1. Novos diplomas do ordenamento brasileiro: Lei Federal nº 13.655, de 25.04.2018, trazendo novos dispositivos à LINDB; Decretos Federais nº 9.412, de 18.06.2018, e nº 9.450, de 24.07.2018
1.1. LINDB
Dentre os novos diplomas editados em 2018, destaca-se a Lei Federal nº 13.655, de 25.04.2018, que deu nova redação a vários dispositivos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, os quais apresentam atualmente a seguinte redação:
“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
Parágrafo único. (vetado).
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
Art. 25. (vetado).
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
§ 1º O compromisso referido no caputdeste artigo:
I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;
II – (vetado);
III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;
IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
§ 2º (vetado).
Art. 27. A decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos.
§ 1º A decisão sobre a compensação será motivada, ouvidas previamente as partes sobre seu cabimento, sua forma e, se for o caso, seu valor.
§ 2º Para prevenir ou regular a compensação, poderá ser celebrado compromisso processual entre os envolvidos.
Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
§ 1º (vetado).
§ 2º (vetado).
§ 3º (vetado).
Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.
§ 1º A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e demais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver.
§ 2º (vetado).
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.”
Denota-se que a Lei nº 13.655/2018 incide especificamente na criação e aplicação do Direito Público, em especial do Direito Administrativo. Dentre as novas regras da LINDB, destacam-se as que positivaram exigências quanto à motivação dos comportamentos estatais de natureza administrativa e de controle.
É indispensável interpretar tais novas normas de modo a preservar o sistema jurídico, assegurar efetividade à LINDB e não comprometer o interesse público primário: “Em linguagem coloquial, cabe dizer: é preciso cuidado para o remédio aplicado para salvar não termine por matar o doente. Sim, o nosso sistema administrativo e de controle anda padecendo de patologias graves, dentre as quais vislumbramos excessos, arrogâncias dos seus agentes, incapacidade de reconhecer os próprios erros, disputas institucionais por poder e vários outros problemas que comprometem uma vida saudável em sociedade. No entanto, é preciso maturidade para não acreditar que qualquer remédio é capaz de combater esses males. O Brasil, de fato, não é para amadores. A captura de esferas de poder, em momentos de fragilidade máxima, é elemento histórico que não podemos ignorar. E se não tomarmos cuidado, os instrumentos invocados para ‘cura’ dos problemas podem trazer patologias piores ao já frágil sistema estatal, com maiores danos impostos aos cidadãos, já reféns de incompetência e práticas corruptas. No tratamento das doenças, especificamente no que tange às novas normas da LINDB, é indispensável que o resultado das interpretações jamais seja a blindagem dos erros e desvios, nem signifique a paralisação de competências de controle e administrativas indispensáveis na realidade brasileira. Para tanto, cabe aos juristas construir, passo a passo, mecanismos que viabilizem o atendimento das finalidades decorrentes das regras introduzidas pela Lei Federal nº 13.655/2018, sem fazer ruir as demais regras constitucionais e legais, valendo-se de institutos vários do direito público, os quais devem se articular, de modo coordenado, de modo a se alcançar algum significado razoável, bem como efetividade sistêmica do ordenamento.”
Outro ponto relevante foi o tratamento dado à segurança jurídica que assumiu grande importância no Direito Administrativo nos últimos anos: serve de fundamento, em determinadas situações, para modulação de efeitos em caso de inconstitucionalidade e para exclusão dos efeitos retroativos da invalidação de atos ampliativos de direito. A necessidade de segurança jurídica foi incorporada pela Lei nº 13.655/2018 em diversos dispositivos da LINDB, inclusive com previsão de compromissos de ajustamento de conduta que busquem encerrar insegurança jurídica e atribuição de natureza vinculante às respostas de consultas feitas por órgãos públicos e entidades administrativas. Não se ignore o foco significativo dado à “confiança legítima” para proteger quem se relaciona com a Administração Pública, face a que se tem dado primazia no controle dos comportamentos estatais. A esse propósito, confira-se artigo sobre a matéria publicado no “Direito Administrativo para Todos”.
Além disso, outros aspectos relevantes, como, v.g., novos parâmetros para a responsabilização de servidores, foram tratados em edição especial da Revista de Direito Administrativo disponibilizada digitalmente com artigos sobre a LINDB, de modo a ampliar a discussão e a visão crítica de todos os estudiosos e profissionais do direito público.
1.2. Decreto Federal nº 9.412/2018 (novos valores para modalidades licitatórias da Lei nº 8.666 conforme critério quantitativo)
Não se ignore que o Decreto Federal nº 9.412, de 18.06.2018, alterou os valores os quais definem o cabimento das modalidades licitatórias da Lei nº 8.666/93, segundo o critério quantitativo. Com a atualização dos valores previstos no artigo 23 do Estatuto das Licitações, com a redação dada pela Lei Federal nº 9.648/98, temos os seguintes limites máximos, incidentes conforme o valor estimado de cada contratação:
“I – para obras e serviços de engenharia:
a) na modalidade convite – até R$ 330.000,00 (trezentos e trinta mil reais);
b) na modalidade tomada de preços – até R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais); e
c) na modalidade concorrência – acima de R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais); e
II – para compras e serviços não incluídos no inciso I:
a) na modalidade convite – até R$ 176.000,00 (cento e setenta e seis mil reais);
b) na modalidade tomada de preços – até R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais); e
c) na modalidade concorrência – acima de R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais).”
A partir daí, inúmeros questionamentos se colocaram: a constitucionalidade de se promover a revisão dos valores que definem o cabimento das modalidades licitatórias (concorrência, tomada de preços e convite) da Lei 8.666 em decreto federal, a vinculação dos demais entes federativos ao disposto no Decreto nº 9.412/2018, a possibilidade de alteração dos patamares fixados como limites por Estados, Municípios e DF em lei específica ou no exercício do poder regulamentar ou regulatório, bem como a legitimidade de se considerar o IPCA dos últimos vinte anos, tendo em vista que a União Federal não exerceu a competência do artigo 120 da Lei Federal nº 8.666 desde a alteração promovida pela Lei Federal nº 9.648/98 nos incisos I e II do artigo 23 do Estatuto licitatório. Tais aspectos foram analisados em artigo igualmente disponibilizado no “Direito Administrativo para Todos”.
1.3. Decreto Federal nº 9.450/2018 (ação afirmativa para ressocialização de presos e egressos com repercussão nas licitações públicas e nos contratos administrativos)
É de se destacar, cumulativamente, o Decreto Federal nº 9.450, de 24.07.2018, ao instituir a Política Nacional de Trabalho no âmbito do sistema prisional, prevê mecanismos de inclusão dessa mão de obra nos quadros das empresas contratadas pela Administração Pública, buscando ressocializar os presos e egressos nos estritos limites da igualdade positiva. Nos termos do novo parâmetro normativo, explicitou-se como legítima a previsão no edital e na minuta de contrato da obrigação de contratados pelo Poder Público da União (administração direta, autárquica e fundacional) empregarem essa mão de obra conforme os percentuais indicados no artigo 6º do referido regulamento, com previsão de implantação pela União, de modo articulado com os demais entes federativos. Em artigo publicado sobre a matéria, restaram indicados os fundamentos com base em que se considera ofensiva à reserva legal e à competência do inciso XXVII do artigo 22 da Constituição da República a exigência, como condição de habilitação jurídica, de “declaração do licitante de que, caso seja vencedor, contratará pessoas presas ou egressos nos termos deste Decreto, acompanhada de declaração emitida pelo órgão responsável pela execução penal de que dispõe de pessoas presas aptas à execução de trabalho externo”, com a devida vênia dos entendimentos contrários. Também se explicitou a necessidade de acompanhamento simultâneo e posterior dos procedimentos realizados, capaz de garantir a eficiência dos programas afirmativos que direcionam o uso do poder de compra do Estado para inclusão dos presos e egressos do sistema prisional.
