1. Considerações preliminares sem Direito (mais uma vez)
Na última semana, alguns alunos indagaram se não escreveria sobre o atentado a um dos candidatos à Presidência da República. Respondi negativamente. Primeiro porque, parafraseando Nelson Cavaquinho, a vida pedia – “tire o seu Direito Administrativo do caminho, que eu quero passar com um tanto de amor” – o que justificou um feriado de descanso com crianças, bem longe das redes. O principal, contudo, tem sido a completa inabilidade de lidar com o radicalismo que cada vez mais se extrema em nossa realidade. Para aqueles que defendem que diferenças sempre existiram e acirramento de posições ideológicas em determinadas épocas também, pondero que a facilidade com que as opiniões circulam em tempos de internet, o distanciamento e a superficialidade que a tela fria do computador permite têm ensejado um “tom mais elevado” e os absurdos, crescentes. A isso alie-se a insegurança como companheira a ensejar renúncia de equilíbrios mínimos ainda frágeis, principalmente quanto a liberdades e garantias que demoramos séculos para alcançar, ainda que teoricamente. E antes que fôssemos realmente em direção a elas, já voltamos. Aos tapas e com armas apontadas uns contra os outros, em frentes de batalha violentas nas redes, nas famílias e também nas ruas, num tempo de eleições estranhas, de relações que se estranham.
Para boa parte de nós, anda mesmo tudo muito estranho e de difícil compreensão. Vale lembrar que escrever significa absorver, entender, refletir, tentar concluir algo e, só então, partilhar (metáfora perfeita de “ruminar”). Considerando o quão impossível tem sido completar esse processo, não dá para colocar no papel (ou na tela) textos sobre uma série de assuntos. Afinal, se você sequer absorve ou, se chega a absorver, não entende, vai escrever o que? Tenho recorrido à técnica “o artigo que conta como não entendi e, por isso, não consigo escrever sobre o que desejaria escrever”.
Pois então. Não entendo essa violência que voltou a sair do armário, nem o sangue que escorre pelo verbo e pelas armas brancas e de fogo, a impedir um convívio civilizado, a despeito das diferenças. E não é que não tenha aprendido a discutir bravamente sobre ideologias, política, Estado, organização social ou coisa que o valha. Ainda na adolescência, travava discussões homéricas com Dr. Osmar, a quem considerava “um conservador ridículo” (como todo pai de adolescente é) e quem me considerava “impulsiva imatura” (como toda adolescente de fato é). Eram horas de debate, de argumentos históricos e teóricos travados madrugadas afora, para no final, despedirmos com o mesmo carinho de boa noite, sem chegar a um ponto comum, mas admirando a bravura do outro em defender seus pontos de vista. As discussões na varanda da casa da minha avó chegavam a níveis audíveis muito mais longe do que a educação social permitia e, ainda assim, estávamos lá novamente, no fim de semana seguinte, para a mesma confusa divergência de ideias. Em outras palavras: brigar por diferença ideológica é algo comum para toda uma geração e isso jamais significou rompimento definitivo, nem esfaqueamento direto à honra alheia, nem abandono do ringue ou da relação pessoal, nem outro atentado qualquer.
Se profissionalmente todos nós já enfrentamos realidades diversas, ainda mais em tempos recentes, é uma alegria reconhecer não ser esse o caso do convívio entre os professores de Direito Administrativo que anualmente nos encontramos no Congresso Brasileiro. As convicções jurídicas são, à obviedade, as mais díspares possíveis e o Congresso tornou-se um espaço de partilha de posições e de efetivo debate, superada a estrutura “apenas palestras em que um fala e o restante escuta” em favor de um modelo que favorece, de fato, que sejam apresentadas visões diferentes sobre um mesmo tema. Existem aqueles que adoramos uma boa discussão (sigo na lista de espera para as mesas com o professor Emerson Gabardo, de quem tenho a honra de sempre perder, não sem antes nos divertirmos e batalharmos um bocado), os que são de uma altivez impressionante (como a nossa querida homenageada de 2018, a professora Maria Sylvia Zanella di Pietro), aqueles que têm uma gentileza ímpar (como o professor Valmir Pontes Filho e nosso atual Presidente do IBDA Fabrício Motta), grandes e bravas oradoras (como as professoras Cristiana Fortini e Vanice Lírio), dentre tantos outros, cada um com seu universo de peculiaridades e carisma. Convicções distintas, às vezes radicalmente opostas, ideias que se digladiam no campo do Congresso para, em seguida, nos permitirmos um convívio social prazeroso, em que a leveza cotidiana mescla-se com problemas acadêmicos que se misturam aos desafios do Estado e que terminam em brindes que se conformam diante das dificuldades ainda insuperáveis.
