Direito Público, possuindo capacidade de ação e vontade independente.”[2]
Nâo se ignore que a Constituição de 1988 elevou os Municípios à categoria de ente federativo, conforme resulta claramente do seu artigo 18. Foi consolidada a independência municipal política e administrativa, com possibilidade de eleição de prefeitos e de vereadores, ao que se acresce a competência para editar a sua própria Lei Orgânica, além da capacidade de auto-organização e de gestão econômico-financeira.
Destarte, a própria autonomia decorrente do sistema federativo adotado na Constituição da República e reconhecida, expressamente, às pessoas federativas lhes confere a prerrogativa de dispor, em sede normativa própria, sobre a sua estrutura administrativa. Na verdade, a competência dos entes da federação para organizar suas entidades e órgãos é consectário da autonomia político-administrativa de que dispõe, por força dos artigos 1º, 18 e 25 da Lei Magna.
“O administrativista Hely Lopes Meirelles já prelecionava:
A organização administrativa mantém estreita correlação com a estrutura do Estado e a forma de governo adotadas em cada país. Sendo o Brasil uma Federação, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º), em que se assegura autonomia político-administrativa aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios (arts. 18, 25 e 29), sua administração há de corresponder, estruturalmente, a esses postulados constitucionais.
Daí a partilha de atribuições entre a União, os Estados-membros, Distrito Federal e os Municípios, numa descentralização territorial em três níveis de governo – federal, estadual e municipal – cabendo, em cada um deles, o comando da administração ao respectivo chefe do Executivo – Presidente da República, Governador e Prefeito.”[3]
A descentralização política, que é característica fundamental do regime federativo, exige que se observe a autonomia inerente aos círculos de poder diversos do poder central. Como observa José dos Santos Carvalho Filho:
“No Brasil, há três círculos de poder, todos dotados de autonomia, o que permite às entidades componentes a escolha de seus próprios dirigentes. Compõem a federação brasileira a União Federal, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal (art. 18, CF).
(…)
A Constituição Federal deixou registrado expressamente que os entes que compõem a federação brasileira são dotados de autonomia.
Autonomia, no seu sentido técnico-político, significa ter a entidade integrante da federação capacidade de auto-organização, autogoverno e auto-administração. No primeiro caso, a entidade pode criar seu diploma constitutivo; no segundo, pode organizar seu governo e eleger seus dirigentes; no terceiro, pode ela organizar seus próprios serviços.
É este último aspecto que apresenta relevância para o tema relativo à Administração Pública. Dotadas de autonomia e, pois, da capacidade de auto-administração, as entidades federativas terão, por via de conseqüência, as suas próprias Administrações, ou seja, sua própria organização e seus próprios serviços, inconfundíveis com o de outras entidades.”[4]
Nesse contexto, não se mostra lícito suprimir a possibilidade de o Estado-Membro, exercendo a capacidade política e de auto-administração, normatizar a sua estruturação administrativa, o seu regime de pessoal e os procedimentos administrativos necessários à sua atuação, pois isso significaria supressão inconstitucional do poder de legislar, regulamentar e regular internamente sua estrutura. Afigura-se absurdo pretender centralizar na União Federal competências como a estrutura da Administração direta ou indireta, as regras internas do regime funcional do quadro de pessoal do ente federativo e a forma de gestão de recursos orçamentários. Afinal, não é caso de outorgar titularidade monopolística e concentrada a outro ente da federação da regulamentação legislativa pertinente aos mecanismos que são essenciais à independência com assento na Constituição, desde a personificação de quem exercerá as próprias competências, ao regime jurídico dos agentes públicos que as exercem, passando pela gestão de recursos do erário.
2. Competência legislativa concorrente e normas gerais
Fixada a regra da autonomia política e sua repercussão, em princípio, na independência legislativa dos entes da federação, é preciso esclarecer que existem matérias que são de competência concorrente, cabendo à União editar normas gerais e, expressamente por determinação constitucional, ao Estado-membro/DF legislar fixando normas específicas. Assim, p. ex., as competências do artigo 24 da Constituição da República. Em relação à competência para legislar sobre os procedimentos preliminares aos acordos firmados entre o Poder Público e terceiros, tem-se o artigo 22, XXVII da CR, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998 (publicada em 05.06.98). O citado dispositivo fixa que compete privativamente à União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III”.