2. A jurisprudência do STF no ano de 2018
2.1. Imprescritibilidade em caso de improbidade administrativa decorrente de comportamento doloso (RG-RE nº 852.475-SP)
Dentre as decisões proferidas pelo STF no ano de 2018, incumbe dar destaque especial à que tratou da prescrição na hipótese de improbidade administrativa. Ao decidir o Recurso Extraordinário nº 852.475-SP, o Pleno, por maioria de votos, reconheceu a imprescritibilidade de ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de ato doloso de improbidade administrativa.
No Informativo 910 do STF, foi noticiado o reajustamento de voto pelo Ministro Edson Fachin, segundo quem “a imprescritibilidade da ação de ressarcimento se restringe às hipóteses de atos de improbidade dolosa, ou seja, que impliquem enriquecimento ilícito, favorecimento ilícito de terceiros ou dano intencional à Administração Pública. Para tanto, deve-se analisar, no caso concreto, se ficou comprovado o ato de improbidade, na modalidade dolosa, para, só então e apenas, decidir sobre o pedido de ressarcimento.” Para o ministro Fachin, a ressalva contida no § 5º do art. 37 da CR diz respeito a dois regramentos distintos relacionados à prescrição, quais sejam, “Um para os ilícitos praticados por agentes, sejam eles servidores ou não, e outro para as ações de ressarcimento decorrentes de atos de improbidade, dotadas de uma especialidade ainda maior”, tendo asseverado que a matéria diz respeito à tutela dos bens públicos e que “Não há incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito sustentar a imprescritibilidade das ações de ressarcimento em matéria de improbidade, eis que não raras vezes a prescrição é o biombo por meio do qual se encobre a corrupção e o dano ao interesse público”. Ainda conforme entendimento do Ministro Fachin, “a segurança jurídica não autoriza a proteção pelo decurso do lapso temporal de quem causar prejuízo ao erário e se locupletar da coisa pública. A imprescritibilidade constitucional não implica injustificada e eterna obrigação de guarda pelo particular de elementos probatórios aptos a demonstrar a inexistência do dever de ressarcir, mas na confirmação de indispensável proteção da coisa pública.” Os ministros Roberto Barroso e Luiz Fux reajustaram os seus votos, tendo sido aprovada a seguinte tese proposta pelo ministro Edson Fachin, para fins de repercussão geral: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”. (RE nº 852.475-SP, rel. Min. Alexandre de Moraes, relator p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgamento em 08.08.2018, Informativo 910 do STF)
A posição pessoal sobre a imprescritibilidade do ressarcimento pelos danos causados por improbidade administrativa tem seus argumentos disponíveis em artigo publicado no “Direito Administrativo Para Todos”.
Em especial, indicou-se o fato de a discussão no Plenário no STF viabilizar “a absorção do entendimento de que falar em imprescritibilidade não é algo de um Estado autoritário e que abusa do direito de terceiros. Ao contrário, num momento em que se busca fazer os sistemas administrativos e jurisdicionais alcançarem finalidades constritivas de abusos de agentes públicos, uso indevido de patrimônio do Estado, desvio de verbas públicas e tantos outros graves ilícitos de improbidade e criminosos, representa comprometimento com a Constituição reconhecer que ela excluiu do legislador ordinário o poder de fixar prazo de prescrição quando se trata de prejuízo sofrido pelo erário em razão de conduta ilícita de agente público, em especial a de improbidade. Uma simples leitura da parte final do § 5º artigo 37 da CR deixa claro a imprescritibilidade que decorre da ressalva às ações de ressarcimento da lei futura que estabelecerá prazos de prescrição para ilícitos praticados por agentes. O constituinte não admitiu a ingerência de norma inferior que dispusesse prazos de prescrição para os ilícitos, recusando competência ao Poder Legislativo nesta matéria.
Consequentemente, a despeito de ser anômala, a imprescritibilidade deve ser reconhecida no sistema jurídico quando expressa como exceção constitucional, considerando valores superiores de interesse público que se busca proteger. Os valores aqui em questão não se limitam, à obviedade, aos interesses materiais dos cofres públicos, mas principalmente em manter incólume o patrimônio da sociedade entregue à administração dos agentes competentes, o qual tenha sido anteriormente prejudicado por comportamento ilícito de alguém que deveria, ao contrário, sempre protegê-lo. Não só servidores, mas cidadãos e pessoas jurídicas que se relacionam com o Estado têm a obrigação de não dilapidar o patrimônio público, nem de promover enriquecimento ilícito indevido de outrem às custas do erário, nem mesmo de cometer ofensas graves a normas fundamentais do regime jurídico administrativo.
Vivemos em um tempo em que o combate à corrupção e à desonestidade se coloca como uma necessidade social prioritária. Não se trata de confundir essa obrigação de buscar uma realidade administrativa mais honesta e regular com verdadeira caça às bruxas eterna. Trata-se, ao contrário, de destacar a importância de combater o hábito da malversação de recursos públicos e de fixar um prazo para o sancionamento devido, à exceção do ressarcimento integral uma vez que é absurdo imaginar o resultado da desonestidade incorporando, com definitividade, ao patrimônio do desonesto e da sua família. Está em jogo, neste ponto, a moralidade administrativa, a supremacia do interesse público, a dignidade mínima de o ordenamento evitar que um indivíduo responsável por um ato ilícito de improbidade ainda venha a usufruir economicamente ou simplesmente livrar-se das consequências do seu comportamento indevido, com sacrifício dos interesses e necessidades de toda a sociedade. Não se reputa em paz social uma comunidade que, na ausência do art. 37, § 5°, da CR, seria obrigada a assistir ímprobos beneficiarem-se de valores que deveriam integrar o erário e, ainda, favorecê-la. Tal condescendência absurda seria temerária, pois comprometeria a ordem pública e a possibilidade de pacificação social, causando reações que resultariam a insegurança jurídica. A isto se acresce a manifesta dificuldade de apuração de improbidades e até mesmo dos danos causados ao Poder Público. Foram estes os aspectos considerados pelo constituinte ao redigir a parte final do § 5° do artigo 37 da Constituição, ausente qualquer dúvida razoável quanto ao significado da norma em tese.
(…)
Ademais, afigura-se teratológico que verbas resultantes de improbidade que implique desvios do erário, prejuízos ao patrimônio do Estado, atos flagrantemente desonestos como os descritos na Lei nº 8.429/92, permaneçam nas mãos dos filhos e netos de ímprobos (quando não criminosos). Não se esqueça que, em tantas situações, tem-se durante algum lapso temporal a omissão do Estado em buscar ressarcimento, como resultado da conivência também criminosa dos agentes competentes para tanto. Sublinhe-se que o início do prazo prescricional do artigo 23 da somente ao fim do mandato atinge apenas alguns agentes públicos como os servidores comissionados e agentes políticos, sem alterar o termo inicial da prescrição no que tange, p. ex., a servidores estatutários efetivos cujas improbidades podem permanecer disfarçadas durante todo um tempo de gestão governamental, suficiente para ultrapassar o prazo prescricional fixado nos Estatutos para demissão a bem do serviço público. Ultrapassado esse prazo, por expressa determina da Lei nº 8.429/92, o ímprobo estará livre de ressarcir os cofres públicos dos danos que causou a toda à sociedade, com condutas desonestas, graves e merecedoras de firme repulsa.