O curioso é que, apesar de tantas diferenças, há um coletivo que é maior que cada integrante do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, tendo por resultado um equilíbrio entre as posições distintas que faz surgir algo maior e melhor. O coletivo não suprime as individualidades e estas não o exterminam; ao contrário, delas surge uma rede superior com a qual nos comprometemos. Concordamos, inclusive, em divergir, democraticamente enquanto a tecemos e refazemos, sempre e mais uma vez; fio a fio tentamos descobrir, a cada encontro, como usufruir das discussões que nos fazem crescer e mudar ou manter as próprias ideias. Em tempos de intolerância e radicalismo, um desafio e tanto: preservar a subjetividade construída engendrados em um plano coletivo que, como rede, ampara e protege o essencial e ainda é capaz de lançar novas ideias.
2. Um coletivo que se reafirma em face das críticas. A ideia do público e sua supremacia.
As diversas ciências humanas passam por ciclos de “crise de paradigmas”, com direito a questionamentos relativos às suas bases anteriores, por mais essenciais que parecessem, até então, os fundamentos da disciplina. Assim, tem-se na sociologia e na filosofia discussões sobre o próprio caráter binário dos conceitos indivíduo/coletivo, o que se reforça com a noção de redes integradas, constituídas por subredes, as quais se articulam e precisam ser coordenadas. Dentre as transformações do Direito Administrativo, alguns estudiosos destacam a “dessacralização da supremacia do Estado”, o questionamento da ideia de interesse público ou da existência do coletivo que funcione como parâmetro de atuação estatal. A esse respeito, adverte-se: é preciso equilíbrio ao ponderar as transformações e inovações, diante das necessidades administrativas e sociais, atentando-se para o conteúdo noções científicas basilares. É sob essa perspectiva que se entende adequada uma posição cautelosa que reconheça a importância do direito público em determinadas searas, sendo a noção de supremacia indispensável em parte das atividades do Estado, com o consequente reconhecimento da relevância das noções de interesse público e de preservação do coletivo.
Identificam-se críticas acirradas ao que alguns estudiosos consideram uma visão clássica do princípio da supremacia do interesse público em contraponto à legalidade administrativa, com enquadramento histórico à época do Estado Liberal. Critica-se a manutenção dos atributos dos atos administrativos, as prerrogativas processuais e de intervenções do Estado na propriedade que tenham fundamento na ideia de supremacia do interesse público. Isso porque é questionada a própria existência da supremacia do interesse público e, ainda, sobre a pluralidade de significações atribuídas à noção de interesse público.
A esse respeito, reconhece-se que a evolução histórica da supremacia do interesse público não mais corresponde à noção surgida à época do Estado Liberal, mas sim à hoje equivalente ao interesse da sociedade, integrante da própria ideia de legalidade ampla e não abrangente do denominado “interesse secundário”. Defende-se, ainda, a ideia de um “Estado Solidário”, de um “Estado Fraterno”, que implicam a construção de uma perspectiva coletiva, a qual requer alteridade e a existência de um espaço público no qual se alcance a supremacia do bem comum.