Do referido dispositivo resulta claro que à União é reservada competência privativa para editar normas gerais de licitações e contratos administrativos. Dentre as normas gerais, obrigatórias em todos os níveis federativos para as administrações direta, autárquica e fundacional, destacam-se a Lei nº 8.666/1993 (Estatuto das Licitações e dos Contratos Administrativos), a Lei nº 9.472/1997 (Lei das Telecomunicações), a Lei nº 9.478/1997 (trata das concessões das atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo), a Lei nº 10.520/2002 (regula a modalidade de pregão), a Lei nº 11.107/2005 (Lei dos Consórcios Públicos), a Lei nº 12.232, de 29.04.2010 (trata das licitações e serviços de publicidade), bem como a Lei nº 12.349, de 15.12.2010 (conversão da MP 495/2010 que trouxe regras a propósito da licitação como instrumento de desenvolvimento nacional sustentável). Também nessa categoria enquadram-se a Lei Complementar nº 123/2006 (dispôs regime especial para as empresas de pequeno porte e microempresas, veiculando inclusive normas de licitação), a Lei nº 11.488/2007 (estendeu às cooperativas de vantagens outorgadas pela Lei Complementar nº 123 às microempresas e empresas de pequeno porte), a Lei nº 13.019/2014 (fixou regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação) e, ainda, dispositivos da Lei nº 13.243/2016 (que dispôs sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação), especialmente no que tange a normas licitatórias e de contratações administrativas na seara específica da inovação e desenvolvimento tecnológico. Nos referidos diplomas, encontram-se normas gerais de licitação e de contratação administrativa que, como tais, obrigam todas as esferas da federação, inclusive entidades da sua Administração Indireta.
2.1. Normas gerais
A doutrina, ao buscar definir o conceito de normas gerais, indica referências que, cumulativas, permitem conclusão a propósito do seu conteúdo. Segundo Alice Gonzalez Borges, trata-se de normas que veiculam elementos indispensáveis ao cumprimento dos preceitos fundamentais; são comandos genéricos e básicos que devem ser respeitados pelo legislador ao abordar aspectos peculiares e diversificados de determinado tema. Para Lúcia Valle Figueiredo, são normas gerais as dispõem de forma homogênea para determinadas situações para garantia da segurança e certeza jurídicas, estabelecem diretrizes para o cumprimento dos princípios constitucionais expressos e implícitos, sem se imiscuirem no âmbito de competências específicas de outros entes federativos. Lúcido é o magistério de Marçal Justen Filho quando afirma que se trata de princípios e regras destinados a assegurar um regime jurídico uniforme para as licitações e contratações administrativas. Nesse sentido, podem ser consideradas inseridas no conceito de normas gerais as matérias essenciais que merecem unidade de tratamento. E merecem tal tratamento as atinentes aos requisitos indispensáveis à validade da contratação; às hipóteses de obrigatoriedade e não-obrigatoriedade da licitação; aos requisitos para participação em licitação; às modalidades e aos tipos de licitação; e ao regime jurídico da contratação administrativa. Uniformidade decorrente das normas gerais visa proporcionar segurança e dar efetividade a instrumentos de controle.[5]
Não há como negar que definir aspectos como situações de contratação direta, fases licitatórias e seus pressupostos consubstancia aspecto fundamental, merecedor de tratamento homogêneo e uniforme em todos os níveis da federação (União, Estados, Municípios e DF). Assim sendo, é preciso observar a competência legislativa federal para editar normas gerais sobre a matéria, sendo inviável que Estados ou Municípios extrapolem os limites da sua atuação legislativa, invadindo esfera atribuída à União pelo artigo 22, XXVII da CR.
Situação diversa, entretanto, é a determinação relativa a competência homologatória em cada esfera, requisitos procedimentais específicos (como prática de atos por escrito) ou aspectos pertinentes à estrutura administrativa de quem firmará o contrato, sem normatizar o acordo. Nesses casos, não se estando diante de matéria inserida no artigo 22, XXVII da CR, não é caso de norma geral federal vincular diretamente o Estado, o Município ou o DF. Reitere-se que se está diante de matéria de organização administrativa de competência privativa de cada ente federativo, pelo que a dispositivos de lei federal incidirão exclusivamente no âmbito federal.