Não se esqueça que afirmar a prescrição como regra, contrariamente a texto expresso da Constituição, implica a eternização de um dos piores males da Administração: a omissão em sanar erros graves, os quais prejudicam, em última instância, apenas a sociedade. Com efeito, quando se declara prescrita a pretensão da Administração se ressarcir diante de ofensa de improbidade, atende-se o perdão esperado pelo infrator, isentam-se os servidores do Estado do trabalho de coletar ou até mesmo instruir o procedimento administrativo que viabilizará o ressarcimento, finda-se com a obrigação do advogado público ajuizar a competente ação indenizatória e se encerra com a possibilidade de trazer mais uma ação ao Poder Judiciário. Tem-se ausência de trabalho e de desconforto a todos. O único sacrificado é o interesse da sociedade que, embora protegido pela Constituição, torna-se refém de interpretações que, desde 1988, buscam sempre excluir a imprescritibilidade, escolha clara e legítima do constituinte originário. Não se entende que a essas consequências, graves e teratológicas, pode ser imputada base constitucional.
Com redobradas vênias aos posicionamentos contrários, a frágil assertiva de que o direito de defesa estaria comprometido não se sustentatendo em vista que o Poder Público só terá sucesso na ação ressarcitória se a própria Administração provar a improbidade e os prejuízos, não se admitindo no direito processual brasileiro impor a alguém o ônus de prova negativa, nem mesmo se afastando do autor da demanda o dever de fazer prova do seu fato constitutivo. A sensação que atinge os estudiosos do direito público é que, a cada tentativa de repressão a atos corruptos que vitimam o Estado e a sociedade brasileira, sobrevém fundamentos cujo resultado final é que ‘tudo termine em pizza’. Algo como ‘se o Estado tivesse agido no prazo, teríamos improbidade e dever de ressarcir o Poder Público, mas infelizmente já prescreveu e os prejuízos serão em última instância suportados pela própria sociedade de cujos recursos advém o orçamento público.’
(…)
Combater a corrupção, a malversação de recursos públicos e a desonestidade no tocante aos bens e direitos do Estado é uma necessidade social prioritária, sendo absurdo imaginar o resultado da desonestidade incorporando, com definitividade, ao patrimônio do desonesto e da sua família, em razão da moralidade administrativa, da supremacia do interesse público primário, e da dignidade mínima. O ordenamento deve ser interpretado de modo a afastar teratologias como um indivíduo responsável por um ato ilícito de improbidade ainda venha a usufruir economicamente ou simplesmente livrar-se das consequências do seu comportamento indevido, com sacrifício dos interesses e necessidades de toda a sociedade. E isso ocorreria diante dos breves prazos prescricionais cogitados (cinco anos, p. ex.), principalmente diante da manifesta dificuldade de apuração de improbidades e até mesmo dos danos causados ao Poder Público. Não se reputa em paz social uma comunidade que, na ausência do art. 37, § 5°, da CR, seria obrigada a assistir ímprobos beneficiarem-se de valores que deveriam integrar o erário e a favorecer.’”
A respeito da imprescritibilidade, cumpre advertir que, anteriormente, o Pleno do STF, ao decidir Repercussão Geral no RE nº 669.069-MG, restringira a tese da prescrição de ilícitos civis a situações em que o Estado pretende ser ressarcido de prejuízos causados por atos que lhe sejam causados por comportamentos violadores de normas de direito privado, ausente relação jurídica de direito administrativo na espécie. Os esclarecimentos dos embargos declaratórios naquele processo foram expressos ao determinar que somente os ilícitos com natureza semelhante à daquele caso concreto, qual seja, “ilícitos decorrentes de acidente de trânsito” como fixou o Ministro Relator, estariam sujeitos à decisão da RG-RE nº 606.669-MG.
Assim sendo, tem-se que não foram atingidos pelo entendimento proclamado naquela Repercussão Geral do RE nº 669.069-MG os ilícitos causadores danos ao erário mediante cometimento de improbidade administrativa ou infração penal, violação de deveres funcionais por agentes públicos, bem como ofensa a deveres previstos em instrumentos de acordo sujeitos a normas administrativas (contratos administrativos, convênios ou outras formas de ajustes bilaterais normatizadas pelo direito público). Os efeitos da decisão do STF no RE nº 669.069, não atingiram demandas ressarcitórias que tenham por objeto indenização de outros ilícitos sofridos pelo Estado, que não os “ilícitos civis”. Diante de prejuízo do Estado decorrente de inobservância por terceiro de norma administrativa, de improbidade administrativa ou penal, a Corte Suprema não determinou naquele acórdão haver sujeição à regra da prescritibilidade, tendo optado em alguns casos por julgamentos específicos e em separado (improbidade no RE nº 852.475-SP decidido em 2018 e condenação pelos Tribunais de Contas, ainda pendente de julgamento). Infrações de direito público, portanto, não foram atingidas pelo acórdão prolatado na RG-RE nº 669.069-MG, que somente tratou dos chamados “ilícitos civis”.
Ao reconhecer Repercussão Geral ao RE nº 636.886-AL, o STF referiu-se à prescritibilidade da pretensão de ressarcimento fundada em decisão de Tribunal de Contas que determinara a restituição de valores por entidade que deixou de prestar contas em convênio e, assim, ensejou a propositura de execução de título executivo extrajudicial pelo ente federativo. O STF expressamente considerou que a matéria prescricional não foi abrangida pela tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Repercussão Geral no RE nº 669.069-MG, sendo necessário pronunciamento da Corte, com sua nova composição plenária, sobre matéria anteriormente decidida no MS nº 26.210, o que ainda se aguarda.
2.2. Cargos comissionados: condições para criação (RG- RE nº 1.041.210-SP)
O STF já decidira, em mais de uma oportunidade, que cargos em comissão não podem ser criados para o exercício de atribuições técnicas que não possuem natureza de assessoramento, chefia ou direção[1], sendo fundamental que haja relação de confiança e o atendimento dos requisitos do artigo 37, V da CR[2]. Já se considerou até mesmo a desproporcionalidade entre o número de cargos comissionados criados em face dos cargos de provimento efetivo existentes, concluindo-se pelo descumprimento dos incisos V e II do artigo 37 da CR quando mais da metade dos cargos do Estado foram instituídos como cargos em confiança, inclusive para atividades estatais essenciais aos cidadãos.[3]
Em 2018, na mesma linha de raciocínio mas agora em sede Repercussão Geral, o STF “reafirmou sua jurisprudência dominante no sentido de que a criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais”. O tema foi objeto do Recurso Extraordinário nº 1.041.210, que teve repercussão geral reconhecida e julgamento de mérito no Plenário Virtual, tendo o ministro Dias Toffoli afirmado a relevância jurídica, econômica e social da controvérsia, “uma vez que trata dos requisitos para a criação de cargos em comissão, envolvendo a aplicação de princípios constitucionais tais como o do concurso público, da moralidade pública, da igualdade, da impessoalidade, da eficiência e da economicidade”, ao que se acrescentou:
“Quanto ao mérito da controvérsia, o relator observou que o STF já se ‘debruçou sobre a questão por diversas vezes’ e o entendimento da Corte é no sentido de que a criação de cargos em comissão somente se justifica quando suas atribuições, entre outros pressupostos constitucionais, sejam adequadas às atividades de direção, chefia ou assessoramento, sendo inviável para atividades meramente burocráticas, operacionais ou técnicas. Ele também destacou que, como esses cargos são de livre nomeação e exoneração, é imprescindível a existência de um vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado para o desempenho da atividade de chefia ou assessoramento.