Para Eberhard Schmidt-Assmann, “Por bem-estar geral (bem comum) deve-se entender o interesse comum formado a partir da conjunção de muitos interesses especiais, públicos e privados. Na atuação cotidiana da Administração, este interesse comum vem a ser o interesse público que se evidenciou como susceptível de realização no marco da respectiva legislação setorial. A determinação do que seja bem-estar geral é uma questão que depende, ademais, de todo o direito positivo, o qual oferece normalmente, para resolvê-la, regras de procedimento e critérios materiais.”[1] Segundo autores como Alice Gonzalez Borges, trata-se de um interesse pertinente à sociedade que, malgrado possa se afigurar como um somatório de interesses individuais coincidentes de um grupo de pessoas integrantes da sociedade, surge com um conteúdo próprio transcendente dos interesses exclusivamente pessoais, traduzindo “um querer valorativo predominante na comunidade”.[2] Alexandre Santos de Aragão pondera à propósito da noção de interesse público: “Com efeito, as concepções anglo-saxônicas e européias do interesse público sempre foram bastante distintas. Enquanto nos EUA e no Reino Unido o interesse público era considerado como intrinsecamente ligado aos interesses individuais, sendo próximo ao que resultaria de uma soma dos interesses individuais (satisfação dos indivíduos = satisfação do interesse público); nos Estados de raiz germânico-latina, o interesse público era considerado superior à mera soma dos interesses individuais, sendo superior e mais perene que eles, razão pela qual era protegido e perseguido pelo Estado, constituindo o fundamento de um regime jurídico próprio, distinto do que rege as relações entre particulares. A evolução liberalizante do Estado, combinada com a visão de um Estado cada vez mais garantidor, não limitador, de direitos fundamentais, está fazendo com que a noção européia continental de interesse público esteja se aproximando daquela anglo-saxônica.”[3]
Cumpre assentar que a expressão “interesse público” não apresenta sentido unívoco. Com efeito, interesse público não é apenas um conceito jurídico indeterminado, mas uma expressão equívoca cujos significados variam, desde a soma de interesses particulares, até a fixação de um interesse social específico distinto dos particulares, passando pela soma de bens e serviços, bem como pelo conjunto de necessidades humanas indispensáveis à realização dos diversos destinos individuais. Não se ignore uma das principais controvérsias a propósito do conceito, a saber, a dicotomia entre interesse público primário e secundário, conforme leciona o professor Marçal Justen Filho: “Deve-se ter em vista que nenhum interesse público se configura como conveniência egoística da Administração Pública. O chamado interesse secundário (Alessi) ou interesse da Administração Pública não são públicos. Aliás, nem ao menos são interesses, na acepção jurídica do termo. São meras circunstâncias, alheias ao Direito.”[4]
Sendo assim, admite-se a ideia de interesse público primário, o qual somente se define diante do caso concreto, de modo que se identifique a realização de qual interesse coletivo encontra-se protegido pelo ordenamento. Para tanto, deverão ser ponderadas as plúrimas normas de regência e reconstruída sua significação possível diante das especificidades da realidade em questão. Sem violência, sem arbítrio, sem destruição da subjetividade individualizada também protegida pelo texto constitucional, sem abusos nem excessos, intolerados pela Lei Maior.
3. Existe um princípio da supremacia do interesse público?
Aqueles que apresentam uma visão crítica sobre o tema no âmbito do Direito Administrativo discutem a própria viabilidade de se falar em princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Nesse sentido, Humberto Bergmann Ávila pontua que a Constituição brasileira, por meio de normas-princípios fundamentais (artigos 1 a 4), dos direitos e garantias fundamentais (artigos 5 a 17) e das normas princípios gerais protege a liberdade, a igualdade, a cidadania a segurança e a propriedade privada de tal modo que, se se tratasse de uma regra de prevalência abstrata, seria em favor dos interesses privados em vez dos públicos: “A Constituição brasileira, muito mais do que qualquer outra, é uma Constituição-cidadã, justamente pela particular insistência com que protege a esfera individual e pela minúcia com que define as regras de competência da atividade estatal.”[5] O argumento é o de que há, na Constituição, uma valoração abstrata e relativa do indivíduo, incluindo-se seus interesses, o que impediria falar-se em um princípio da supremacia do interesse público que surgiria em absoluta contradição com outras normas-princípio, sobretudo com os postulados normativos da proporcionalidade. Outrossim, a indeterminabilidade empírica a ele inerente iria de encontro ao postulado da explicitude das premissas, decorrente da própria segurança jurídica. Ademais, seria necessária previsão normativa de tal princípio, como ocorre com qualquer intervenção estatal, mormente em se considerando a ausência de significado autônomo da expressão interesse público e a falta de referibilidade constitucional.