Afastado o âmbito da competência concorrente do artigo 24 da CR ou a competência legislativa federal decorrente do artigo 22, XXVII da CR, uma vez que a vinculação das normas federais em relação ao demais entes federativos limita-se somente àquelas que se qualificam como normas gerais, deve-se respeitar a competência decorrente da independência política dos entes da federação, em especial quanto às competências específicas administrativas. Neste caso, não se vislumbram normas federais que incidam no Estado, no Município ou no DF de modo a alterar o regime funcional dos seus servidores, a estrutura da sua Administração Direta e Indireta ou o modo de gestão de recursos do erário.
3. Visão crítica
Conclui-se, portanto, que cabe a cada ente da federação legislar sobre matérias essenciais à sua independência política e administrativa, sem que se admita à União usurpar-lhes referida competência.
A dificuldade de, no Brasil, reconhecer-se tal competência aliada ao impulso federal reiterado de imiscuir-se na atribuição legislativa específica dos Estados, Municípios e DF é somente uma outra face da resistência originária à adoção do federalismo real e concreto.
Já na redação originária da Constituição, a própria repartição da competência tributária das pessoas federativas se deu com predomínio arrecadatório da União e insuficiência de previsão de tributos de competência dos demais entes. Observe-se que proporcionalidade na distribuição de deveres de agir na execução das políticas públicas em face da competência tributária é aspecto indispensável para que se tenha, de fato, uma Federação. Se se prevê uma série de obrigações de agir para Estados e Municípios, sem lhes prover dos recursos indispensáveis, faltará lastro econômico aos últimos, o que fatalmente comprometerá a realização social das competências públicas. Observe-se os problemas que se identificam nas transferências financeiras de fundos federais em favor das demais pessoas públicas de direito público interno. Não é fantasioso imaginar manipulação, pela União, dos repasses mediante invocação burocrática de inexistência de projetos ou de vícios ao cumprir uma legislação e normatização complexa, sem mencionar os perniciosos efeitos resultantes de simples demora eventual na realização das transferências. Quanto a União contigencia recursos e subjuga Estados, Municípios e DF à centralização do poder, a Constituição Federal tem descumpridas suas normas. Não se ignore que sem independência financeira é utópico falar em “autonomia política”.
Assim, a própria ausência de um real “federalismo fiscal” já dificulta a autonomia dos Estados, Municípios e DF. Uma outra face dessa dificuldade percebe-se claramente na recusa ao poder de legislar, também indispensável à autonomia desses entes federativos. Não se ignore a própria “boa vontade” hermenêutica de parte dos órgãos encarregados de controlar a constitucionalidade da legislação federal que avança na competência específica estadual e municipal, sem falar na mutação doutrinária que reconhece consequencialisticamente benefícios na uniformização da competência legislativa no âmbito da União, com ignorância flagrante das regras da Constituição da República.
Se é claro que uma redistribuição de recursos, a partir de um repensar da competência arrecadatória dos tributos, seria indispensável para, enfim, termos uma Federação no Brasil, mais certo ainda é o quanto precisamos reservar a autonomia política aos Estados, Municípios e DF para legislarem em matérias que são de sua exclusiva competência. A primeira tarefa entregamos aos constitucionalistas e tributaristas. A segunda, partilhamos com os estudiosos do Direito Constitucional, mas é necessário que na discussão pontual de cada tema inovador relativo à Administração Pública, administrativistas assumamos o compromisso de buscar uma realidade mais próxima da federação determinada na Constituição da República: esse é o desafio que se agiganta num momento em que se pretendem tantas mudanças como a reforma da previdência e da estrutura de gestão pública do Estado Brasileiro.
[1] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional Didático. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 280.
[2] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 339-340.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 626-627
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 6.
[5]in HONÓRIO, Cláudia. Inversão de fases da licitação por lei municipal. Boletim de Licitações e Contratos. São Paulo: NDJ, ano XXIII, nº 7, julho 2010, p. 661-662.
Ótimo artigo. Sou leigo no assunto e estou começando a estudar mais sobre o Direito Administrativo. Na CF/88 é tudo muito bonito, mas na prática sinto que a única coisa que os Estados e Municípios têm autonomia para determinar são algumas taxas (ISS, IPTU, etc.).
Vale a pena aprofundar o assunto, estudando algumas referências do texto em Direito Constitucional, Anderson. Muito obrigada pelo retorno!
Sou leiga no assunto pois estou começando a estudar agora sobre o DIreito .
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Seja bem vinda ao estudo do direito público, Dalmi!