‘Esses requisitos estão intrinsecamente imbricados, uma vez que somente se imagina uma exceção ao princípio do concurso público, previsto na própria Constituição Federal, em virtude da natureza da atividade a ser desempenhada, a qual, em razão de sua peculiaridade, pressupõe relação de fidúcia entre nomeante e nomeado’, argumentou o relator.
O ministro ressaltou que as atribuições inerentes aos cargos em comissão devem observar, também, a proporcionalidade com o número de cargos efetivos no quadro funcional do ente federado responsável por sua criação, além da utilidade pública. Toffoli salientou que as atribuições dos cargos devem, obrigatoriamente, estar previstas na própria lei que os criou, de forma clara e objetiva, não havendo a possibilidade de que sejam fixadas posteriormente. ‘Daí ser imprescindível que a lei que cria o cargo em comissão descreva as atribuições a ele inerentes, evitando-se termos vagos e imprecisos’, enfatizou.
A manifestação do relator quanto ao reconhecimento da repercussão geral foi seguida por maioria, vencido o ministro Marco Aurélio. No mérito, a posição do ministro Dias Toffoli pelo desprovimento do RE e pela reafirmação da jurisprudência pacífica da Corte foi seguida por maioria, vencido, também neste ponto, o Marco Aurélio.”
Ao final do julgamento, a tese de repercussão geral fixada foi a seguinte:
“a) A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais;
b) tal criação deve pressupor a necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado;
c) o número de cargos comissionados criados deve guardar proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar; e
d) as atribuições dos cargos em comissão devem estar descritas, de forma clara e objetiva, na própria lei que os instituir.”
2.3. Concurso público: psicotécnico – necessidade de submissão a novo exame em caso de nulidade do anterior (RG no RE nº 1.041.210-SP) – e remarcação de exame físico para gestante (RG no RE nº 1.058.333-PR)
É posição assente nas Cortes Superiores que o psicotécnico, para ser legítimo, deve estar previsto em lei. A Súmula 686 do STF expressamente consagrara que somente por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público, tendo a Súmula Vinculante nº 44 reiterado que “Só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público”. O Supremo Tribunal Federal já decidira pela inadmissibilidade de se avaliar candidato, em psicotécnico, sem um grau mínimo de objetividade, ou com fulcro em critérios não revelados, até mesmo por impedir o acesso do Judiciário à eventual lesão de direito individual pelo uso desses critérios.[4]
Em 2018, restou noticiado pelo próprio STF, a reafirmação da sua “jurisprudência dominante no sentido de que, caso o exame psicotécnico previsto em lei e em edital de concurso seja considerado nulo, o candidato só poderá prosseguir no certame após a realização de nova avaliação com critérios objetivos. O tema foi abordado no Recurso Extraordinário (RE) 1133146, de relatoria do ministro Luiz Fux, que teve repercussão geral reconhecida e julgamento demérito no Plenário Virtual”. Foi o Ministro Luiz Fux quem observou que “a jurisprudência do STF é no sentido de que, se a lei exige exame psicotécnico para a investidura no cargo público, o Judiciário não pode dispensar sua realização ou considerar o candidato aprovado nele, sob pena de ofensa ao artigo 37, inciso I da Constituição Federal. O ministro também apontou violação ao princípio da isonomia, pois o candidato não pode deixar de se submeter a novo exame psicotécnico, ‘pautado, agora, em critérios objetivos’, dispensando uma etapa do concurso público.
O relator argumentou que, como há previsão em lei e em edital para a realização do exame psicológico, a submissão e aprovação no teste é condição para prosseguimento nas fases seguintes do certame, sob pena de grave ofensa aos princípios da isonomia e legalidade. ‘Daí decorre a necessidade de realização de novo exame, pautado por critérios objetivos de correção, quando o primeiro tiver sido anulado por vícios de legalidade’, afirmou.
Em relação ao reconhecimento da repercussão geral, a manifestação do relator foi seguida por unanimidade. No mérito, seu entendimento pela reafirmação da jurisprudência, dando provimento do RE para determinar a submissão da candidata a novo exame psicotécnico, pautado em critérios objetivos, foi seguido por maioria, ficando vencido neste ponto o ministro Marco Aurélio.
A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: No caso de declaração de nulidade de exame psicotécnico previsto em lei e em edital, é indispensável a realização de nova avaliação, com critérios objetivos, para prosseguimento do certame.”
Em se tratando de teste físico realizado em concurso público, decisões da Corte Suprema já tinham entendido pela possibilidade de adiamento no caso de candidata grávida, cujo parto ocorrera dias antes do teste, ao argumento de que fixar data posterior, nesse caso, “não afronta o princípio da isonomia nem consubstancia qualquer espécie de privilégio. A própria situação peculiar na qual a agravada se encontrava requeria, por si só, tratamento diferenciado”.[5] Especialmente no tocante à gestante, o entendimento no STF vinha sendo no sentido de que seria injustiça não deferir segunda chamada às candidatas. Também a doutrina pontuava que: “Em linha de princípio, as alterações fisiológicas e psicológicas decorrentes da gravidez são circunstanciais e não autorizam a exclusão sumária das candidatas grávidas do certame por ocasião das provas de capacidade física. Entendimento contrário conduziria a uma flagrante injustiça, à medida que a condição de grávida funcionaria como uma espécie de punição, comprometendo a efetividade do princípio da paridade que deve existir entre homens e mulheres no tocante a direitos e obrigações.”[6]
No entanto, decisões do Superior Tribunal de Justiça afastavam a possibilidade de novos testes, sob pena de comprometimento da isonomia, até mesmo considerando normas editalícias que vedam tratamento diferenciado em razão de alterações fisiológicas e psicológicas, tais como gravidez ou lesões musculares.[7] O entendimento era no sentido de que obstáculos impossibilitadores do comparecimento devem levar à eliminação sumária do concurso público, sendo inviável pretender-se uma segunda chamada na espécie.[8]
Em 2018, o STF reconheceu em sede de repercussão geral direito de candidata gestante à remarcação de teste de aptidão física, independente de haver previsão editalícia:
“‘O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito de candidatas gestantes à remarcação de testes de aptidão física em concursos públicos, independentemente de haver previsão no edital. Os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 1058333, no qual o Estado do Paraná questionava acórdão do Tribunal de Justiça local (TJ-PR) que garantiu o direito à remarcação a uma candidata que não compareceu ao exame físico, que constituía etapa do certame para o cargo de Policial Militar do Estado do Paraná (PM-PR), em razão da gravidez de 24 semanas. (…) Foi aprovada a seguinte tese de repercussão geral: ‘É constitucional a remarcação do teste de aptidão física de candidata que esteja grávida à época de sua realização, independentemente da previsão expressa em edital do concurso público’.
Em seu voto, o relator do recurso, ministro Luiz Fux, destacou que, diversamente do alegado pelo Estado do Paraná, a decisão do TJ-PR não afrontou o princípio da isonomia entre os candidatos, mas apenas garantiu o direito de pessoa com condições peculiares que necessitava de cuidados especiais. ‘Por ter o constituinte estabelecido expressamente a proteção à maternidade, à família e ao planejamento familiar, a condição de gestante goza de proteção constitucional reforçada. Em razão deste amparo constitucional específico, a gravidez não pode causar prejuízo às candidatas, sob pena de malferir os princípios da isonomia e da razoabilidade’, afirmou. Para ele, o não reconhecimento desse direito da mulher compromete a autoestima social e a estigmatiza. ‘O efeito catalizador dessa exclusão é facilmente vislumbrável em uma sociedade marcada pela competitividade. As mulheres têm dificuldade em se inserir no mercado de trabalho e a galgar postos profissionais de maior prestígio e remuneração. Por consequência, acirra-se a desigualdade econômica, que por si só é motivo de exclusão social’, disse Fux.