Também Fábio Medina Osório assevera que um princípio jurídico de supremacia “não encontra fundamento de validade, simplesmente porque não pode ser descoberto no ordenamento jurídico por meio de qualquer método (dedução ou indução, análise das palavras ou do seu conjunto, etc.) (…) Trata-se, em verdade, de um dogma até hoje descrito sem qualquer referibilidade à Constituição vigente. A sua qualificação como axioma bem o evidencia. Esse nominado princípio não encontra fundamento de validade na Constituição brasileira. Disso resulta uma importante conseqüência, e de grande interesse prático: a aplicação do Direito na área do Direito Administrativo brasileiro não pode ser feita sobre o influxo de um princípio de prevalência (como norma ou como postulado) em favor do interesse público.”[6] Sob esse prisma, a conclusão crítica é a de que a superioridade do interesse público em relação ao privado não poderia ser reconduzida à normatividade própria da Constituição Federal, a qual protegeria, precipuamente, os interesses do indivíduo como no preâmbulo e nos seus artigos 1°, 3° a 17, 170, 196, 201, 206, 220, 226 e 227.
Também o constitucionalista Daniel Sarmento defende a absoluta inadequação do princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, invocando os riscos que sua assunção representaria para a tutela dos direitos fundamentais. Segundo o professor carioca, é preciso atentar para a indeterminação do conceito de interesse público, em profunda crise no contexto de fragmentação e pluralismo das sociedades contemporâneas, nas quais se torna por vezes impossível extrair, à moda de Rousseau, uma noção homogênea de bem comum ou de vontade geral. A indeterminação semântica do conceito, sob esse ponto de vista, poderia permitir às autoridades públicas que o manuseiam as mais perigosas malversações, sendo cabível tornar-se a ressurreição das “razões de Estado como obstáculo intransponível para o exercício de direitos fundamentais”, o que se agravaria, no Brasil, em face da lógica do patrimonialismo, das relações de confiança, da amizade e do compadrio – jeitinho –, que prevalecem sobre a ordenação imparcial. Nesse contexto, o discurso da supremacia do interesse público encerraria grave risco para a tutela dos direitos fundamentais, cuja preservação passa a depender de valorações altamente subjetivas feitas pelos aplicadores do direito em cada caso. Seria, portanto, inadmissível que os direitos fundamentais, já na largada do processo ponderativo, partissem em franca desvantagem em relação aos interesses públicos, o que seria flagrante descompasso com a ordem constitucional brasileira.[7]
Em primeiro plano, não há razão para se imputar arbitrariedade ou abuso como realidades intrínsecas à observância do coletivo e à supremacia do interesse público em face de interesses privados. Muito menos se entende que falar em supremacia do interesse público como um dos princípios integrantes do regime jurídico administrativo significa potencial ou automático descumprimento dos direitos fundamentais. Ao contrário, o que se postula é reconhecer a existência da ideia de um coletivo cuja proteção se impõe ao Estado como um elemento vinculante do seu comportamento, a ser ponderado em face das demais normas do regime jurídico administrativo.