O relator classificou como incabível equiparar a gravidez a doença ou a razões de força maior que impeça a realização de determinada etapa do concurso público pelos candidatos. ‘A falta de autonomia física ou as dificuldades no controle do seu próprio corpo repercutem nas condições necessárias para o alcance da autonomia econômica, por isso se revela anti-isonômico criar-se restrições em razão da gravidez. Instituído expressamente como um direito social, a proteção à maternidade impede que a gravidez seja motivo para fundamentar qualquer ato administrativo contrário ao interesse da gestante, ainda mais quando tal ato impõe-lhe grave prejuízo’, afirmou.
Para o ministro Fux, o TJ-PR decidiu de forma correta o caso ao assentar que não seria proporcional nem razoável exigir que a candidata colocasse a vida de seu bebê em risco, de forma irresponsável, submetendo-se a teste físico mediante a prática de esforço incompatível com a fase gestacional. O relator também rejeitou o argumento do Estado do Paraná de que a remarcação do teste de aptidão física para gestantes atrasaria a conclusão do concurso público. Segundo ele, a solução é continuar o certame com a reserva do número de vagas para essa situação excepcional. ‘Se após a realização do teste de aptidão física remarcado, a candidata lograr aprovação e classificação, será empossada. Caso contrário, será empossado o candidato ou candidata remanescente na lista de classificação, em posição imediatamente subsequente’, explicou.” Confira a notícia veiculada no site do STF.
2.4. Desapropriação: juros compensatórios (ADI nº 2.332-DF)
Os juros compensatórios são uma compensação que se defere ao titular do bem desapropriado pela perda antecipada da posse quando o Poder Público é nela imitido provisoriamente. Tratase de uma construção jurisprudencial cujo objetivo é assegurar uma indenização justa ao expropriado, tendo em vista que em inúmeras circunstâncias é difícil a prova dos lucros cessantes perdidos em razão da imissão provisória. Daí a jurisprudência considerar que, no caso de imissão antecipada, há prejuízo imposto ao proprietário, a ser indenizado em um percentual específico extraído do ordenamento.
Em 2018, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que devem ser de 6%, e não mais de 12% (como fixado em 2001 em sede de liminar na ADI nº 2.332-DF), os juros compensatórios incidentes sobre as desapropriações por necessidade ou utilidade pública e interesse social ou para fins de reforma agrária, no caso em que haja imissão prévia na posse pelo Poder Público e divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem, fixado em sentença judicial:
“Por maioria de votos, os ministros julgaram parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2332, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra dispositivos da Medida Provisória 2.027-43/2000 e demais reedições, que alterou o Decreto-Lei 3.365/1941, o qual dispõe sobre desapropriações por utilidade pública. Os dispositivos estavam suspensos desde setembro de 2001, em razão de medida liminar concedida pelo Plenário do STF.
De acordo com o relator da ação, ministro Luís Roberto Barroso, a jurisprudência construída pelo próprio STF, que estabeleceu como devidos os juros compensatórios e, posteriormente, fixou o percentual de 12% (Súmulas 164 e 618), justificou-se dentro de uma conjuntura de instabilidade econômica e inflacionária em que, por largo período, sequer havia previsão de correção monetária. Além disso, tais processos de desapropriação duravam décadas sem previsão de correção monetária, mas hoje isso não se justifica, a despeito de a duração de tais processos continuar sendo longa.
Barroso sustentou que a taxa de juros de 6% é perfeitamente compatível com as aplicações que existem no mercado financeiro. Foi considerada inconstitucional a expressão ‘até’ 6%, ou seja, o percentual não poderá ser inferior a 6%. O relator salientou que a elevação desproporcional do valor final das indenizações dificulta uma política pública de desapropriação e onera programas de reforma agrária, com o enriquecimento sem causa dos expropriados. O relator referiu-se a dados oficiais apresentados no processo pela Advocacia-Geral da União (AGU) que revelam distorções nos processos de desapropriação em razão da incidência de juros compensatórios de 12%. De 2011 a 2016, o Incra gastou R$ 978 milhões com o pagamento desses juros e R$ 555 milhões com as indenizações em si.
Em seu voto, o ministro Barroso afirmou ser constitucional o percentual de juros compensatórios de 6% ao ano para remuneração do proprietário pela imissão provisória do ente público na posse do seu bem, na medida em que consiste em ‘ponderação legislativa proporcional entre o direito constitucional do proprietário à justa indenização e os princípios constitucionais da eficiência e da economicidade”. Quanto à base de cálculo, ‘foi dada interpretação conforme a Constituição ao caput do artigo 15-A do Decreto-Lei 3.365/1941, de maneira a incidir juros compensatórios sobre a diferença entre 80% do preço ofertado pelo ente público e o valor fixado na sentença judicial. O parágrafo 1º do artigo 27 foi considerado inconstitucional, na parte que estabelecia teto para honorários advocatícios (em R$ 155 mil à época da edição da MP, atualmente corrigidos para R$ 474 mil). (…)
Após divergência parcial do relator, aberta pelo ministro Alexandre de Moraes e seguida por seis ministros, foram consideradas constitucionais as restrições à incidência dos juros compensatórios quando não houver comprovação de efetiva perda de renda pelo proprietário com a imissão provisória na posse (artigo 15-A, parágrafo 1º) e quando o imóvel tenha graus de utilização da terra e de eficiência na exploração iguais a zero (parágrafo 2º do mesmo artigo).
O entendimento prevalecente foi o de que os juros compensatórios se destinam apenas a compensar a perda de renda comprovadamente sofrida pelo proprietário. O ministro Barroso havia considerado tais restrições inconstitucionais, mas decidiu reajustar seu voto nesta parte, com ressalva de seu entendimento pessoal, mantendo-se na relatoria do processo. O parágrafo 4ª do artigo 15-A, segundo o qual o Poder Público não pode ser onerado por juros compensatórios relativos a período anterior à aquisição da propriedade ou posse titulada pelo autor da ação, foi considerado inconstitucional.”
A decisão de mérito, em 2018, na ADI nº 2.332-DF alterou a decisão liminar tomada pelo Supremo Tribunal Federal em 2001 (publicação da liminar em 13.09.2001). A liminar suspendera a expressão de “até seis por cento ao ano” do artigo 15-A do Decreto Lei n.° 3.365/41, invocando a súmula 618 do STF fundada na garantia constitucional da indenização prévia e justa, o que indicaria a inadmissibilidade de reduzir os juros de 12% ao ano para o percentual de 6% anual. Assim sendo, nos termos da liminar publicada em 13.09.2001 e até a publicação da decisão de mérito prolatada em 2018 na ADI 2.332-DF, os juros compensatórios são de 12% ao ano e incidem, a partir da imissão provisória, sobre a diferença apurada entre 80% do preço depositado em juízo (quando antecipação da posse) e o valor indenizatório fixado na decisão judicial final. A partir do julgamento definitivo meritório, tem-se como constitucional o percentual fixo de 6% previsto no artigo 15-A do Decreto-Lei nº 3.365/41, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2.183-56/2001. Serão afastadas, portanto, com a publicação da decisão de mérito da ADI nº 2.332, não só a decisão liminar de 2001 na referida ADI, mas também as Súmulas nº 618 do STF e 408 do STJ.
2.5. Reserva legal: necessidade de lei para normatizar direito previsto na Constituição (RE nº 888.815)
Há situações em que a Constituição exaure o tratamento normativo de uma determinada matéria, tornando desnecessária edição de lei que fixe os parâmetros para o exercício de direitos previstos no texto constitucional. Quando isso não acontece, discute-se os limites da reserva legal como princípio que exige o tratamento da matéria por norma oriunda formalmente do Parlamento.
Em 2018, ao tratar da omissão de legislação que permita e normatize o ensino domiciliar no Brasil, o Pleno do STF entendeu, por maioria, que a reserva legal exclui o referido direito:
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 888815, com repercussão geral reconhecida, no qual se discutia a possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling) ser considerado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação. Segundo a fundamentação adotada pela maioria dos ministros, o pedido formulado no recurso não pode ser acolhido, uma vez que não há legislação que regulamente preceitos e regras aplicáveis a essa modalidade de ensino. (…) O relator do RE, ministro Luís Roberto Barroso (…) considerou constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e adolescentes, em virtude da sua compatibilidade com as finalidades e os valores da educação infanto-juvenil, expressos na Constituição de 1988. Em seu voto, Barroso propôs algumas regras de regulamentação da matéria, com base em limites constitucionais. (…) o voto do ministro Alexandre de Moraes, que abriu a divergência no sentido do desprovimento do recurso e foi seguido pela maioria dos ministros. Ele será o redator do acórdão do julgamento. Ficaram vencidos o relator (integralmente) e o ministro Edson Fachin (parcialmente).”
O Ministro Alexandre de Moraes, ao abrir divergência sobre a matéria, fixou, que, em relação às formas de ensino domiciliar, a chamada espécie utilitarista, que permite fiscalização e acompanhamento, “para ser colocada em prática, deve seguir preceitos e regras, que incluam cadastramento dos alunos, avaliações pedagógicas e de socialização e frequência, até para que se evite uma piora no quadro de evasão escolar disfarçada sob o manto do ensino domiciliar. Por entender que não se trata de um direito, e sim de uma possibilidade legal, mas que falta regulamentação para a aplicação do ensino domiciliar, o ministro votou pelo desprovimento do recurso.”
O Ministro Edson Fachin “salientou que o Poder Judiciário não pode fixar parâmetros para que um método possa se ajustar a regras de padrão de qualidade, como exige a Constituição”, motivo por que votou pelo” parcial provimento ao recurso, acolhendo a tese da constitucionalidade do direito de liberdade de educação em casa. Porém, como a medida depende do reconhecimento de sua eficácia, divergiu do relator quanto ao exercício do direito, impondo ao legislador que discipline a sua forma de execução e de fiscalização no prazo máximo de um ano.”
Ao votar com a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, a ministra Rosa Weber invocou o modelo do artigo 208, § 3º da CR, considerando-o “regulamentado no plano infraconstitucional por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que falam na obrigatoriedade dos pais em matricularem seus filhos na rede regular de ensino”, não existindo espaço para se conceder o pedido.
Também o Ministro Luiz Fux divergiu do relator e votou pelo desprovimento do recurso, ao fundamento de que é inconstitucional o ensino domiciliar “em razão de sua incompatibilidade com dispositivos constitucionais, dentre eles os que dispõem sobre o dever dos pais de matricular os filhos e da frequência à escola, e o que trata da obrigatoriedade de matrícula em instituições de ensino.” Com base em “dispositivos da LDB e do ECA que apontam no mesmo sentido, e até mesmo o regulamento do programa Bolsa Família, que exige comprovação de frequência na escola para ser disponibilizado”, “apontou ainda a importância da função socializadora da educação formal, que contribui para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”.
Também o Ministro Ricardo Lewandowski negou provimento ao recurso e seguiu os fundamentos adotados pelo ministro Luiz Fux, sendo no mesmo sentido o entendimento do Ministro Gilmar Mendes que invocou “o custo que a adoção do ensino domiciliar traria para o sistema de ensino, uma vez que exigiria a instituição de uma política de fiscalização e avaliação. Para ele, apenas por meio de lei essa modalidade de ensino pode ser experimentada.” Não foi em outro sentido o voto do Ministro Marco Aurélio, tendo o Ministro Dias Toffoli destacado a dificuldade de constatar, de imediato, a existência de direito líquido e certo que justificasse o provimento do recurso.
Por fim, a Ministra Cármen Lúcia “na ausência de um marco normativo específico que possa garantir o bem-estar da criança, votou por negar provimento ao recurso extraordinário, sem discutir a constitucionalidade do instituto.” Confira a notícia do julgamento no site do STF.
Ainda sobre a reserva legal, certo é que liminares foram concedidas no STF discutindo o velho dilema entre reserva legal e poder regulatório dos órgãos públicos: “O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar para suspender a eficácia do Provimento 66/2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (…) O ministro explicou que as matérias que a Constituição submeteu à reserva de lei não podem ser objeto do exercício do poder normativo do CNJ, pois isso violaria a competência constitucional do Poder Legislativo, em desrespeito ao princípio da separação dos Poderes. ‘No caso, a Constituição reservou à lei em sentido formal a regulamentação dos serviços notariais e de registro, sua fiscalização e remuneração (artigo 236, parágrafos 1º e 2º, da Constituição Federal), em razão do que não poderia o CNJ editar normas ampliando as atribuições legais desses órgãos’, concluiu.”
3. Decisões relevantes do STJ
Em relação à jurisprudência do STJ, inicialmente apontam-se as seguintes Súmulas aprovadas em 2018:
Súmula 613 – Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental.
Súmula 618 – A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental.
Especificamente sobre o fornecimento de medicamentos fora da lista do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme precedente estabelecido no REsp nº 1.657.156, o STJ fixou, em 12.09.2018, que “o requisito do registro na Anvisa afasta a obrigatoriedade de que o poder público forneça remédios para uso off label, salvo nas situações excepcionais autorizadas pela agência”: “O colegiado acolheu embargos de declaração do Estado do Rio de Janeiro e modificou um trecho do acórdão do recurso repetitivo, trocando a expressão ‘existência de registro na Anvisa’ para ‘existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência’. O relator do recurso, ministro Benedito Gonçalves, explicou que o esclarecimento em embargos de declaração é necessário para evitar que o sistema público seja obrigado a fornecer medicamentos que, devidamente registrados, tenham sido indicados para utilizações off label que não sejam reconhecidas pela Anvisa nem mesmo em caráter excepcional. (…)
Segundo Benedito Gonçalves, ainda que determinado uso não conste do registro na Anvisa, na hipótese de haver autorização, mesmo precária, para essa utilização, deve ser resguardado ao usuário do SUS o direito de também ter acesso ao medicamento. O ministro destacou o caso do Avastin, que, em caráter excepcional, por meio de uma resolução da Anvisa, teve autorização para ser usado fora das prescrições aprovadas no registro. O termo inicial da modulação dos efeitos do recurso repetitivo foi alterado para a data da publicação do acórdão, 4 de maio de 2018. Anteriormente, o termo inicial era a data do julgamento do repetitivo, 25 de abril de 2018”. Confira a notícia do STJ.