Em excelente artigo sobre a matéria, os professores Daniel Hachem e Emerson Gabardo explicitam que a noção de interesse público não é invariável no tempo e no espaço, adaptando-se de acordo com a época e o país. Assim, no Estado liberal burguês, o respeito ao interesse público estava na inexistência de obstáculos impostos pelo Poder Público ao exercício das liberdades, notadamente na esfera econômica, mas não é só: o interesse privado se colocava diante do interesse público, eis que o bem comum não era algo materialmente definido pelo Estado ou pela coletividade: ele estaria no livre desenvolvimento das vontades individuais, limitadas às fronteiras estabelecidas pela lei. Havia a ilusão de que seria possível homogeneização dos interesses sociais, pressupondo sociedade homogênea, capaz de resumir todos os interesses individuais a um denominador comum, descrito nos textos legais: “Nesse sentido, pode-se inferir que no período pós-revolucionário vigia na França uma perspectiva individualista de interesse público, de bem comum, ou até mesmo de felicidade.” Invocando a lição de Alfonso Santiago, os autores explicitam três visões radicalmente distintas do homem: i) o individualismo; ii) o coletivismo ou totalitarismo e iii) o personalismo solidário, sendo a noção de bem comum no momento histórico em exame inseria-se na primeira concepção individualista.
Os professores paranaenses advertem, contudo, para a impossibilidade de encontrar identidade entre essa noção de interesse público (França de fim do século XVIII e início do XIX) com o significado contemporâneo atribuído a essa expressão no Direito Administrativo Brasileiro. O próprio sentido da supremacia do interesse público liberal construído no século XIX com base na autonomia privada apresenta sustentação diversa da supremacia do interesse público como princípio do regime jurídico administrativo típico do Estado do bem estar social do final do século XX. Afinal, a concepção contemporânea do interesse público acomoda-se à perspectiva de personalismo solidário que se pauta na identificação do interesse público no seio de um sistema constitucional positivo, e não na abstrata vontade geral do povo. Outrossim, experiências arbitrárias ou não democráticas topicamente consideradas não desabonam créditos inerentes ao avanço que uma teoria ocasionou. Atualmente, “O interesse público, hodiernamente, traduz uma noção distinta daquela compartilhada no liberalismo oitocentista, a qual, por sua vez, já retratava um progresso em prol do indivíduo se comparada com a concepção característica do Estado Absolutista. Hoje, é possível admitir a sua supremacia como princípio do regime jurídico informador do Direito Administrativo sem qualquer constrangimento, desde que se compreenda adequadamente o que se quer significar com tal locução.” Isso porque se entende o interesse público como resultante da parcela coincidente dos interesses individuais de determinada sociedade, externado pela dimensão coletiva desses interesses e fixado pelo próprio direito: sem perigo de confusão com o interesse secundário, relativo aos anseios da máquina estatal ou da pessoa física do administrador público.[8]
Além de se aquiescer com tais ponderações, não se entende que eventual contraposição entre o interesse público e o interesse privado conduza à negação da supremacia do primeiro. O fato de se exigir ponderação entre a necessidade de predomínio do bem comum e outros princípios condicionantes da atuação estatal e protetivos dos interesses privados não significa impossibilidade de prevalecimento do interesse público. Não se pode olvidar, ainda, que em vários dispositivos constitucionais encontram-se elementos indutores do princípio da supremacia, imanente ao texto da CR/88: assegura-se o direito de propriedade e, em contrapartida, a Constituição reconhece o poder de o Estado desapropriar em vários dispositivos como o art. 5°, XXXIV (desapropriação mediante prévia e justa indenização em dinheiro), artigo 184, caput (desapropriação para fins de reforma agrária) e artigo 182, § 4°, III (desapropriação para fins de reforma urbana) objetivo de atender o interesse geral, malgrado algum sacrifício individual decorrente de tais atividades. Além disso, tem-se outros dispositivos constitucionais como o artigo 3°, IV, que coloca como um dos objetivos fundamentais da República a promoção do bem de todos; o artigo 66, § 1°, que prevê a competência de o Presidente da República vetar total ou parcialmente projetos de lei contrários ao interesse público; o art. 192 que obriga o sistema financeiro a servir aos interesses da coletividade e até mesmo o art. 193 que também impele a ordem social a objetivar o bem-estar social. Também evidenciam tal supremacia prerrogativas processuais que não são privilégios, mas, ao contrário, são instrumentos de proteção dos interesses públicos e encontram amplo fundamento nos princípios da isonomia e da proporcionalidade. Encontram-se na legislação em vigor, como, v.g., a lei de processo administrativo federal, benefícios materiais e processuais que evidenciam a supremacia do interesse público em face do individual, sendo flagrante, nestes casos, a razoabilidade do sacrifício particular em favor da coletividade.
Também se entende equivocado pretender retirar do princípio da dignidade da pessoa humana o fundamento com base em que é possível negar a existência da supremacia do interesse público (não significa prevalência do indivíduo em face do coletivo); ao contrário, exatamente em razão do fato de o interesse da coletividade prevalecer, como regra, em face dos interesses individuais, é mister estabelecer padrões mínimos de garantia da proteção privada. Em outras palavras: como os interesses da sociedade devem ter prevalência em relação aos interesses dos indivíduos, é necessário que os direitos dos cidadãos tenham um núcleo mínimo garantístico fixado no próprio texto constitucional.
Nesse contexto, postula-se que a própria Constituição evidencia fundamentos com base em que pode o Estado restringir o exercício de direitos individuais em prol dos interesses da coletividade: inadmissível negar preservação à supremacia do interesse público, na hipótese de conflito com interesses privados. Adverte-se que em nenhum momento cogita-se da predominância dos interesses governamentais transitórios em detrimento de legítimas prerrogativas individuais. Também não se trata de fundamentar o despotismo ou de um Estado autoritário em desfavor de uma comunidade rebaixada à condição de súditos da Idade Média. O que se assegura é a prevalência do bem comum na hipótese de eventual conflito com interesses individuais de determinados grupos privados ou de um particular, sendo esse um elemento a ser considerado pelo Poder Público no exercício das suas competências.
Sublinha-se que o interesse público não é único, claramente identificável e incidente, sempre de modo exclusivo, em uma dada situação (multiplicidade de interesses cuja proteção tantas vezes cabe ao Estado, simultaneamente, em uma mesma situação concreta).
A esse propósito, lembra-se a lição de Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto: “Decorre daí que a noção de homogeneidade do interesse público tem que dar lugar à idéia de heterogeneidade de interesses públicos. (…) Significa apenas que o interesse público não pode mais subsistir (nem na prática política, nem na formulação doutrinária) de forma absoluta e autoritária, justamente para evitar que ele se transforme em ‘mera aparência, com que muitas vezes se busca um excesso ou um desvio de poder’. (…)
A questão central parece ser a da efetivação de um interesse público primário em detrimento de outro interesse público, também primário. (…)o ponto nuclear diz respeito, diretamente, à questão do poder de decidir acerca do que seja o interesse público primário no caso concreto (mormente em situações-limite) quando para tanto muito não serve a genérica prescrição legal.”[9]
Reconhece-se que, nas situações específicas de multiplicidade de interesses públicos, não há bem comum abstratamente considerado que devesse prevalecer sobre os interesses particulares eventualmente envolvidos. Deve a ponderação de interesses ser feita in concreto, à luz dos valores constitucionais envolvidos, mormente se se considerar que numa sociedade complexa e pluralista não há apenas um interesse público, mas muitos (preservação da saúde pública, maior liberdade de expressão, combate ao déficit público, melhoria e ampliação dos serviços).