Também insta ressaltar a notícia de decisão do Superior Tribunal de Justiça a propósito da responsabilidade do Estado por demora jurisdicional, excluído o dever de ressarcimento do magistrado: “STJ condena Estado do Amazonas a indenizar vítimas da demora excessiva da Justiça (…) O relator do caso no STJ, ministro Og Fernandes, disse que ficou evidente a responsabilidade civil estatal pela “inaceitável morosidade” da Justiça. Ele ressaltou que a ação de execução de alimentos, por sua natureza, exige maior celeridade, e por tal razão ‘mostra-se excessiva e desarrazoada a demora de dois anos e seis meses para se proferir um mero despacho citatório’.
‘O ato, que é dever do magistrado pela obediência ao princípio do impulso oficial, não se reveste de grande complexidade, muito pelo contrário, é ato quase mecânico, o que enfraquece os argumentos utilizados para amenizar a sua postergação’, enfatizou.”
Por fim, muito além de admitir o desconto em folha dos valores recebidos a maior por servidor público, a 2ª Turma do STJ fixou ser a autoexecutoriedade administrativa o procedimento de cobrança adequado, visto que menos restritivo, afastando a alternativa da inscrição em dívida ativa pelo Estado no REsp nº 1.690.931:
“Devolução de valor recebido a mais por servidor deve se dar por desconto na remuneração Para a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o servidor ativo, aposentado ou pensionista que receber valores a maior da administração pública federal em seus vencimentos terá a possibilidade do desconto na remuneração, provento ou pensão, mediante prévia comunicação, admitindo-se o parcelamento no interesse do devedor.
De acordo com o colegiado, essa solução deve ser priorizada por ser a menos onerosa para o servidor, como estabelece o artigo 46 da Lei 8.112/90. Evita-se, assim, a expropriação de bens em execução fiscal. Ainda segundo a turma, se o servidor estiver em atividade, a legislação não assegura ao poder público o direito de inscrever o valor devido em dívida ativa, nem a realizar a cobrança mediante execução fiscal.
O entendimento do STJ foi adotado na análise de recurso da Fazenda Nacional que questionava decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). A corte de segunda instância considerou procedente ação movida por um servidor público para anular o ato que inscreveu em dívida ativa débito relativo à verba salarial recebida por ele e posteriormente considerada indevida. (…) O relator, ministro Og Fernandes, explicou que somente é possível a inscrição em dívida ativa do débito do servidor público nas hipóteses de demissão, exoneração ou cassação da aposentadoria ou disponibilidade se a dívida não for quitada no prazo de 60 dias. Segundo o ministro, porém, nos casos em que valores são recebidos a maior pelo servidor, a administração pode usar o desconto em folha para reaver a importância, admitindo-se o parcelamento.”
Sobre a necessidade de devolver à Administração Pública pagamentos feitos indevidamente a maior, com prejuízo ao erário, confira-se artigo publicado no “Direito Administrativo para Todos”, com exame das diversas correntes doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria, ao que se acresce artigo sobre descontos em contracheque de servidores públicos.
4. Novos enunciados da CGU
No ano de 2018, Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União editou quatro novos enunciados relevantes em matéria de processo administrativo disciplinar:
Enunciado 20: “O compartilhamento de provas entre procedimentos administrativos é admitido, independentemente de apurarem fatos imputados a pessoa física ou a pessoa jurídica, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça.”
Enunciado 21: “A autoridade julgadora poderá, motivadamente, agravar a penalidade proposta, sendo desnecessária a abertura de novo prazo para a apresentação de defesa.”
Enunciado 22: “As ausências injustificadas por mais de trinta dias consecutivos geram presunção relativa da intenção de abandonar o cargo.”
Enunciado 23: “São passíveis de apuração administrativa disciplinar as infrações cometidas por agentes políticos em razão do exercício de cargo ou emprego público federal”.
Confira-se, sobre os três primeiros enunciados, comentários no “Direito Administrativo Para Todos”.
5. Tragédias e tensões
O ano de 2018 foi um ano difícil. Além dos problemas crônicos que o Brasil enfrenta, a eleição presidencial que rachou de vez o país trouxe repercussões nas searas do Direito mais próximas ao exercício do poder político (como é o caso do Direito Administrativo), ao que se acrescem tragédias lamentáveis, como o incêndio no Museu Histórico Nacional, na cidade do Rio de Janeiro. Sobre a triste página da não-preservação do patrimônio histórico brasileiro, vale conferir o seguinte artigo:
“Hoje, pagamos o preço pelo desconhecimento, pela ignorância de parâmetros já adotados pelo STF e pela aposta geral de que ‘o pior não vai acontecer’. É hora de botar os pés no chão. Vou dizer algo horrível e óbvio: O pior acontece sim se você não faz nada para evita-lo. As pessoas morrem na porta das UPA’s porque não ocorreu o planejamento adequado, nem a execução mínima dos serviços de saúde; barragens de rejeitos se rompem sem os alarmes soarem para advertir à população que está no caminho da lama e vidas, lares e histórias se perdem para sempre; museus de 200 anos queimam quando, por décadas, todos os governos federais e estaduais foram irresponsavelmente criminosos em não promover a sua restauração; prédios públicos no centro da maior capital do país também pegam fogo e caem, matando mais gente, em razão da desídia das esferas titular do bem e responsável pela fiscalização da ocupação urbanística local; crianças chegam à vida adulta analfabetas funcionais quando a política educacional é incompetente e ignora os desafios do mundo real; comunidades explodem em confronto do tráfico, a vitimar inocentes, quando ninguém tem coragem de enfrentar a criminalidade dentro e fora do Estado com maturidade, coragem e competência mínima.
(…) Precisamos reconhecer que cabe a qualquer governante ou gestor público que exerça o poder fazer juízos realistas, os quais meçam e ajustem as políticas públicas às realidades sociais e demandas estruturais do Estado.
Não é tolerável que se ignore situação de risco fartamente conhecida, documentada e presente no cotidiano, nem mesmo se admite incompetência no manejo dos instrumentos necessários ao cumprimento das atribuições mínimas do Estado. Em outras palavras: não é lícito ignorar ofícios que informam os riscos de um museu de 200 anos vir abaixo; são intoleráveis décadas de falta de investimento suficiente para preservação de um dos maiores patrimônios históricos do Estado brasileiro; não é razoável firmar um instrumento que permita a restauração em junho e até agosto não ser tomada providência alguma, sem interpretação adequada de exceções da legislação eleitoral; é criminoso não haver água e mecanismos eficientes de combate ao fogo quando a notícia do incêndio chega tempestivamente ao Corpo de Bombeiros. Cada cidadão precisa assumir não fazer parte de um projeto secular de manter o conformismo geral diante de tanta violência e de destruição dos espaços públicos que formam um mínimo de identidade social.
A nós cabe encerrar esse ‘gap’ entre as normas do ordenamento e as omissões e ações públicas ilícitas. É indispensável nominar os institutos, explicar o que deles decorre, reconhecer as ilicitudes e tomar providências de modo diligente e prudente antes que a guerra diária nos traga como vítima mais um cadáver. O de ontem foi o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Não esperemos o próximo.”
Não é possível ignorar o trágico homicídio de Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes, ainda não solucionado, tendo o Pleno do STF concluído apenas no dia seguinte ao do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, em 15.03.2018, o julgamento da ADI nº 5.617 que trata da concretização do percentual mínimo de mulheres candidatas nas eleições.
Por maioria de votos, o STF fixou que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais direcionadas às candidaturas de mulheres deve ser feita na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, respeitado o patamar mínimo de 30% de candidatas mulheres previsto no artigo 10, § 3º da Lei Federal nº 9.504/1997. Restou decidido ser inconstitucional a fixação de prazo para esta regra, como determina a lei, sendo que a distribuição não discriminatória deve perdurar enquanto for justificada a necessidade de composição mínima das candidaturas femininas. Decisão por maioria noticiada no site do STF.
Em sede de embargos declaratórios não conhecidos pelo Pleno do STF por extemporaneidade, foram modulados os efeitos temporais da decisão de mérito proferida na ADI nº 5.617, considerando possível a mais ampla participação das mulheres nas campanhas eleitorais, com destinação integral dos recursos para campanhas femininas. Assegurou-se que os recursos financeiros de anos anteriores acumulados nas contas específicas mencionadas no artigo 44, § 5ڊ-A e § 7º da Lei nº 9.096/95, acrescidos pela Lei Federal nº 13.165/2015, sejam adicionalmente transferidos para as contas individuais das candidatas no financiamento de suas campanhas eleitorais no pleito geral de 2018, sem que haja redução de 30% do montante do fundo alocado a cada partido para as candidaturas femininas (Informativo 918 do STF).
Registra-se ser sintomático que ainda estivéssemos brigando no Supremo contra uma lei que transformava em mera fachada as “cotas femininas em partidos políticos” (as mulheres não chegam a ter voz na política, na produção das leis e na gestão do país) um dia depois de, no Rio, ser covardemente assassinada uma das poucas vozes femininas que conseguiu passar por todas as barreiras. Assim, em regra, as instituições de poder: ou não há espaço aberto à participação das mulheres, ou abre-se espaço como faz-de-conta ou o sistema mói, destrói e mata aquela ignora a regra da invisibilidade. A tentativa de retrocesso e não operacionalidade dos instrumentos inclusivos femininos exige atuação constante e vigilância firme, inclusive perante o Judiciário. Por fim, temos de lidar com mais um cadáver: a incompetência em solucionar um crime tão bárbaro e tão grave para a democracia, o que surge como mais uma morte, a saber, o potencial de eficiência das instituições basilares do país. Triste realidade a do Brasil, ainda em 2018.
Além das dificuldades de planejamento e de execução eficiente por diversos órgãos do Estado, tem-se acirrado o grau de tensão interno e externo, nos diferentes Poderes e instituições. Assim, por exemplo, com o instituto do indulto, submetido mais uma vez a julgamento no Pleno do STF, em dezembro de 2018. Ao analisar a ADI nº 5.874, foi suspenso o confuso julgamento colegiado de mérito, após maioria formada quanto à discricionariedade ampla do indulto concedido pelo Presidente Michel Temer em 2017, sem conclusão do pedido de revogação da liminar deferida parcialmente pelo Ministro Luís Roberto Barroso, o que exige reflexão crítica doutrinária.
Em artigo sobre a matéria, esclareceu-se ser o indulto ato político praticado no exercício da função de governo, com submissão às exigências constitucionais (como os princípios da moralidade e proporcionalidade) e ao controle de juridicidade dos comportamentos do Estado. O fato de ser cabível o controle dos aspectos vinculados de competência governamental não extingue a discricionariedade política reservada ao Chefe do Executivo, sendo necessário no caso concreto aferir se se está diante de um adequado controle de juridicidade, sem supressão do mérito político, mas com limitação da escolha da autoridade de governo aos critérios normativos do ordenamento (normas principiológicas e regras específicas).
Entende-se que, se houver evidência de contradição do ato político com condutas anteriores, insuficiência de motivação, desigualdade de tratamento em favor dos indultados em um ano comparativamente com os beneficiados anteriormente e até mesmo o “travisamento”, tem-se desvio de poder subjetivo. Independentemente de se ter prova da intenção pessoal de quem praticou o ato, é viável demonstrar que a finalidade foi desvirtuada, pelo descompasso dos dados objetivos do comportamento – por meio de que o ato se deu – com a finalidade da Constituição e da lei, o que também vicia o comportamento estatal, objetivamente.
Também se explicitou que é controle de legalidade, na perspectiva contemporânea da juridicidade, reconhecer, abstratamente, que não atende a moralidade praticar ato de indulto com desvio de poder subjetivo ou objetivo, atentando para as finalidades do instituto e para os resultados alcançados pelo mesmo na espécie. Estando evidente divórcio entre o deferimento de indulto e o padrão ético de comportamento que os cidadãos esperam em razão do exercício da função pública pela autoridade máxima do Executivo, impõe-se reconhecer a imoralidade e/ou desproporcionalidade e, no exercício do controle, reprimir a inconstitucionalidade e restaurar a juridicidade.
Por fim, advertiu-se que é preciso cautela redobrada quando o resultado de uma posição como a adotada pelo STF significa abdicar o dever de controlar a observância de normas constitucionais relevantes (p. ex., moralidade e proporcionalidade), às vésperas do início de novo período de mandato nos âmbitos federal e estadual, a desafiar especial comprometimento do Judiciário com a preservação da CR. Mais do que o que representa especificamente quanto ao indulto do ano de 2017, preocupa principalmente o afastamento de entendimentos anteriores quanto à função do STF na atividade de controle judicial, com maioria formada em favor de uma discricionariedade ampla do Chefe do Executivo a evidenciar uma postura arriscadamente “Pôncio Pilatos” da Corte Suprema. Que não se estenda a todos os demais atos políticos fundamentais do Estado brasileiro, especialmente aqueles relativos à formulação e à implementação de políticas públicas, num momento de riscos elevados de retrocesso e tensão flagrante como aqueles por que passa o Brasil.
Como último confronto retomado em 2018, destaca-se o julgamento pelo Pleno do TCU, em 07.11.2018, no sentido de que a OAB sujeita-se à fiscalização levada a efeito por aquela Corte Contas, corroborando a a manifestação técnica exarada em 09.08.2018 pela 3ª Diretoria Técnica da SECEX-RS (Acórdão nº 2.573/2018, rel. Min. Bruno Dantas, Pleno do TCU, julgamento em 07.11.2018).
Referido posicionamento contraria o entendimento do STF na ADC nº 3.026, em que a Corte Suprema fixou a desnecessidade de concurso público para contratação de pessoal pela OAB e certamente ensejará novas discussões no Pleno do Supremo Tribunal Federal.
[1] ADI nº 3.706-MS, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno do STF, DJe de 04.10.2007.
[2] ADI nº 3.116-AP, rel. Min. Joaquim Barbosa, Informativo 630 do STF.
[3]ADI nº 4.125-TO, rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno do STF, Informativo 590 do STF.
[4] Ag. Reg. no AI nº 57.944-DF, rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma do STF, DJU de 15.10.2004, p. 7.
[5] Agravo no RE nº 376.607-DF, rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma do STF, DJU de 05.05.006, p. 35.
[6] MAIA, Márcio Barbosa e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional, op. cit., p. 100 e 122
[7] “1. O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência uniforme no sentido de que, havendo previsão editalícia que veda a realização de novo teste de aptidão física, não se pode dispensar tratamento diferenciado a candidato em razão de alterações fisiológicas temporárias, em homenagem ao princípio da igualdade que rege os concursos públicos. Precedentes. O simples fato de o Excelso Pretório não ter adotado o mesmo posicionamento deste Superior Tribunal de Justiça não impede esta Corte de dar a interpretação que entender mais correta a uma norma infraconstitucional.” (Agravo Regimental no REsp nº 752.877-DF, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma do STJ, DJe de 01.02.2010)
[8] Agravo Regimental no RMS nº 28.340-MS, rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma do STJ, DJe de 19.10.2009.