A esse respeito, já advertiu Luis Felipe Sampaio, em análise crítica sobre as diversas posições sobre a matéria, que “Ao contrário de uma divergência, parece haver similitude entre as posições “pois, na verdade, ambas defendem que a definição do conteúdo de interesse público não poderá ocorrer de forma abstrata e a priori. Logo, parece não haver razão para se sustentar, nestes casos, uma supremacia do interesse público, mas, apenas, que é possível alcançar o interesse público, esteja ele caracterizado, no caso concreto, por um interesse coletivo, particular, ou por uma acomodação entre ambos.” [10]
4. Conclusão
Diante de tais ponderações, reconhece-se não só a existência da ideia de coletivo, da possibilidade de aferir o interesse público em cada situação específica, mas também prevalência aos interesses da coletividade (interesses públicos primários) na hipótese de confronto com interesses individuais. Assim:
a) a supremacia do interesse público primário (pertinente a toda a sociedade) é princípio integrante do regime jurídico administrativo;
b) é possível que haja, em dadas situações, convergência entre interesses privados e interesse público ou atividade particular protetora do bem comum, sem qualquer tensão que torne necessário falar-se na primazia do interesse público;
c) na hipótese de conflito entre interesse público e interesses privados, a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais não embasa a negativa de predomínio do bem comum, sendo este o interesse geral a ser tutelado pela Administração, o que não significa arbítrio ou autoritarismo, mas efetividade do Estado Democrático de Direito;
d) não conduz à negação da primazia do interesse público primário o fato deste não ser sempre único, claramente identificável e incidente, de modo exclusivo, em uma dada realidade; o caráter dinâmico e a multiplicidade de interesses públicos inerente ao mundo contemporâneo apenas torna cabível a técnica da ponderação entre os diversos interesses, em face de cada situação específica, à luz da proporcionalidade.
Render-se à existência do princípio da supremacia do interesse público não quer dizer negar a existência de outros princípios como o da boa-fé objetiva, da isonomia, da segurança jurídica ou da dignidade da pessoa humana. Falar em coletivo não significa suprimir o indivíduo, excluída a oposição binária de conceitos como uma única alternativa científica. O fato de, em inúmeros casos, ser necessário ponderar princípios em face de realidades específicas, excluída a possibilidade de se afirmar uma prevalência absoluta e apriorística da supremacia do interesse público ou de qualquer outro princípio, não autoriza negar a supremacia do interesse coletivo como um dos princípios integrantes do regime jurídico administrativo. Inserir o indivíduo em uma coletividade não lhe suprime a subjetividade característica, ambas construídas continuamente como no Mito de Sísifo, eterno companheiro.
Os professores de Direito Administrativo esperamos vocês na próxima segunda-feira em Florianópolis para fazer mais uma parte da rolagem até o topo da montanha. S’imbora juntos, pessoal! O Congresso Brasileiro de Direito Administrativo de 2018 já é um sucesso.
[1] SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. La teoría general del derecho administrativo como sistema. Tradução de Javier Barnés Vázquez. Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública, 2003. p. 166-167
[2] BORGES, Alice Gonzalez. Valores a serem considerados no controle jurisdicional da administração pública: segurança jurídica, boa-fé, conceitos indeterminados, interesse público. Interesse Público, v. 15, p. 94, jul./set. 2002
[3] ARAGÃO, Alexandre Santos de. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica do direito público contemporâneo. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, NDJ, v.21, n.10, p.1.140, out. 2005
[4] Revista Trimestral de Direito Público, v. 11, p. 51-52
[5] ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o ‘Princípio da Supremacia do Interesse Público’ sobre o Particular. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, n. 24, p. 166, 1998
[6] OSÓRIO, Fábio Medina. Das sanções da lei 8.429/92 aos atos de improbidade administrativa. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, v. 24, p. 170 e 172, 1998
[7] SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos versus Interesses privados. Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen, 2005, p. 27; 38; 89; 102
[8] GABARDO, Emerson. HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do Direito Administrativo: uma crítica da crítica. In Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 33-36; 45; 59-60; 62-63
[9] MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 151
[10] SAMPAIO, Luis Felipe. Gestão pública democrática e suas relações com supremacia do interesse público, discricionariedade administrativa e transparência, Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo: editora Revista dos Tribunais, ano 3, v. 19, p. 25, jul-ago 2015